segunda-feira, 16 de julho de 2012

Cineas Santos - Em nome do pai


         Tenho um amigo humorista que, se necessário, abre mão da amizade, mas não perde a piada. Certa feita, afirmou: “Ou o Cineas não tem pai, ou não passa de um bom filho da mãe”. A tirada humorística tem sua razão de ser: ao longo da vida, escrevi dezenas de textos sobre dona Purcina e poucos, muito poucos, sobre seu Liberato. Mais que minha mãe, dona Purcina foi minha bússola por muito tempo. Mesmo quando saí da influência do seu raio de ação, procurei pautar minha conduta tendo como chão o que aprendi com ela. Não bastasse isso, minha velha era meio “espaçosa”, autoritária e exigente. Uma autêntica matriarca do sertão.

         Já seu Liberato era um sertanejo simples, ordeiro, contido. Se tivesse de defini-lo usando um único adjetivo, eu nem pestanejaria: exato. Nunca o vi eufórico nem colérico. Não caçava, não pescava, não maltratava os animais. Não fazia versos, não tocava viola, não contava vantagens. Em matéria de música, conhecia duas, mas raramente cantava. Quando o fazia, não desafinava. Um homem perfeitamente integrado ao seu hábitat. Suas aspirações não iam além dos limites de suas roçadas. Ao longo da vida, fez apenas três viagens: Juazeiro (BA), Brasília e São Paulo. Em nenhuma delas fez boa colheita. Fincou raízes fundas no Campo Formoso de onde só saiu quando perdeu  a visão.

         Nascido no povoado São Braz (hoje, município de São Braz do Piauí), estudou apenas três meses. A despeito disso, sabia ler, escrever e contar. Da terra, sabia quase tudo, tanto que trabalhou a vida inteira numa gleba de 100 hectares sem exauri-la. Ao contrário dos lavradores vizinhos, nunca fazia queimadas. Limpava a terra e a preparava para o plantio com o mesmo cuidado que dedicava aos animais. Sabia ler os sinais da chuva em tudo: na floração dos mandacarus, na agitação das formigas ou na posição da boca do ninho do João-bobo. Dormia cedo e acordava muito cedo: precisava fazer a “leitura” da barra do dia, um indicador da presença ou da ausência das chuvas.

         Tinha apenas duas mudas de roupa, ambas azuis. Quando estava entre os seus, contava causos engraçados, com aqueles volteios que caracterizam a prosa sertaneja, tão bem recriada por Guimarães Rosa.

         Não seria exagero afirmar que era um sertanejo atípico: não gritava, não corria, não tinha receio de se mostrar terno e delicado. No final do dia, ao regressar do roçado, sempre nos trazia alguma coisa: uma melancia temporã, um favo de enxu, uma flor de rabo-de-raposa, uma simples pedrinha lisa... Com ele, aprendi a campear nuvens, tomar café forte, honrar a palavra empenhada, apreciar chuvas brandas e gostar de mulheres formosas. Um pai melhor do que ele eu não fiz por merecer.


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