sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Edna Lopes - Rearrumando a vida

o mais importante é a mudança,
o movimento,
o dinamismo,
a energia.
Só o que está morto não muda!
Repito por pura alegria de viver:
a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não
vale a pena!!
(Clarice Lispector - Una propuesta de Vida Creativa)

Ontem foi o dia de escutar meu Pássaro da Alma* pois cada vez que se aproxima um final de ano, o cansaço, uma ponta de impaciência se instá-la diante da montoeira de papeis e livros que utilizo em meu trabalho e sinto que preciso de um tempo para arrumar meus armários e gavetas sob pena de não mais conseguir me achar em meio a pilhas de pastas, livros, jornais e revistas.

Uma aventura remexer meu baú de espantos, pois espanto-me sim quando me dou conta do por que guardei e guardo tanta coisa que não tem utilidade imediata nem pra mim nem pra ninguém. Será apenas o hábito de relembrar, de manter um pouco mais a sensação, o prazer e alegria que tal objeto seja lá de que tipo for, me causou? Dr.Freud me socorra!

Remexendo pastas e gavetas vi minha vida, a parte de mim que pesa e pondera, durante todo este ano. Cartões de embarque, prestações de conta das viagens, pautas de reuniões, cópias de relatórios, cópias e mais cópias de leis, de textos sobre os mais diversos assuntos da educação e da cultura, convites e crachás de eventos, cópias de e-mails confirmando reservas de hotel...Tudo isso me deu a noção exata do quanto caminhei, do quanto estou cansada e necessitando mesmo de férias, de priorizar a saúde física.

Desfazendo as pastas e as gavetas, reencontro também a parte de mim que delira. Um desfile de maravilhosas inutilidades afetivas. Canhotos de ingressos de shows e peças teatrais, convites para festas, cartões de restaurantes, letras de música com arranjo para coros, rascunhos de poemas em guardanapos de papel, mapas dos lugares por onde andei, trabalhei, sonhei... Tudo isso me dá a noção exata de que não descuidei de minha alma, de meu coração nem da minha saúde metal. Tudo isso foi e é importante para manter a sanidade, o equilíbrio.

Abrindo empoeiradas caixas e envelopes em pastas e gavetas, reencontrei fotografias, recortes de jornais, livros, poemas, cartas... Em cada um desses objetos, a minha alegria, a alegria das pessoas com quem estive, os amigos e amigas que fiz, as pessoas queridas que reencontrei, os momentos felizes ou tristes que vivi.

Revolvendo pastas e gavetas, não pude deixar de entristecer quando reencontrei objetos e relembrei pessoas que não mais encontrarei nessa dimensão. Não evitei a onda de saudades e fiz uma prece por cada uma delas, embora saiba que essa sensação de vazio permanecerá até quando as feridas na alma cicatrizarem. Sei que jamais as esquecerei.

Desfazendo-me das roupas, sapatos e bolsas, lembrei-me de uma amiga que teve sua cidade, sua casa e sua vida invadida por uma enchente. Disse-me ela: “Eu tão vaidosa, tão cheia de caprichos e cuidados com minha aparência me vi apenas com a roupa do corpo. Mas tive família e amigos para recompor minha vida e vi tantos que estavam sem nada e sem ninguém. Pensei comigo mesma: não tenho o direito de me lamentar, estou viva, tenho meu trabalho, minha família, meus amigos. O que mais uma pessoa pode precisar para ser feliz?”

Então, cada vez que rearrumo meus espaços e separo roupas, calçados, brinquedos, livros penso que muitos precisam daquilo para manter a dignidade e ser feliz e fico feliz em poder ajudar, em poder, de alguma forma, ser útil.

Arrumar armários, gavetas e pastas é também exercício de meditação, de silêncio, de reencontro comigo. Tudo aquilo que passa pelos meus olhos para ser jogado fora ou reorganizado para uso num futuro próximo teve ou tem importância segundo critérios que eu mesma estabeleci. Não dá para guardar tudo e isso talvez seja mais um motivo para a saudade.

Remexer pastas e gavetas me dá um prazer especial pois embora não tenha muito tempo para fazer isso rotineiramente, gosto muito de fazê-lo porque me faz arrumar algumas delas dentro de mim mesma. Assim, relembrei passagens que me deixaram triste, indignada mas também relembrei outras que quase não coube em mim de alegria, de felicidade.

Revolver aspectos da minha vida me faz refletir o quanto viver é maravilhoso justamente por não ser preciso, exato. O inusitado, o inesperado será sempre bem vindo. “Navegar é preciso, viver não e preciso”, lembram?

Arrumar pastas, gavetas e armários tanto me dá um sentido de realidade quanto me faz sonhar com um tempo novinho em folha que vou viver. Então a tristeza pelas perdas, a saudade dos ausentes e as alegrias do caminho se misturam e eu sinto que mais uma vez é tempo de esperança, de viver o que me cabe, de ser muito, muito feliz, sempre!

Arrumar pastas, gavetas e armários me dá a oportunidade de agradecer a todos/as e a cada um/a que esteve e está comigo, o bem que cada um/a na sua inteireza me faz. Obrigada! Namastê!

*"Por isso vale a pena talvez tarde, pela noite, quando o silêncio nos rodeia, escutar o pássaro da alma que mora dentro de nós, no fundo, lá bem no fundo do corpo."

 
Pássaro da Alma: A relação entre a nossa alma e nós mesmos é explicada de forma delicada e poética neste livro. Vale a pena ler!


Nenhum comentário: