Tínhamos como vizinho um garoto chamado Jesus. Apesar do sagrado do nome, mais parecia o Cão chupando manga. Falava-se que ele era um anarquista mirim, um projeto de comunista, o Senhor das Estripulias. Meter-se em seu caminho era encomendar confusão. Só perdia para meu primo Cabaú, outro encrenqueiro de marca maior, cujas safadezas encontravam condescendência da minha tia, por ser o seu filho caçula. Pedro, seu irmão mais velho, era o contrário dele: sossegado, pacífico, e só se envolvia em confusão quando se metia com Jesus ou para tirar o irmão de alguma. Badego, meu irmão mais novo, fora batizado José Guedes em homenagem a uma paixão antiga de uma tia nossa. Mais tarde, ela se casou com outro e obrigou Maricas Coxeba, a escrivã, a trocar o nome do meu irmão para Badego. Era um chantagista de marca maior: se não o deixássemos nos acompanhar, ele abria o bico em casa. Assim, formavam-se os seguidores de Jesus que, por ser o mais velho, o mais forte e o mais brigão, detinha um grande poder de convencimento.
Aproveitando-se da inviolabilidade da conduta cristã no dia da Paixão, Jesus propôs que fôssemos ao acampamento da Petrobras em busca de rolimãs para fazermos patinete. Apesar do medo em deixar a segurança da cidade, a proposta era tentadora. Assim, antes do Sol ligar sua caldeira principal, nos embrenhamos rumo ao desconhecido que, segundo Jesus, ficava depois do campo de futebol, coisa de meia légua. E “meia légua”, na nossa cabeça, era coisa pouca.
Não era. Andamos por estradas nunca dantes viajadas por nós e quando o sol começou a ferver o nosso juízo, avistamos o cobiçado acampamento. Nossos corações dispararam de contentamento e júbilo. A alguns passos, dentro de uma grande construção de madeira e zinco, a redenção: um monte de rolimãs nos esperando. Naquele momento de êxtase se formou em nossa cabeça “a gang da calçada e suas patinetes voadoras”.
Ao darmos com o costado no acampamento, uma decepção: o portão estava fechado a cadeado. Batemos palmas. Gritamos. Apareceu um vigia com um rádio de pilha na mão. Ficamos maravilhados com o invento. Na cidade havia rádios de pilha, mas eram verdadeiros monstrengos fabricados em Serrinha. Nada que se comparasse àquele objeto falador como um corno.
O vigia parecia ser gente boa. Disse-nos que era dia de folga por causa do feriado e os petroleiros só retornariam ao trabalho na segunda-feira. Falou para voltarmos na outra semana que teríamos quantos rolimãs quiséssemos. Infelizmente, ele era apenas um simples vigia e não poderia retirar nenhum material de lá de dentro. Perderia o emprego se fizesse isso.
Pedimos água, bebemos, demos meia-volta, volver. Jesus decidiu cortar caminho: voltaríamos por dentro do mato, em diagonal, até cruzarmos com a estrada, adiante. Andamos rápido pela caatinga, usando a caixa d’água do acampamento como referência. Uma hora depois perdemos a caixa d’água de vista e não havia nenhum sinal da estrada. Que rumo tomar?
– Estamos perdidos! – falou Pedro.
– A caipora nos pegou – vaticinou Jesus, materializando nosso medo. A caipora era um bicho tinhoso, gostava de pregar peça em quem adentrava seus domínios sem lhe levar presentes, principalmente dia de sexta-feira ou feriado. E era sexta-feira e feriado. Sua ação seria intensificada. Havia relatos de caçadores atacados pela caipora que perderam o rumo para sempre e viviam andando a esmo pela mata, sem encontrar o caminho de casa.
– Alguém trouxe fumo?
– Quem ia dar fumo pra criança, Jesus? – perguntei.
– E fósforo? Alguém trouxe fósforo?
– Nós viemos buscar rolimã e não fazer fogo – falou Pedro.
– É que Chico Caçador me disse que na falta do fumo a caipora aceita fósforo como presente. É pra acender seu cachimbo. Ou então cachaça.
Não havia fumo, não havia fósforo, não havia cachaça, muito menos comida. A sede começava a apertar.
– Vamos voltar pro acampamento – disse Jesus.
– E de que lado fica o acampamento?! – perguntamos.
O Sol estava a pino, sinal de que devia ser meio-dia. A caatinga é flora sem serventia, não é árvore nem mato. Caminhamos a esmo até encontrar uma árvore que nos deu sombra. Havia uns pés de murici e cambuí, carregados, e aplacamos um pouco a fome. Como eram frutinhas leitosas, acalmamos também a sede. Nossa esperança era de que já tivessem sentido a nossa falta lá na cidade e viessem atrás de nós. Nas atuais circunstâncias, uma surra seria bem-vinda.
Jesus e eu subimos na árvore até o topo para observarmos os arredores. Nenhum sinal da estrada; nenhuma indicação de que houvesse vivente naquele fim de mundo. Cabaú e Badego ameaçaram chorar, mas foram contidos por Pedro, que segurava um cacete. Jesus divisou um vulto à distância. Era gente ou a caipora? Observamos. Pelo chapéu na cabeça e o andar, era gente. Gritamos. Ouvimos nosso eco. Cabaú chorou forte e nós rezamos. Os anjos vieram em nosso socorro. Ouvimos a voz da Providência nos chamando:
– Pedro?! Cabaú?!
– Paiêêê!!!!!!!! – responderam.
Estávamos a dois passos da estrada e não vimos. Retornamos cabisbaixos, soturnos, mas felizes, apesar do sermão do nosso tio doer mais do que surra de cipó-caboclo. Por ser uma Sexta-feira Santa, não apanhamos, porém nunca mais pudemos brincar com Jesus.