Adorno descarregou sua mochila de bandeirante na beira de Pikuí-upá (Lagoa das Pombas). Depois de dois meses de viagem sufocante através das paisagens desconhecidas de um Brasil apenas revelado, seus olhos ainda mantinham viva a imagem do Araberí, o indiozinho paiaiá, que volta e meia retornava num sonho persistente colado em sua alma como um carrapato. Adorno já quase nem comia nem bebia. Estava no limite das suas forças, uma caricatura daquele que numa noite quente no sertão da Bahia afastou-se do grupo de bandeirantes que desbravava o mato à procura de índios e embrenhou-se solitário atrás do resplendor fosforescente do pequeno paiaiá e nunca mais voltou a ver seus companheiros de rapina.
Obsessionado pelo resplendor intermitente avançou durante dias e dias até Pikuí-upá, sem saber por que nem para que. Afinal, nunca na sua vida tinha visto um paiaiá, menos ainda do tamanho do Araberí. Era sua primeira bandeira, sua estréia no tenebroso e rotineiro mundo da caça ao índio. Mas Adorno era uma exceção nessa época em que um índio era apenas um multiplicador gratuito da fortuna do seu dono.
Adorno resistiu em participar dessa expedição, talvez num átimo visionário de humanidade considerava a escravidão a pior das heranças da sua época. E essa recusa era o que há alguns dias, na “kaapuera” perto de Inhambupe, começou a vir à sua memória cada vez que escutava uma voz que lhe dizia: Tur! (venha), e logo a seguir a imagem esplendorosa do paiaiazinho perguntava: Marápe nde rera? (Qual é o teu nome?).
Adorno, que nunca tinha ouvido falar nas incursões lingüísticas do Padre Anchieta no mundo tupi, inexplicavelmente entendia perfeitamente as mensagens e seguia em frente como hipnotizado atrás da luzinha do Araberí repetindo ofegante o seu próprio nome: Adorno... Adorno... A bandeira retornou com um satisfatório carregamento de índios escravizados, condenados a preencher as últimas páginas da inexorável extinção da sua nação.
Mas Adorno nunca retornou. Perdido na imensidão do céu das caatingas aferrou-se com suas últimas forças à mochila, de onde extraiu o mesmo crucifixo que beijou antes de partir. Colocou os lábios em forma de um último beijo e aproximando seu rosto do crucifixo, adormeceu moribundo. O vento acariciou o “pirityba” (juncal) e a noite cresceu como uma assombração gigantesca por cima do corpo do bandeirante imóvel. Ereîúpe? (Você chegou!)... Enekoema! (Bom dia!). O Araberí, encandeceu o bandeirante que sobressaltado acordou falando em tupi: Aîu (eu vim, eu cheguei!) no meio de uma roda de índios paiaiás anciãos que, pegando ele pelo braço, dançaram durante dias e dias em silêncio e felizes pelo encontro com alguém que tentou torcer o rumo que o seu povo lhe impunha. Em seguida percorreram com Adorno os corpos infinitos da sua nação extinta espalhados no vento frio da noite da caatinga. Adorno chorou como nunca tinha chorado e desapareceu no horizonte com os anciãos paiaiás. A Araberí, lentamente, diminuiu sua luz até a escuridão total.
*Carlos Pronzato é escritor e cineasta argentino radicado em Salvador, Bahia.
Um comentário:
Dizem q lindo não é comentário q se faz após a leitura de um texto literário. Mas pode haver coisa mais linda do que esse texto, ainda mais escrito por um baiano argentino?Lindo!(Maria Olimpia)
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