terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Maurício Melo Júnior - Elogio à preguiça

O evento foi armado para incentivar investimentos econômicos na Bahia. O centro de convenções abriu seu salão de exposição e ali era possível desvendar todas as oportunidades, todas as potencialidades agrícolas, industriais, turísticas. Das belezas naturais de Abrolhos, às pedras da Chapada Diamantina, à fronteira produtiva do Oeste, às praias, aos sertões, às infindáveis modalidades de carnaval, tudo reunido e exposto para encantar os olhos e afrouxar os bolsos abastados de empresários paulistas.

Homens pragmáticos e objetivos, eles, os paulistas, chegaram à caráter. Com ternos bem cortados, celulares modernos, faros refinados, desconfianças na ponta dos dedos. Na companhia do então Secretário da Indústria e Comércio, Benito Gama, e com o auxílio luxuoso de belas baianas vestidas a rigor, os empresários e investidores em potencial cortaram a fita e invadiram o recinto com todas as pompas necessárias.

Foi aí que o secretário entrou em pânico. O primeiro estande brindava o turismo local e, bem deitado em sua rede, num retrato colossal, Dorival Caymmi, sorriso aberto, e sua legendária preguiça recebiam os visitantes. Benito quase chora ao ouvir o menos ousado dos convidados lhe perguntar ao ouvido: “Este é o trabalhador que vamos encontrar?”

Todo esforço começava a ir Subaé abaixo.

Os detratores da Bahia podem dar razão aos paulistas, um povo trabalhador, que em bem menos de um século transformou uma vilazinha chinfrim na maior metrópole da América Latina. De minha parte, fico com Caymmi. Tenho certeza que foi a preguiça de andar e carregar peso que fez nossos ancestrais inventarem a roda. E neste ritmo dolente nosso Dorival construiu belezas infindas. Noves anos foram necessários para fechar a saga de João Valentão, e valeu à pena esperar.

O repórter que foi entrevistá-lo em seu apartamento no Rio de Janeiro o encontrou sentado em uma cadeira de balanço de frente para um ventilador. “Mestre, por que não liga o ar-condicionado?”, quis saber o curioso. “Prefiro o vento, meu filho. Veja que foi neste balanço aqui que compus, por exemplo, Milagre – Maurino, Dadá e Zeca…”, cantarolou. E a conversa seguiu. No final da tarde tomou o elevador para levar o repórter até a porta do edifício.

Desceu junto com eles uma menina com sua babá. “Como está na escola, minha mocinha?”, quis saber o poeta. “Tudo bem, tio. Hoje a gente aprendeu música.” “E que música vocês aprenderam?” “Meus companheiros.” “É mesmo? Como é esta música?” “Minha jangada vai sair pro mar / vou trabalhar / meu bem querer. / Se Deus quiser quando eu voltar do mar / um peixe bom / eu vou trazer. / Meu companheiros…”, a menina cantava e os olhos do compositor marejavam de emoção.

Por tudo isso, mais vale sua preguiça, mestre Caymmi, que todos os dias de trabalho do senhor secretário e seus convidados.

Preguiça é bom remédio, há anos sabe bem outro poeta, Orlando Tejo. Com preguiça e criatividade ele fugiu do serviço militar obrigatório. Alegou às autoridades constituídas que não podia servir à pátria por ser arrimo de família. Desconfiados os milicos foram tirar a prova. Numa manhã radiosa de Campina Grande bateram à porta do poeta. Atendeu um irmão do mestre Orlando. “O senhor Orlando Tejo se encontra?” “Tá sim, mas dormindo.” “Mas ele não é arrimo de família?” “Isso eu não sei. O que sei é que ele toca uma sanfona arretada.”

Os defensores da pátria entregaram os pontos. Não havia espaço para sanfonas e redes no quartel, com certeza.

Todas estas histórias são de tempos passados. Há cerca de quinze anos vivemos outros ventos, desde que virou moda ler os ensinamentos de um italiano de nome Domenico de Masi. O ócio criativo tornou-se febre e aquilo que Caymmi e Tejo apregoavam com esplendor ganhou fórum científico. Hoje até mesmo os trabalhadores, os ferrenhos sindicalistas defendem uma jornada de trabalho mais condizente, com espaços para o ócio e o lazer. Quarenta horas já, gritam nas assembleias e pelos corredores legislativos. Precisam de tempo para melhor cuidar da família, da saúde, da vida. E, maus leitores de nossos intelectuais, entronizam o velho Masi italiano.

Na preguiça de minha rede antiga redobro o fôlego criativo relendo meu Gilberto Freyre de sempre. Pois bem, lá pelos idos dos anos quarenta, quando o mundo saía de mais uma insana guerra, o lobo de Apipucos escrevia dizendo que os homens precisam de mais lazer e vagar para se tornarem mais humanos. E já chamava isso de, pasmem!, ócio criativo. Quase ninguém ouviu.

Gilberto tinha tutano, conhecia a rede, indiscutivelmente uma das mais fantásticas invenções da humanidade. Lugar de parto e descanso, de amores e deleites, serve também à reflexão. Eu mesmo conheci um advogado e escritor de Belém do Pará, Benedicto Monteiro, que escreveu toda sua obra na rede. Até mesmo os vetustos pareceres sobre direito agrário, sua especialidade, nasceram no remar daquele balanço.

Conhecedor de mundos e universos vastos, Câmara Cascudo nos ensina que “toda ou quase toda aquela gente que arrancou o Acre para o Brasil nasceu e morreu dentro de uma rede balouçante”. E olhe que não foi fácil ganhar aquelas paragens. Houve tiros e revolução, matança e correrias, essas gestas cruéis para expulsar os índios de suas terras. E no fim da luta aqueles homens e aquelas mulheres, gente tão do Brasil, voltavam para as redes e seguiam fazendo a nação.

De minha parte faço o mesmo. Nesta tarde ensolarada, paro aqui o ofício de cronista e vou para a rede dar alento ao meu criativo ócio.


Um comentário:

Ana Lúcia Cruz disse...

Perfeito! O texto encanta e emociona. Muito bom, mesmo! Parabéns ao Maurício Melo Júnior pela sensibilidade.