Livros de aventura, Monteiro Lobato e o ano que não fui à escola
“Moro no fim do mundo”. Era assim que eu pensava quando menina, saltitando a caminho da escola. Sabia do mundo pelos livros e mal conhecia a cidadezinha mais próxima. Imaginava como seria uma cidade grande, como seria o mar e daquela “minha aldeia” me parecia que tudo era distante, inverossímil.
Fuçava nos mapas e me imaginava viajando, conhecendo lugares, pessoas, monumentos famosos, vivendo aventuras emocionantes e, a partir daí, passei a me interessar por livros de aventura. O primeiro deles foi “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, que me abriu as portas da alegria, com personagens tão próximos da minha realidade de menina criada na roça.
Já estava na fase dos grandes e volumosos e assim Aladim, Ali-babá, Gulliver, Robinson Crusoé, Capitão Nemo e tantos outros heróis que povoavam meus sonhos, alimentavam minha alma viajante desde sempre, com suas aventuras, suas batalhas incansáveis.
Foi um tempo extraordinário conviver com todos esses personagens maravilhosos, porque me fiz o mais importante deles: a Sherazade menina, que todas as noites, antes de dormir, contava lindas histórias para seus irmãos menores.
Lia compulsivamente e não sossegava enquanto não concluísse uma leitura. Deixei muita panela queimar, levei muita bronca de minha mãe. Ainda não havia luz elétrica em nossa casa e era hábito se recolher cedo, mas sempre levantava pé, ante pé, para ler à luz de um lampião de gás que ficava na sala de jantar. Quando meu pai percebia que eu não estava na cama, me tomava o livro e também dava bronca.
No inicio dos anos setenta minha mãe, que trabalhava como professora e estudava, teve um bebê com múltiplas deficiências. Nossa irmã mais nova, uma linda menina de olhos azuis, era totalmente dependente, necessitava de atenção constante, cuidados especiais e, no ano seguinte, não pude ir à escola.
Havia concluído a 4ª série na escola rural e, a exemplo de minhas irmãs mais velhas, deveria morar na cidade para continuar os estudos, mas não aconteceu assim. Foi um período extremamente difícil, pois, mesmo que fossemos educadas para assumir responsabilidades desde cedo, eu tinha apenas 11 anos.
Claro que sentia falta do convívio com os colegas, das brincadeiras, mas sentia mais falta dos livros. Meu pai concordou que, vez ou outra, eu fosse à escola e, mesmo não freqüentando regularmente, a professora continuou me emprestando os livros, apesar de não haver quase mais o que ler.
Na fase das releituras, Monteiro Lobato foi fundamental. Catarse pura. Emilia, Narizinho, Pedrinho e todos os maravilhosos personagens do Sítio e dos demais cenários substituíram meus colegas de sala de aula. Foi como reencontrar a mim mesma. Emilia era quase eu (assim pensava) ou era tudo que eu queria ser: corajosa, voluntariosa, sem papas na língua. Tínhamos muito em comum: ela tinha uma jabuticabeira; eu, uma mangueira; ela, um rinoceronte, eu, um vira-lata. Tal qual Emília, eu também falava pelos cotovelos, morávamos num sitio, perto de um rio. Ela, no mundo encantado; eu, no fim do mundo.
Lia, lia e fugia da tristeza. Tomei conhecimento e consciência de uma infinidade de assuntos, refleti sobre eles, me espantei, me emocionei, me encantei. Durante esse longo ano, os heróis foram minha companhia constante e os livros meu passaporte para um mundo mais alegre que o meu. Quantas vezes me escondi para chorar e um livro acolheu minhas lágrimas!
Descobri os poetas e com eles a alegria das rimas, dos versos, das metáforas. Não entendia, mas sentia e esse sentir me transformava num ser especial, iniciada num mundo que só eu compreendia, só eu sabia o quanto significava, o quanto modificava minha vida.
Aprendi muito, apesar de tudo. E quando penso no quanto foi difícil e longo aquele ano, não é exagero lembrar porque sobrevivi. A literatura me salvou.
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