sexta-feira, 3 de julho de 2009

A intuição inventa e a técnica auxilia - Raimundo Carrero *

De Oficina literária



As pessoas, geralmente, fazem uma idéia equivocada do que seja uma Oficina de Criação Literária. Imaginam, quase sempre, ou sempre, que o escritor iniciante vai ser colocado numa camisa de força que se chama técnica e falta de espontaneidade. Não é nada disso. Muito pelo contrário, como se costuma dizer. A técnica é auxiliar. É uma forma de ajudar na intuição. Portanto, tudo começa com a intuição. Isso é definitivo.

Tanto é assim que na minha teoria da criação literária – digo isso com o máximo de cuidado para não me expor ao ridículo – coloco em primeiro lugar o Impulso – o desejo de escrever – e, em seguida, a intuição. Durante muito tempo imaginei, inclusive, que a intuição poderia vir em primeiro lugar. Questionei muito, até que me decidi pelo impulso – a inevitável força da escrita, o movimento inicial, o atirar-se no texto sem medo e sem pudor. E somente depois percebi a força da intuição.

Repito: a técnica é auxiliar. Durante a escrita o intelectual se deixa conduzir pela história – mínima que seja – e pelo personagem ou personagens. Não pergunta, não indaga, não reprime. Escreve sempre. Vai em frente. No entanto, seguidas vezes, encontra uma dificuldade, um problema, um questionamento. É aí que entra a técnica. Aliás, nunca se deve esquecer o primeiro e, por assim dizer, quase insuperável, manual de criação literária: “Cartas a um jovem poeta”, de Rilke. O que é que ele diz? Primeiro pergunte se você sobreviverá sem escrever. E pronto. Livro lido por gerações e gerações. Por isso recomendo-o sempre, com alegria.

Ora, se assim foi com Rilke, por que nós não devemos estudar? E aprender? A intuição é tão importante que até mesmo a técnica é, repito, intuitiva. Não há regras fixas. Nunca. Ao longo do trabalho, é da natureza humana perguntar: por que não faço isso? E por que não faço assim? Então entra a técnica. Mais uma vez: não é uma camisa de força porque você exercitou ou decorou uma série de regras e agora não sabe o que fazer com elas. De forma alguma. Quando o texto para e você pergunta por que não faço assim? Começou a se preocupar com a técnica. É isso.

De repente, o seu personagem precisa tomar uma decisão que você – escritor, narrador – questiona. Acabou de entrar no reinado da técnica. Sim, senhor. Você precisa encontrar uma saída para seduzir o leitor. Então acrescenta mais uma cena, corta outra, transforma em diálogo, muda uma palavra, corta outra. E, ao fazer isso, um caminho novo, luminoso, que você nem esperava, começa a surgir. Você percorre esse caminho e percebe que pode ir mais além. É isso. A técnica é sempre auxiliar da intuição. Às vezes – e quase sempre – a técnica é também intuitiva. Veja, por exemplo, o caminho da música. Dedilhando o violão, o músico toca muito bem, mas linearmente. De um momento para outro, percebe que um bemol ou um sustenido, uma pausa, ou um acorde, oferece outro tipo de beleza à melodia. E está aí a descoberta. Não é assim? Mas se ele, o músico, for também um estudioso de composição investirá, um pouco mais, nas técnicas já conhecidas e inventa outras. Basta conhecer também um pouco de harmonia. Com a oficina não é diferente.

E, na música, ocorre outras coisas ainda mais interessantes. Você vai assoviando, assoviando pela calçada enquanto caminha despreocupado e, de repente, surge um movimento diferente. E aí você diz: o que é isso? Volta ao acorde e percebe uma improvisação. E aquilo que é improvisação, passa a fazer parte da melodia. Em Pernambuco, por exemplo, há o frevo. Sim, o frevo, com todas as suas formas fixas. Mas em “Vassourinhas”, o belo trabalho de Mathias da Rocha, há uma brecha enorme para a criação, e todos criam da maneira que quer e da maneira que deseja. São tocadas as frases musicais que correspondem à forma física – paraparaparapa: tocada por todos os instrumentos, com resposta do naipe de palhetas – papaparaparapapa – e, logo depois, abre-se um espaço enorme para a improvisação. Maravilha.

A improvisação pode ser feita por um sax alto, um tenor, uma flauta; ou por um trompete, ou por trombone, ou por uma tuba, até. Se o maestro preferir, por uma caixa, pelos pratos, ou pelo bombo. O que é isso? A técnica da improvisação. Por quê? Porque o campo é livre. E isso não foi feito logo, imediatamente. Foi surgindo ao longo dos tempos. Em muitos casos, esse tipo de improvisação, nem era mesmo improvisação, vinha já escrito na pauta. Por decisão dos arranjadores, dos maestros e dos músicos, foi se alterando. E aquilo que era fixo, passa a ser móvel. É um direito do artista reinventá-lo. Mas só acontece porque o músico intui uma técnica. Daí a importância da intuição e da técnica. A técnica enriquecedora, porque se o músico não conhece a técnica da improvisação, não alcançará grandes resultados.

Na literatura, temos o eloqüente exemplo de Mario Vargas Llosa que estudou “Madame Bovary”, de Flaubert, até a exaustão. Ali ele encontrou os diálogos entrecruzados, nos comícios gerais. Tudo bem. Bastava ler e guardar. A emoção estética estava preservada. Ele verificou, ou intuiu, que aquela técnica poderia resultar em algo muito mais elaborado. Criou, então, os monólogos entrecruzados que é a força técnica de sua obra. E, é claro, de sua originalidade. Vejam agora o que um diálogo entrecruzado:

“Conjunto de boas culturas!, bradava o presidente.
- Há pouco, por exemplo, quando fui à sua casa...
“Ao Sr. Bizet, de Quincampoix:
- Podia eu saber que a acompanharia...

Percebe-se, então, que a fala marcada por aspas é do presidente dos comícios agrícolas. Aqueles marcados por travessões, são de Rodolfo, que está fazendo a corte a Ema.

O que fez Mario Vargas Llosa depois? Percebeu que cada fala poderia resultar num monólogo de várias páginas em tempos e espaços diferentes. Está entendendo? Aquela improvisação que já existia em “Vassourinhas” e que podia ser inventada e reinventada por cada músico, com a maior liberdade possível, recorre à intuição, sem com isso esquecer a intuição. Repetindo: porque a intuição também inventa a técnica; e a técnica é fruto da intuição. Nada que obrigue o criador a vestir uma camisa de força, talvez sem poder fazer movimentos.

Todos nós sabemos, também, que o monólogo interior foi criado por Eduard Dujardin, no século XIX, e não por Joyce, no século XX. Joyce, com toda sua genialidade aprofundou os estudos, foi mais longe, criou a sua própria marca, e até o fluxo da consciência. Por isso, o estudo é essencial e definitivo. A intuição atua e a técnica ajuda a percorrer outros caminhos. É assim. Simples. Ninguém precisa se preocupar. Deve, sim, fazer exercícios. Nem todo mundo tem facilidade de escrever. Fico, em geral, impressionado, e, é claro, triste, com as pessoas que pretendem ser escritoras e que não aceitar estudar. A oficina ajuda a refletir sobre o romance, que ainda oferece amplas possibilidades de renovação.

*Raimundo Carrero é jornalista e escritor pernambucano e, por possuir um coração de ouro, aceitou colaborar com o blog sem receber direitos autorais. E você, caro leitor, que também tem um coração reluzente, compre ao menos um dos seus livros, cujos títulos seguem abaixo:
As sombrias ruínas da alma
Os segredos da ficção
A história de Bernarda Soledade - A tigre do sertão (1975)
As sementes do sol - O semeador (1981)
A dupla face do baralho - Confissões do comissário Félix Gurgel (1984)
Sombra severa (1986)
Maçã agreste (1989)
Sinfonia para vagabundos (1992)
Extremos do arco-íris (1992)
Somos pedras que se consomem (1995)

Um comentário:

Maria Olímpia Alves de Melo disse...

Excelente artigo. Vou seguir minha intuição - Vou criar uma Oficina de Criação Literária. Vou reler o artigo agora.