Decididamente, não gosto de viajar. Ainda assim, vez que
outra, me surpreendo realizando viagens improváveis rumo ao nada. Foi o que
aconteceu, por exemplo, no final da década de 80, em Boa Vista (RO), onde eu
participava de um (como direi?) convescote
literário. Se bem me lembro, um escritor da região gastou uns 40 minutos
para provar que a pronúncia correta era Roraíma
e não Roraima, mas isso já é outra história. O certo é que, à noite, um dos malucos
presentes sugeriu um passeio a Santa Helena, na Venezuela, que fica a pouco
mais de 100 km de Boa Vista. Como não havia coisa melhor a fazer, o grupo
aceitou.
Na manhã seguinte, sacolejávamos, numa caminhonete
desconjuntada, um poeta encharcado de álcool e nicotina, um pintor surrealista,
um vendedor de ilusões (palestras motivacionais) e eu. Estrada esburacada,
lama, mosquitos e descampados a perder de vista. A paisagem de Roraima lembra
Campo Maior, com uma diferença: em vez de carnaubais, são os buritizais que
bordejam os igarapés. De repente, no meio do nada, o poeta, que sofria de
enfisema pulmonar, começou a passar mal. Por sorte, encontramos um povoado onde
o tempo se enroscara para dormir. Uma pasmaceira só. Paramos em frente a uma
palhoça onde se vendiam coisinhas e comida. Ao ver o poeta arquejando, o dono
da birosca foi taxativo: “O remédio está aqui“, e brandiu um frasco de Aguardente Alemã.
Enquanto o “médico” cuidava do poeta, fomos cuidar do
estômago. O vendedor de ilusões, com sua eloquência pegajosa, pediu “um café
reforçado”. E põe reforçado nisso! Nunca vi nada parecido: cuscuz, beiju,
paçoca, assado de paca, ovos estrelados, banana, café e leite... Como sou mais
estética do que gula, esqueci a comilança e lancei os olhos na garçonete, uma
indiazinha macuxi, linda como a claridade da hora. Sem levantar a vista, sem
dizer uma palavra, a mocinha nos serviu e, a um olhar do patrão, desapareceu na manhã cinzenta. Com alguma indiscrição,
pesquei-lhe o nome: Gardênia. Prometi a mim mesmo que, numa noite enluarada de
setembro, voltaria àquele fim de mundo para raptá-la. Ainda não o fiz, mas o
projeto permanece vivo em minha mente...
Melhor seria: permanecia. Na semana passada, voltando de Coelho
Neto, parei na beira da estrada para comprar frutas e apreciar umas redes
multicoloridas que fisgam os passantes pelos olhos. A vendedora era uma
indiazinha tão bonita quanto à outra, com algo mais: um sorriso Via Láctea. Falava o mínimo necessário,
mas sorria fartamente. Pedi-lhe que me sugerisse uma rede. Sem hesitar,
alargando o sorriso, indicou-me uma tangerina
com varandas verdes-alga. Naturalmente, eu teria escolhido uma azul, mas como
recusar a indicação? Por mais que eu insistisse, não me disse o nome. Chamei-a Smile. Como já não tenho idade para
fazer projetos de raptar donzelas, acho que me contentarei com a rede. Assim,
quando estiver acometido de banzo, doença comum aos da minha raça, armarei
minha rede amanhecente e me deixarei embalar no sorriso luminoso da moça anônima. Assim seja.
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