Era eu mais o cabo Chico, na empreitada. O cabo era responsável pela diligência, por conta da patente, só mesmo pela patente. Apesar de soldado raso, sempre fui mais destemido do que ele, é bom que se diga.
Não que Chico fosse frouxo, não era bem assim. E não digo isto pelo fato de ele ser meu superior, pois não sou de me curvar a formalidades nem me presto ao ofício de puxa-saco. Mas a verdade é que se tratava de homem de costumes muito jeitosos e delicadeza de alma inaceitáveis para quem tinha que lidar com indivíduos de má índole, salafrários, gatunos e até assassinos.
Muitas vezes, na sala de interrogatório – melhor lugar para se destrinchar uma questão e se ler a natureza de um sujeito bom ou mau –, vi o cabo Chico demonstrar moleza incompatível com a farda, dispensar a verdadeiros facínoras tratamento que deve ser dispensado só a homens de bem. Coração mole. Maior tolice que um homem pode fazer é dar ouvidos e coração a quem não deve.
Eu dizendo gente ruim é gente ruim, cabo, não perca seu tempo, meu amigo. Ele respondendo soldado, deixe disso, soldado, não julgue um filho de Deus pela aparência nem acuse ninguém de ter feito um malfeito só porque disseram que o malfeito foi feito. O infeliz se aproveitando dos bons sentimentos do coitado e repetindo é isso, cabo, pois é isso, meu cabo, é o que tenho dito aqui desde o dia em que cheguei. Mas esse soldadinho aí não me escuta e só quer saber de bater e bater, como se estivesse lidando com um jegue empacado.
E o inocente do Chico me condenando, não quero saber de valentia aqui dentro, rapaz, interrogue sem apelar para a maldade, não faça isto, pois não aceito violência aqui, soldado, como se eu fosse o meliante e o outro o bonzinho. Já se viu?
Não que às vezes o sangue não ferva, a mão não fique pesada e eu não perca a cabeça. Acontece. Mas não tinha acontecido ainda com aquele peste sem vergonha, e isto foi o que mais me doeu. Eu dizendo não encostei a mão nesse traste, cabo, e o cabo gritando não minta, não minta, soldado, que o homem está com o olho roxo, a testa aberta, o beiço inchado. Tão desgraçado o desgraçado, que até se feriu no prego da porta para dizer que fui eu quem o machucou, e depois sair da Delegacia rindo e debochando da autoridade.
Mas a justiça não falha e o miserável apareceu morto em um buraco escuro, dias depois de sumir da minha frente. O cabo Chico pensa que fui eu o providenciador do desaparecimento e fez de tudo para me enquadrar numa penca de processos, até administrativos, para que eu perdesse o ganha-pão e ainda fosse preso. Só não conseguiu por falta de provas. Pois provas não são encontradas em qualquer esquina.
No dia da diligência, marcada com quase uma semana de antecedência, nós deixamos a Delegacia em Riachão bem cedo, seguindo o rastro de um sujeito com cara de perigoso, que estava escondido e acoitado lá para os lados do Moquém, em uma tocaia que já durava bom tempo, à espera de algum inocente para roubar ou matar. Ou roubar e matar, que gente ruim não economiza na hora do mau serviço.
Não tínhamos sequer um retrato do malfeitor para nos orientar nas buscas, para mostrar a um passante e perguntar se viu um cabra assim e assado que nem esse, mas fomos em frente, tendo como base o retrato falado que era só falado mesmo, pois nem eu nem o cabo sabia desenhar para transformar o retrato falado em desenhado.
Acabou se tornando um retrato gravado na mente, tanto que os autores da queixa descreveram o homem, de queixo comprido, dentes para fora, bigode grosso, nariz fino, olho sei lá como, testa não sei de que jeito. Também sabíamos que o mal encarado tinha umas costeletas fora de moda que desciam do cabelo pela curva da barba, até o meio da cara. Quer dizer, devia ser feio como o diabo.
Enchemos os alforjes de carne seca, preá e frango assados, rapadura e farinha. Enganchamos no lombo do burro também, preso na cela, um vasilhame grande cheio de água fresca. Prontos para a guerra, para a guerra partimos.
A pesquisa junto aos moradores do vilarejo começou na manhã do dia seguinte. A gente ia perguntando se viu passar hoje, ontem ou qualquer dia um sujeito assim, de queixo comprido, dentes para fora, bigode grosso, nariz fino, olho sei lá como, testa não sei de que jeito e amplas costeletas. Eu perguntava, oferecia a descrição, o povo ia dizendo não e não, não vi, nunca vi, e o cabo Chico só agradecendo, obrigado, muito obrigado, gentil que só uma freira, sequer se dando conta de que aqueles nãos todos não passavam de desfaçatez, os matutos estavam era protegendo o endiabrado.
A minha preocupação era só encontrar o rastro do sujeito, para levá-lo são e salvo às barras do Tribunal e fazê-lo pagar pelo crime cometido. O delegado me amofinando, estamos perto do homem, soldado, vamos pegá-lo, você terá que se comportar como autoridade policial e não como torturador. O senhor não vai me triscar um dedo no preso, soldado, é uma ordem, não é um pedido. Parecia que falava de um santo e não de um monstro, agora vejam.
Era ele, só podia ser aquele, não tinha como ser outro o indivíduo que encontramos na terceira ou quarta manhã de buscas, deitado em uma esteira, à sombra do umbuzeiro florido e forrado de umbus, uns verdes e outros amarelos. O cabo fez o gesto com a mão para que eu me contivesse e passou à minha frente, como a mostrar quem carregava a maior patente e era o responsável pela missão, grande bosta.
Perguntou se podia fazer umas perguntas e o suspeito respondeu que sim, sem demonstrar qualquer susto ou apreensão. Nem um pouco preocupado com a presença da lei, cínico que só ele. Olhei bem nos olhos do sonso e fui dizendo muito bonita essa sua costeleta, seu fulano, há quanto tempo o senhor a usa? O cabo me mandou calar a boca, calar a boca, e se dirigiu ao queixo fino como se estivesse se dirigindo a um príncipe: já andou por tal lugar assim, assim? Conheceu fulano de tal? Envolveu-se em briga não sei quando, que resultou em morte? É fugitivo? Porta arma de fogo ou faca, punhal, peixeira?
E o descarado não, não, não, não, não senhor, não fiz, não andei, não briguei, não uso arma, não sou eu, não, não, não, meu sangue subindo pelas veias do pescoço, pois via a mentira nos olhos do cabra ruim, e o cabo nada de agir.
Até que eu disse cabo, preste atenção, cabo, ora, ora, cabo, ao menos reviste o homem, não adianta perguntas e só perguntas por que esse demônio vai negar e mentir até não agüentar mais. O cabo disse se acalme, não me acalmei. Agarrei o costeleta pelos colarinhos, sacudi para um lado e para o outro, para cima e para baixo, porque se tivesse qualquer arma de fogo ou de lâmina escondida no corpo ia cair. E caiu.
Caiu o canivete que o suspeito carregava no bolso da bunda, enquanto eu gritava está aí a prova, a prova aí está, a arma com a qual o bigode grosso perpetrou o crime. Foi então que o cabo me empurrou para trás, tomou o homem de minhas mãos e o levou para detrás de uma cerca que passava rente ao umbuzeiro. Dando ordens para que eu me acalmasse, ficasse onde estava, não desse um passo à frente, pois ia interrogar o suspeito a sós, imaginem.
Eu fiquei para morrer, com vontade de enforcar o cabrão e também o cabo conivente, e logo, logo o bestalhão saiu de trás da cerca, ordenando vamos embora, soldado, vamos embora que o homem é inocente.
Eu disse cabo, pelo amor de Deus, cabo, ponha a mão na consciência, eu não acredito que o senhor acredite na inocência desse meliante. O homem é inocente, ele repetia, inocente, esse aí nunca matou nem uma mosca. Eu já estava com os nervos querendo sair todos pela boca quando perguntei e o canivete, cabo, o senhor não viu o canivete? Ele respondeu com a serenidade de um anjo e não com a firmeza de um policial:
– O canivete ele usa para descascar laranja.
E ainda repetiu, nas minhas barbas, diante dos meus olhos arregalados, dos olhos arregalados do burro de carga que nos esperava para fazer o caminho de volta:
– Para descascar laranja.
Na remota década de 60, todos os dias, no final da tarde, uma cambada de moleques entanguidos plantava-se à porta da casa de dona Purcina, no bairro Aldeia, à espera da ração de bola. Éramos quase todos do mesmo tope e todos da mesma cor: marrom-descaso. Integravam a cabroeira: Cleto, Valdemar, Paredão, Tonico, Berto, Zé do Jaburu, Orlando da Bela, Nivaldo, Walter do Candinho, Pedro e Solimar. Eventualmente, apareciam no terreiro: Marcelo Castro e Antônio Macedo, os dois únicos bem-nascidos do bando. Os outros eram xerém. À época, bola era produto raro e caro. Muitas vezes disputamos rachas animadíssimos com prosaicas bexigas de boi ou bolinhas de meia. No dia em que comprei minha primeira bola de borracha, uma autêntica “casco-de-peba”, não consegui me concentrar na aula: meu pensamente não se desgrudava dela.
Parafraseando Bandeira, aquela bolinha foi minha primeira amante. E como o porquinho-da-índia do Poeta, ela não fazia o menor caso dos meus acenos e carinhos: preferia os chutes certeiros de Paredão e Solimar, o que me deixava roído de ciúmes...
Perdidos naquela aldeia remota, onde o rádio era um luxo só permitido a dois ou três ricaços, tínhamos uma verdadeira veneração pelo único time que conhecíamos: o do Pelé. Qualquer um de nós sabia de cor e salteado a escalação daquela máquina de destroçar adversários: Gilmar, Mauro, Dalmo, Lima, Zito, Melgálvio, Calvet, Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe. À época, o time da Vila não tinha o menor pejo em pegar quatro gols numa partida; Pelé, Coutinho e Pepe, faziam cinco ou seis, dependendo do humor de cada um. Houve um dia, porém (14 de novembro de 63), em que o Milan cruzou o caminho do Santos para tirar-lhe o título de bi-campeão Interclubes. Para desbancar a equipe da Vila, o time italiano contava com a cumplicidade e a competência de dois brasileiros: Mazola e Amarildo, também conhecido como “o possesso”. Para os mais jovens, um lembrete: Amarildo fora o substituto de Pelé na copa de 62 da qual saiu consagrado. Era um centroavante rompedor e perigoso. Não bastasse isso, o Santos, naquele dia, não podia contar com Pelé, Zito e Calvet. 130 mil torcedores, no Maracanã, assistiram, consternados, a um primeiro tempo em que o Santos levou dois gols e não fez nenhum. Nos mais antigos, bateu a síndrome de macaranaço, medo de que se repetisse ali o que ocorrera em 1950, quando perdemos a copa do mundo para o Uruguai. Ledo engano. Se os italianos tinham um “possesso”, o Santos tinha um “alucinado”, Almir Pernambuquinho que, literalmente, comandou a reação e a virada sensacional. Vencemos por 4X2. Um dia para não ser esquecido.
Por que me lembrei disso agora? É escusado explicar. Com a mesma angústia vivida há 47 anos, vi o time dos “Meninos da Vila”, com três jogadores a menos, segurar a fúria do Santo André, na tarde do dia 2 de maio. Neymar, Robinho e Ganso fizeram a diferença. Finda a peleja, só me faltou a companhia dos moleques da minha aldeia, notadamente do Paredão, para que a alegria fosse completa. Um dia para ser lembrado, mesmo por um flamenguista juramentado como eu.
Um comentário:
fico pensando em meu pai: se estivesse vivo adoraria ler essa crônica.
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