A primeira vez que ouvi falar em maconha foi nos preparativos de mudança do arraial do Junco para Alagoinhas. O povo falava à minha mãe para ter muito cuidado com a cidade onde se dizia que a maconha rolava solta e os assaltos eram useiros e vezeiros por causa da erva maldita.
Entretanto essas conversas ao pé do fogão a lenha eram totalmente equivocadas sobre o uso da cannabis sativa. Diziam que os meliantes fumavam a maconha para fazer o povo dormir e assim eles tinham livre acesso ao patrimônio alheio. O medo de então não era o de ver os filhos enveredar pelo mundo devastador da dependência química, mas pelo simples fato de se ser roubado devido ao “boa noite, Cinderela” supostamente contido na maconha.
Eram os tempos da inocência plena. A violência no arraial do Junco limitava-se apenas a alguma briga de bêbado às segundas-feiras, dia de feira. Eram brigas verbais e raramente se chegava às vias de fato. Dos presos e perturbadores da ordem pública, o único que me lembro foi um batedor de carteira que apareceu por ocasião da festa da Padroeira. Pego no flagrante, levou tantos bolos do delegado João Vieira que, anos depois, devia chorar quando se lembrava da surra. Como naqueles tempos não havia direitos humanos, o infeliz foi exibido na festa como um troféu do delegado.
Outro preso de destaque foi um motorista da Petrobrás que buzinou o carro ao passar por um cavaleiro na Ladeira do Cruzeiro. O cavalo se assustou, empinou e derrubou seu montador. Nada teria acontecido se o dito cavaleiro não fosse o delegado da cidade, que, mais tarde, deu voz de prisão ao petroleiro para ele aprender a não sair buzinando a torto e a direito. O infeliz passou dois dias preso, porém não apanhou como o batedor de carteira.
Curiosamente nos anos oitenta um rapazinho roubou um cavalo na roça e foi vender na feira. Teve o azar de oferecer ao próprio dono do cavalo que, surpreso, chamou a polícia.
Bons tempos aqueles em que se comprava fiado em qualquer bodega. Depois veio a modernidade, os supermercados, a televisão, as parabólicas e, com eles, a corrupção, a ladroagem política, a favelização e a miséria passou a rondar a periferia da cidade. As verbas públicas tiveram destinações privadas, o desvio de função pública se tornou dever de ofício, o povo aprendeu a trocar o voto por migalhas e o que se vê, hoje, é uma cidade sitiada pelo medo da violência e pelo terror das drogas. Do ano passado para cá, oito pessoas morreram vítimas da violência bestializada, gratuita, onde até um velhinho foi assassinado a golpes de machado para ter sua aposentadoria roubada. Ora pois, o que seria o sossego da velhice, está sendo o objeto do medo.
O arraial do Junco, que figura na rabada do IDH, se tornou a terra do sem porvir risonho: governos corruptos e impunes, desemprego crônico, jovens sem perspectivas no futuro, velhos desassistidos e crianças sem ocupação lúdica. Como diz o velho ditado: “Mente vazia é oficina do Diabo”. Quem elege o corrupto pensando tirar proveito, se esquece que está deixando atrás de si uma hoste de miseráveis. E a miséria conduz à violência. E a violência é sinônima de dor. E a dor não tem cor, ideologia ou status social. O corrompido um dia tornar-se-á vítima de sua própria esperteza.
Sumiram com as verbas da habitação popular e teve gente que achou interessante, pois era mais um novo-rico que surgia do nada, como aconteceu nos últimos tempos. Isso gerou o processo de favelização da cidade e a conseqüente degradação moral, com o tráfico de drogas rolando solto a desafiar a Lei e a Ordem. Antes do carnaval mataram um; essa semana que passou, dois. E assim caminhamos para a banalização da violência e a perda total da capacidade de indignação até o dia em que, ao abrirmos a porta da casa, esteja lá um corpo estendido na calçada apontando seu dedo frio e rígido como a dizer que poderemos ser o próximo da lista.
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