terça-feira, 2 de novembro de 2010

Nas pegadas do cangaço


Em “Essa Terra”, livro do escritor baiano Antonio Torres, Totonhim, narrador da estória, trava o seguinte diálogo com o seu irmão Nelo, personagem central do livro:

“–  Lampião passou aqui.
   Não, não passou. Mandou recado dizendo que vinha, mas não veio.
   Por que Lampião não passou por aqui?
    Ora, ele ia lá ter tempo de passar neste fim de mundo?”

Esse lugar denominado de fim de mundo por Nelo, não é um lugar fictício, mas a cidade de Sátiro Dias, metade sertão, metade litoral norte baiano, hoje com uma população de vinte mil habitantes, todos orgulhosos de, ao menos, Lampião ter se lembrado do lugar, sinal de que eles tiveram lá alguma importância no seu passado histórico.

A figura controversa de Lampião até hoje povoa e fascina o imaginário popular, com suas histórias ou estórias, verdadeiras ou falsas, que um dia transformarão o mito antropológico sertanejo na mais pura lenda de grande evocação poética, elevando-o da condição de bandoleiro para o pedestal dos santos mártires, com direito a liturgias matinais nos mosteiros e conventos.

Conforme o ceguinho de Águas Belas, em versos do poeta recifense Carlos Pena Filho, no poema “Episódio sinistro de Virgulino Ferreira”, tal evento já aconteceu, quando faz crer que a encarnação de Lampião foi puro delírio coletivo:


“(...)
                      VI

A feira de Vila Bela
Tem chocalhos para vacas.
Na feira de Vila Bela,
Feijão e pó nas barracas,
Na feira de Vila Bela,
Arreios, cordas e facas.

Na feira de Vila Bela,
Chapéus de couro, alpercatas.
Na feira de Vila Bela,
Um ceguinho pede esmola.
Na feira de Vila Bela,
O cego e sua viola:

– A lenda tem pés ligeiros
E corre mais no sertão,
Corre mais do que  lembrança,
Mais que soldado fujão.

Corre mais que tudo, só
Não corre mais que oração
E isso mesmo quando é feita a
Padre Cícero Romão.

Hoje todo mundo sabe

Quem foi ele, o capitão.
Junta o sabe e o não sabe
E inventa outro Lampião.

Mas dele mesmo, não sabem
E nem nunca saberão,
Pois ele nunca viveu,
Não era sim, era não.

Como essas coisas que existem
Dentro da imaginação.
Quem puder que invente outro
Virgulino Lampião.”



Se Lampião, o encarnado, mandou recado ao povo de Sátiro Dias, nessa época apenas um arruado chamado arraial do Junco, com uma praça, uma capela, um delegado e um soldado de polícia – medroso que só, segundo contam os viventes de então –  dizendo que ia lá, e não cumpriu a palavra por ter coisas mais importantes a fazer, o rei do cangaço acampou em sua sede, a cidade de Inhambupe, e lá fez suas estripulias. Contava o meu pai, sempre com um sorriso de satisfação nos lábios, que um primo nosso de Inhambupe, nessa ocasião dono de uma loja de tecidos, negou um pedaço de pano para uma senhora necessitada, na presença do Capitão Virgulino Ferreira. Este, indignado com a velhacaria do comerciante, deu ordem aos seus cabras para invadir a loja, pegar as mercadorias existentes lá, e distribuir entre os mais carentes da cidade. O povo fez uma festança. O dono da loja esperneou, esbravejou e Lampião ordenou que ele fosse pendurado de cabeça para baixo no poste mais alto da praça. Passou um dia e uma noite distraindo a molecada como um judas em sábado de aleluia, vindo a ser solto a pedido do mangangão político local que acoitava o bando mais temido e ao mesmo tempo mais amado da história do cangaço.
Cresci ouvindo o meu avô chamar Lampião de bandido e de outros adjetivos nada abonadores, enquanto o meu pai, sempre de visão romântica, dizia ser ele, o rei do cangaço, um justiceiro mal compreendido. E nos contava episódios em que ele posava de mocinho, defendendo os fracos e oprimidos da vilanesca tirania do coronelismo de então.

A Bahia veio a conhecer o cangaceirismo de Lampião depois que ele, acossado pelos macacos, foi obrigado a atravessar o Rio São Francisco, se acoitando no Raso da Catarina, cujos habitantes, remanescentes ou descendentes dos seguidores do Conselheiro, ainda ressentidos da crueldade do massacre da Guerra de Canudos, lhe deram guarida sem maiores delongas. Consta que, no deslocamento do bando para a região de Inhambupe, Lampião, rosto ainda desconhecido da maioria da população, no caminho puxou conversa com uma senhora, pote d’água na cabeça e marcas de sofrimento no rosto curtido pelo sol causticante da região:

  Bom dia! A senhora não tem medo de encontrar Lampião por aí? – perguntou matreiro.
    Não. Dizem que ele é um bom moço.
    E se a senhora se encontrasse com ele, o que fazia?
  Ah, meu filho, eu lhe pedia uma ajuda para comprar “um de comer”!
O rei do cangaço puxou da algibeira um maço de contos de réis e entregou para a senhora, que de tão maravilhada que ficou, o chamou de santo.
Quando o Marquês de Pombal expulsou os jesuítas do Brasil, em 1759, o interior do país, principalmente dos sertões nordestinos, perdeu sua principal via de ligação aos centros urbanos mais desenvolvidos e esse isolamento causou o despovoamento das reduções e missões, ocasionando a proliferação do cangaceirismo e do jaguncismo, que aterrorizavam a população remanescente em investidas de assaltos ou de crime de morte por encomenda. O fiel da balança da Justiça pendia sempre para o lado mais forte, causando um sentimento de revolta e de anarquia jurídica na população. Deste modo, acendia no povo a devoção pela lei de Talião, olho por olho, dente por dente, praticada pelos cangaceiros, que, ao atacarem os poderosos, caíam na simpatia da população social e economicamente marginalizada, sendo idolatrados por alguns.
Em um Nordeste predominantemente agrícola, cujo trabalhador rural se submetia a uma árdua jornada diária de onze horas, sob um sol inclemente esquentando o juízo do infeliz por uns míseros 500 réis, que não davam nem pra comprar um quilo de carne que custava quase o dobro (800 réis), ser cangaceiro significava poder realizar o sonho de liberdade econômica e de sentir o saboroso afago na vaidade, pois o cangaço, além de propiciar o ganho rápido de dinheiro, também proporcionava fama e respeito.
Como a fome não sustenta bandeira ideológica, nem a humilhação das injustiças praticadas pelos poderosos dá suporte necessário à manutenção da Fé, colocados juntos na balança da Providência Divina, os coronéis de um lado e os virgulinos do outro, certamente estes últimos se livrariam do Fogo Eterno do Inferno ao pousarem leve como plumas flutuantes na bandeja das ponderações etéreas, vítimas de uma realidade severina e cruel; e os primeiros, os coronéis, braço econômico da Lei, da Moral e da Justiça,  afundariam como chumbo mergulhado na água, sob rigorosa acusação de serem os verdadeiros mentores, agenciadores e algozes dos Lampiões.



Um comentário:

Toninho disse...

Umm belo relato deste icone de nossa historia, sempre é bom ler algo diferente de Lampião.É como refazer a historia.Muito bom mesmo.Um abraço Tom.