– Não há nada mais a
se dizer, a não ser adeus! Aqui nossos caminhos se separam e, para a nossa
felicidade, é bom que não voltem a se cruzar.
Assim sentenciou
Carmesita, sem emoção nem compaixão. Inflexível e seca, sem chances para
recursos ou apelação. Impessoal, como se
falasse ao vento.
Não era um rompimento
qualquer, de paixões platônicas ou amores transitórios. Havia uma história, com
início, meio e, agora, o fim. O desenredo de um relacionamento apaixonado, vibrante,
cujo “adeus” nunca fora cogitado. Mas nada dura para sempre, nem mesmo os
amores eternos.
– Eterna é a areia
porque não padece de sentimentos – falou um amigo quando ele desafogava o peito
numa mesa de bar – As mulheres são assim mesmo: imprevisíveis. Hoje nos amam
como se fôssemos o único; amanhã nos desprezam na mesma intensidade, sem rancores
nem pudores. Isso quando não depenam nossa conta bancária. Ah! As mulheres...
– São umas vacas, sem
sentimentos! Fingem-se boazinhas até nos envolver até o pescoço nas teias
sinistras da paixão e depois vão embora como se nada tivesse acontecido. Vacas!
– Garçom, mais uma
rodada de cachaça! Meu amigo aqui precisa afogar suas mágoas num copo de
aguardente. Vou de carona, solidário. Aproveita e traz duas lingüiças fritas.
– Foram três anos
juntos. Falávamos por telepatia, de tão envolvido que estávamos. Ela dizia me
amar para sempre, que nem a morte nos separaria, pois morreria também caso eu
fosse primeiro pra terra dos pés juntos. Prometia ressuscitar Shakespeare numa
tragédia tupiniquim.
– De certa forma ela
cumpriu a promessa...
– Como assim?
– “Há mais mistérios
entre as mulheres do que sonha a nossa vã filosofia”.
– Nada. As vagabundas
são previsíveis. Eu é que não soube ler nas entrelinhas do nosso dia a dia.
Deixei me enrolar na conversa mole, carinha de santa, jeitinho de anjo e eis o
resultado: estou aos frangalhos por dentro, à beira de um colapso emocional. Como
dissolver essa sensação de perda moral e espiritual? Como encarar a cama sem o
ronco daquela ingrata?
– Dê tempo ao tempo.
Lembra-se daquele presidente que corria com a camisa escrita “O Tempo é o
Senhor da Razão”? Então, tudo se ajeita
com o passar do tempo, menos a morte, claro. Por falar nisso, nada de fazer
besteira, viu? Nenhuma mulher vale a vida de um homem.
– Me lembrei de
Serafim. Coitado de Serafim! A esta altura até seus ossos já serviram de
banquete aos vermes.
– “In
pulverem reverteria”.
– Como?
– “Ao pó voltarás”. Latim.
Está escrito na entrada do cemitério da minha cidade. E é o que resta de
Serafim: pó. Não pensei que ele fosse tão fraco de espírito. Bastou a mulher
ameaçar se separar, pra meter um tiro na cabeça, como se isso resolvesse alguma
coisa. Queria o quê? Só vivia na esbórnia, passeando com as vagabundas pra cima
e pra baixo enquanto a mulher ralava o dia todo. Mais dia, menos dia, ela iria
ficar sabendo da sua vida de putanheiro.
– E ainda deixou duas
vagabundas grávidas pra dividir a herança.
– Acho que essa parte
chocou mais a viúva do que o suicídio em si.
– Os suicidas vão pro
Céu?
– Como é que vou
saber? Nunca me suicidei. Mas aposto que a mulher do Serafim reza todo dia pra
ele não ir. Ela quer que ele fique vagando por aí, vendo-a dar o troco, saindo
com um e com outro todos os dias. Era tão recatada e virtuosa e agora liberou
geral. Como diz o provérbio francês: “A quelque chose malheur est bon”.
– Traduza.
– “A desgraça serve
para alguma coisa”. É o nosso “há males que vêm pra bem”.
– Ou: “morre o cavalo
a bem do urubu”. Garçom, outra rodada! Vamos deixar os mortos de lado que
continuamos vivos. Quero dizer: você. Eu ainda estou na dúvida, posto que a
chama que mantinha acesa a minha vontade de viver se apagou quando a ingrata me
disse adeus.
– Para com isso,
cara! Mulher é como ônibus: você perde um, logo vem outro.
– Ou como alça de
caixão: um larga e outro põe a mão. Por falar em caixão: quanto custa o enterro
de um indigente?
– Temos que perguntar
ao prefeito... Mas por que você quer saber?
– Por nada. Só
curiosidade. Os ricos gastam tanto em enterros pomposos e no fim, ricos e
pobres, se encontram no mesmo buraco. Está com dinheiro aí pra pagar a conta?
Estou a zero.
– Fique frio. Vamos
pro puteiro? As putas amam melhor quando pegam um cara mal resolvido
sentimentalmente. Nesse amar transitório, elas querem garantia de estabilidade.
Ou seja: se aproveitam das nossas carências afetivas pra nos engabelar
emocionalmente. Assim nos enredam e acabamos nos casando por puro arranjo
sentimental. Mas há uma grande vantagem nesse tipo de casamento: elas podem não
nos amar, mas são fiéis para sempre.
– Se eu fosse corno
ia pra um pagode. Mas acho que não é o meu caso. Tenho um tio, bem situado na
vida, que se casou sete vezes. Sete. Das sete mulheres, seis eram da vida,
putonas mesmo. O mais incrível é que a única que botou chifre nele foi
justamente a que não era puta e se passava por santa, comendo hóstia toda
semana.
– Isso é comum. Desses
meus trinta anos, quinze vivi perdido nos bregas da vida. E a única doença
venérea que peguei foi da namorada, uma mocinha de família quase perfeita.
Garçom, mais duas doses de aguardente! E
a conta!
– Vou tirar a água do
joelho.
Levantou-se
cambaleante. O álcool subiu à cabeça, mas não com intensidade suficiente para
ofuscar seu sentimento de perda, sua sensação de abandono. Carmesita foi tudo
na sua vida e, sem ela, não sabia como recomeçar. Pensou em seu amigo Serafim e
então compreendeu suas razões em pôr a termo a própria vida. Seria ele também
um suicida em potencial? Olhou para o prédio em frente e imaginou se atirando do
último andar. A cena seguinte: o corpo estendido no chão, um monte de curiosos
atrapalhando a polícia técnica e o trânsito congestionado. As manchetes sensacionalistas
no outro dia: “Bêbado pensou que podia voar”. Ao lado da notícia, a foto do
morto com um jornal cobrindo seu rosto. Ao fundo, um vendedor de churrasquinho
de gato cantando João Bosco: “Tá lá um corpo estendido no chão...”.
Carmesita não saberia
que o morto era ele. Não pela foto dos jornais. Mesmo assim exclamaria
indignada: “O miserável ainda teve a petulância de atrapalhar o trânsito! Esses
suicidas deviam ser presos e enforcados! Morte aos suicidas!”
Saiu do banheiro e
tornou a olhar o prédio em
frente. Contou os andares: dez. Quanto tempo levaria em queda
livre até chegar ao solo? Seria o suficiente para sentir o gosto de voar? Descoberta
inútil essa: não teria o prazer de contar a mais ninguém.
Dirigiu-se à porta de
saída do bar e parou na calçada, vacilante. O sol estava a pino, próprio pra se
cometer suicídio. Teria coragem? Acenou para o amigo, antes de atravessar a rua.
– Vamos, porra! As
putas não podem esperar!