sexta-feira, 30 de maio de 2014

3 O Homem que pensou ser Deus



Conto 3 – O Diário

No exato instante em que Formiguinha dizia impropérios sobre o caixão virtual de Silveirinha, a polícia técnica isolava o seu apartamento e vasculhava minuciosamente sua intimidade em busca de uma explicação para o seu ato suicida.

A festa das formigas sobre os restos do sanduíche de mortadela largados na pia da cozinha fora interrompida por mãos enluvadas que pegaram as migalhas de pão e acondicionaram-nas em sacos esterilizados com destino ao laboratório. O fotógrafo oficial registrava o ambiente em câmara digital e se espantou quando viu um metro e meio de parede feita com material pornográfico. Havia filmes e revistas para todas as manias sexuais, desde um simples papai e mamãe, ao sado-masoquismo, passando por alguns filmes de transformistas. “Ele também era chegado à pedofilia”, pensou o fotógrafo, surpreso com a quantidade de fotos eróticas de crianças e adolescentes, espalhadas pelo carpete do quarto. A maioria havia sido impressa da Internet.

O computador continuava ligado. Na pressa de gozar os seus poderes divinos, Silveirinha se esqueceu de desligá-lo. Um policial tentou acessar a agenda do micro, mas não conseguiu. Estava protegida por senha. Deixou o computador para um especialista em informática e vasculhou a estante em busca de uma pista. Havia alguns livros, um dicionário do Aurélio e, por detrás dos livros, uma agenda. O detetive puxou-a para fora e passou a folheá-la. Não era uma agenda, mas um diário com anotações esporádicas. Na contracapa havia um telefone. O único encontrado até então. Sujeitinho esquisito aquele! Ligou para o número achado:

– Alô! É 2-2 4-7-4-4-2-9?
– É sim! Quem fala?
– Aqui é o detetive Jotabê, da Delegacia de Homicídios. A senhora conheceu um senhor de nome Silveirinha?
– Conheci, não: conheço! É o traste do meu marido. Por quê? Ele matou alguém?
– Não. Pelo contrário, ele se matou.

Do outro lado, o telefone emudeceu. O detetive ouviu alguns soluços. Uma voz emocionada perguntou:

– Onde foi, moço?

 O policial deu as coordenadas para a mulher que se dizia esposa do suicida e desligou o telefone. Do lado de fora do apartamento se formava um pequeno tumulto, de vizinhos curiosos, de alguns jornalistas que cobrem as páginas de sangue dos jornais, e do síndico que, como administrador eleito, se achava no direito de violar a última morada de Silveirinha. Apesar de só encontrar o falecido raramente, quando coincidia se cruzarem na portaria, disse para o detetive Jotabê, nas investigações preliminares, que era amigo confidencial do imprevidente fatal e que o mesmo nunca lhe segredara algum problema amoroso ou que ele, como amigo do peito, tivesse notado qualquer resquício de loucura. Até então ninguém sabia que Silveirinha era casado. Inquirido, o porteiro contou o caso da moradora que ele paquerou e que foi rejeitado por ela. Mas isso fazia muito tempo. Foi logo quando ele foi morar lá, coisa de uns três a quatro anos. No máximo, cinco, disse o porteiro.

Enquanto aguardava a chegada da suposta viúva, o detetive olhava o diário tentando encontrar alguma pista ou bilhete dizendo os motivos daquele gesto extremo. Normalmente os suicidas deixam bilhetes para a família, pedindo perdão pela covardia de seu ato. Mas, entre as páginas do diário, não havia nenhum bilhete. Quem sabe não havia escrito no próprio diário?

“Aquilo não é o cão nem uma jararaca. É o próprio Diabo”, escreveu Silveirinha, no diário, a respeito da esposa. Havia uma página e meia de impropérios e palavrões. Quando amenizava, tratava-a como “Sargentona”. E explicava os motivos de haver comprado aquele apartamento ao arrepio da família. Não fazia sexo há muito tempo com a esposa, pois não suportava a visão daquelas coxas repletas de varizes. Os peitos caídos lembravam uma vaca leiteira depois da décima quinta cria. O corpo, gordo e esmaecido, causava intensa repulsa, somado ao fato de que ela o tratava com soberbo desprezo, esperneando e gritando por qualquer motivo fútil. Era como um sargento no quartel. Marido e filhos eram tratados com a devida desatenção dada aos recrutas. Ante tal quadro, não havia Viagra que fizesse efeito.

O detetive sentiu pena de Silveirinha. Tirou um cigarro da jaqueta e acendeu. Deu ordens para que, quando a viúva chegasse, mandasse entrar. Voltou a folhear o diário.

“Malditas sejam as mulheres!” iniciou assim as suas confidências em outra página. Relatava o episódio em que foi preterido pela “galinha” do Condomínio e da sua decisão em se tornar um onanista militante e praticante. “Enquanto houver punheta no mundo, não me arrisco a pegar uma doença venérea ou a Aids”, dizia, filosoficamente. Houve um hiato de tempo considerável e retornou ao diário no dia em que conheceu a sua “Formiguinha” no site de literatura. Discorria sobre o encontro virtual e a promessa de uma paixão efervescente. Mais um intervalo. Registrou a proposta da sua amante virtual em que ela pedia para que os dois se masturbassem simultaneamente. E citava em riqueza de detalhes o seu prazer redobrado em poder lambuzar o corpo da sua Formiguinha com o seu sêmen quente.

– Mas esse cara era um doido varrido! – desabafou o detetive – Que loucura!

Levantou-se a contragosto para fechar a janela. Ameaçava chover e ventava forte. Voltou ao diário.

“Hoje eu conheci a Paraná. Ela é amiga da Formiguinha e prometeu me conduzir por esses sites de literatura. Disse que manja tudo, que é a rainha do babado.” E falava das qualidades de sua nova amizade e até ensaiava uma suruba virtual, descartada pela Formiguinha, que não aceitava dividir o seu mouse com outra mulher, mesmo sendo de suas relações de amizade. Isso ele escreveu em outra página, depois de falar da queima do monitor na noite anterior, após uma ejaculada vigorosa sobre o mesmo e do líquido que penetrou pelos orifícios de ventilação, ocasionando um curto-circuito nas placas. “Que loucura!”, exclamou mais uma vez o detetive. “Esse cara era mesmo um maluquete, um doido varrido!”

“Paraná me telefonou para dizer que a minha Formiguinha está visitando outros formigueiros depois que transa comigo. Ela está fingindo orgasmo, para se livrar logo de mim e ir à cata de outros por aí. Disse que tem um nortista com os dedos divinos, que manipula o mouse como ninguém, segundo confidências da Formiguinha. Perguntei à vagabunda, mas ela negou tudo. Disse que era intriga de Paraná, que ela, a Paraná, estava a fim de mim, que a Paraná estava chateada por não ter aceitado a suruba e que eu tomasse cuidado, pois se ela soubesse de alguma traição minha, bloquearia seu MSN e adeus trepada virtual. Em qual das duas confiar? Vou ficar na moita e aguardar pra ver. Também não dá pra confiar na Paraná. Já notei que ela é uma falsa, do tipo da pessoa que joga o verde pra colher o maduro; se faz de morta pra comer o fiofó do coveiro. Pessoas assim a gente tem de confiar desconfiando”, assim Silveirinha expunha suas confidências em páginas escritas um dia antes de cometer a loucura fatal. Nada relacionado ao suicídio. Só loucura mesmo, pensou o policial, decidido a encerrar as investigações. O diário era a prova de suas maluquices. Com a palavra, os psicólogos e psiquiatras de plantão.

Suspendeu a leitura e guardou o diário em envelope lacrado e devidamente etiquetado. Desceu para a recepção do prédio para receber a viúva de Silveirinha, que não tardaria em chegar. Tomou um susto quando a viu. A mulher de Frankstein seria mais simpática. Em vez de chorar, relampejava pragas contra o defunto e dizia que se ele não tivesse morrido, que se preparasse para morrer em suas mãos. Que havia suportado suas noites fora de casa porque não agüentava os roncos e o mau hálito do cachorro bandido ou vice-versa, que era até um favor que ele fazia pra ela em dormir em outro canto, só não suportava era ele ficar ali, no bem-bom, enquanto ela e os filhos moravam no morro, dividindo a miséria com os vizinhos traficantes e amigos proxenetas. Ah! se te pego vivo!

“Aqui jaz um cachorro salafrário. Se não tivesse, de fato, morrido, seria enterrado vivo”, assim foi escrito o epitáfio no túmulo de Silveirinha, que morreu pensando que era Deus e foi enterrado como um cão sarnento, sem honras nem pompas. Pedaços rejuntados de um anjo caído do Paraíso, sem saber se haveria lugar para ele no Céu. O destino dos suicidas é vagar pela imensidão etérea, feito almas penadas a encher a noite de zumbis e perturbar o sono dos vivos.

Em vez de réquiem, insultos. A pedido da família, foi enterrado na vertical, de cabeça para baixo, porque, se ressuscitasse, sairia no Japão.

2 O Homem que pensou ser Deus



Conto 2 – A Gênese

Muito bem antes daquela fatídica manhã em que o estrelismo subiu à cabeça de Silveirinha e ele acordou pensando que era Deus e que poderia sair voando por aí ele também acordou em uma manhã de inverno pensando que era escritor. Sentou-se à beira da cama, acendeu um cigarro e se pôs a divagar sobre sua nova descoberta. Anteviu seu nome no Caderno Dois dos principais jornais do país e teve um breve relampejo visionário de um bate-papo com os seus colegas acadêmicos da casa de Machado de Assis.

Morava sozinho. Não porque quisesse, mas por incapacidade ou timidez, talvez. Uma vez resolveu investir em uma vizinha assanhada que ficava na portaria do prédio dando bola pra gatos e cachorros. Levou dois dias escrevendo uma carta-poesia para a sirigaita, deu cinquenta reais ao porteiro para se fazer de portador, e, quando menos esperava, bateram à sua porta. Era o porteiro que trazia debaixo do braço um espelho e uma resposta da pretendente. Despachou o portador e abriu o bilhete na ânsia que domina os amantes nos instantes próximos ao encontro. À medida que se envolvia na leitura, seu rosto se fechava em uma carranca de desgosto; seu olhar perdeu o brilho e ele chorou feito criança perdida no meio da multidão. Refeito, enxugou as lágrimas e pronunciou um impropério contra a vizinha e atirou o espelho pela janela, sem se incomodar com a superstição dos sete anos de azar para quem quebra espelho. Ou com a possibilidade de atingir algum transeunte na calçada.

– Velho babão é a puta que lhe pariu, sua vagabunda! –  vociferou.  

Depois desse episódio nunca mais teve coragem de encarar uma mulher. Retraiu-se em uma timidez crescente e passou a usar a mão grande como consolo. Assinou revistas de mulheres peladas, comprou filmes pornográficos e se cadastrou em sites proibidos para menores de dezoito anos. Finalmente descobrira uma nova modalidade de fazer sexo sem risco de pegar Aids ou outra doença venérea qualquer. Mesmo assim, por precaução, usava camisinha.


Levantou-se da cama e olhou para o computador. Agora ele teria outra utilidade, uma função nobre e, como prêmio pela nova tarefa, ganharia umas memórias a mais. Ligou a máquina. A placa-mãe fez “bip” e ele sorriu enigmático. Ou triunfal. Puxou a cadeira e abriu o editor de texto do seu micro. Aquela data era histórica e merecia uma comemoração. Foi ao bar e preparou um drinque, esquecido de que ainda não tinha forrado o estômago. Retornou ao teclado e exercitou os dedos antes de dar asas à imaginação.

Ao cabo de duas horas imprimiu o que chamou de seu primeiro best-seller. Leu em voz alta e gostou do que ouviu. Entrou na internet em busca de um site onde pudesse publicar seu texto. Não adiantava escrever e ninguém poder ler.

Depois de muita procura, encontrou um que achou legal. Fez o cadastro e enviou o texto, recebendo a promessa dos moderadores do tal site de que no outro dia a sua crônica estaria publicada. Retornou ao micro e passou a dedilhar causos e mais causos, até esgotar o espaço no HD.

No dia seguinte, ao abrir sua caixa de mensagens, havia umas linhas elogiosas de uma escritora daquele site. Retornou a mensagem, agradecendo, e daí nasceu uma amizade que seria duradoura se não fosse trágica.

A escritora tinha uns contos picantes e Silveirinha, acostumado ao prazer solitário, se amarrou neles. Imprimia-os e corria para o banheiro para se masturbar, imaginando-se o personagem das estórias. Inicialmente fazia isso às escondidas; depois escancarou para a escritora a sua dificuldade em ter mulher e de como estava fazendo para se virar. A escritora sentiu a vaidade aflorar à pele e uma pontada de orgulho picou seu coração e ela propôs que se tornassem amantes virtuais e que ele se masturbasse ali mesmo, enquanto ela ficava nua, se manipulando com o mouse e filmando com sua webcam. Silveirinha achou o máximo. Depois de muito tempo ele iria ter um orgasmo na frente de uma mulher. A pedido dela, aboliu a camisinha. Também não fazia sentido.

Durante dois anos eles viveram assim, se amando no silêncio corrupto dos megabytes cibernéticos, vistos apenas pelo olhar frio da câmera e do monitor de vídeo; ela lhe chamando carinhosamente de Sil e ele retribuindo com o apelido de Formiguinha, até o fatídico dia em que ele, por um acaso, descobriu que ela não lhe era fiel e que mentia descaradamente quando afirmava que desligaria o computador tão logo sentisse o último tremor do orgasmo contrair a sua vulva e seus pulmões parassem de arquejar. Desesperado, pulou da janela do seu apartamento, no vigésimo quinto andar, pensando que era Deus e que podia voar, levando Formiguinha a pronunciar impropérios de revolta sobre o seu caixão virtual:

– Eu lhe dei chifres e não asas, seu idiota!

domingo, 25 de maio de 2014

1 O Homem que pensou ser Deus



Conto 1 – Quando o Paraíso é o Inferno

 Silveirinha acordou sobressaltado, seu coração bateu acelerado, palpitante, seus pulmões arfaram e sua cabeça girou atarantada, sem saber que atitude tomar. Tinha certeza de que era Deus e a consciência da importância e do poder adquiridos de repente o deixou zonzo, incapaz de tomar uma decisão como o novo dono do mundo.

Levantou-se agoniado, sentindo um gosto amargo na boca. Foi ao sanitário sem entender o porquê de Deus sentir vontade de fazer xixi. Outra constatação conflitante: Deus não comia, mas ele sentia uma tremenda fome. Que Deus era ele afinal? Por via das dúvidas, se arrastou até a cozinha e preparou um sanduíche de mortadela com ovo e bacon. Precisava repor as energias, pois teria um longo dia pela frente em atividades divinas. Enquanto devorava o sanduíche, esquadrinhou suas novas atribuições no mundo. Se o Universo já estava em harmonia, qual era o papel de Deus então? Mudaria alguma coisa ou deixaria que tudo seguisse o seu curso normal?

Lembrou-se de sua namorada virtual. Talvez ela tivesse alguma sugestão. Mas como lhe dizer que ele agora era o Todo-poderoso? Certamente o acharia louco. Não. Ela não haveria de pensar assim. Loucura era o que eles faziam todos os dias, sob o testemunho mudo e consentido do monitor. Ela se desnudava em palavras lascivas, picantes, provocantes, e ele gastava sua caixa de Viagra subindo pelo teclado, beijando o monitor de vídeo, se esfregando no mouse, até explodir em orgasmo intenso, ejaculando sêmen quente e viscoso, espalhando por toda a mesa do computador.

Da cozinha, tentou ligar o computador na sala com o seu poder mental, mas não logrou intento. Achou normal não conseguir, pois havia apenas meia hora que era Deus e não houvera tempo de explorar seus poderes. Também não sabia se havia alguma concentração especial ou se tinha que pronunciar alguma palavra mágica. Até então Deus era um completo mistério para ele, além de desconhecer sua rotina.

Computador ligado, conectou-se na Internet, abriu a janela de bate-papo de um site de relacionamento e chamou sua namorada: “Deus falando. Formiguinha, você está por aí?” Recebeu várias mensagens de resposta; de insultos a pedido de emprego. Uma lunática, acreditando falar com o Deus verdadeiro, pediu um milagre para o seu filho passar no Enem.

Desistiu do bate-papo e foi para a lista de um grupo literário que fazia parte. Deixou várias mensagens chamando por “Formiguinha”, porém não obteve resposta. Decidiu ser prático: pegou o telefone e ligou para a namorada. Uma voz sonolenta atendeu do outro lado:

  Alô! Formiguinha? É Deus!
  Diga aí, João de Deus, como é que está você, meu anjo?
  Quem é João de Deus?

Ela reconheceu a voz do namorado virtual e baixou o tom.

– João de Deus é um amigo, ora! Que história é essa de Deus?!
– Não desvie o assunto não! Você está me traindo com este João de Deus, não é sua vadia, sua quenga despinguelada?
– Deixa de implicância, homem de Deus! João de Deus é só um amigo lá do Norte!
– Que amigo do Norte que nada! Este cabra é seu amante e você fica querendo me engabelar! Onde já se viu amizade entre homem e mulher!
– Mas é só um amigo, Sil! Como é que posso ser amante de um homem que vive a mais de dois mil quilômetros daqui?!
– Ora, sua traidora, do mesmo jeito que você faz comigo! Como é o mouse dele, hein?! É mais gostoso do que o meu, é?
– Deixa de ser ridículo, homem!
– Ridículo, não! Tá tudo acabado entre a gente, sua vagabunda! E vou detonar o seu amante! Não se esqueça de que agora sou Deus! E devolva todos os e-mails que mandei pra você, sua cachorra!
– Mas meu amor...

Não ouviu este último apelo. Bateu o telefone com raiva e se pôs a praguejar contra as mulheres. Eram todas umas vadias. Bastava desligar o computador para elas treparem com outro. Vai ver que copiava as mensagens e repetia todas as palavras para o amante. Vagabunda! Cadela! Filha de uma puta!

         De repente se lembrou que era Deus e que não podia andar perdendo a cabeça por qualquer contrariedade. Agora tinha o Poder, tinha a Força. Muito mais do que o He-Man, pois era o Dono do Mundo, Senhor Absoluto da Razão e do Destino dos homens. Mandaria uma praga que devastaria todos os arquivos do rival. Uma praga, não; um vírus superpoderoso. Nunca mais ele conseguiria reinstalar seus programas e a puta virtual que fosse pra puta que a pariu. Enquanto isso ele iria curar a sua dor de corno em um pagode.  Dizem que é lá que os cornos se encontram.

Sorriu tal qual hiena quando encurrala a sua presa. Sendo o Deus Supremo, teria milhões de mulheres aos seus pés e não precisaria mais encharcar a sua mesa de esperma. Vestiu uma camiseta, colocou um short jeans, calçou um tênis e saiu voando pela janela, crente que era Deus e esquecido que morava no vigésimo quinto andar.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Cineas Santos - Facilita que eu leio



             Repetindo Euclides da Cunha, Machado de Assis é, antes de tudo, um forte. Suportou a indiferença de boa parte dos leitores de sua época. Resistiu estoicamente à má-vontade de alguns críticos obtusos que o consideram “inferior a Aluísio de Azevedo”. Ignorou a “homenagem” corrosiva e oportunista que lhe prestou Sarney, quando presidente, ao imprimir sua efígie numa cédula de que ninguém se lembra mais. Resistirá à investida dos que querem torná-lo palatável? Só o tempo dirá.

          Entenda a natureza do projeto em curso: uma escritora denominada Patrícia Secco (alguém já leu alguma obra dela?) resolveu “simplificar” a obra de Machado de Assis para,digamos, torná-lo mais palatável ao gosto dos jovens. Deu na Folha: "Entendo por que os jovens não gostam de Machado de Assis", diz a escritora Patrícia Secco. "Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso." Ela simplifica mesmo: Patrícia lançará em junho uma versão de "O Alienista", obra de Machado lançada em 1882, em que as frases estão mais diretas e palavras são trocadas por sinônimos mais comuns (um "sagacidade" virou "esperteza", por exemplo". 

          A coisa não para por aí: a tal escritora está realizando o projeto com o aval do MINC por meio das leis de incentivo à cultura. A iniciativa era bem mais ambiciosa: contemplava Aluísio de Azevedo, Manuel Antônio de Almeida, José de Alencar, etc. Candidamente, a escritora afirma: "Montei um plano com um título de cada autor clássico para a gente tentar fazer uma versão”.

          Durante muito tempo, eu me perguntei: estaria em curso um projeto de emburrecimento dos jovens ou seria apenas uma espécie de leseira geral? Hoje, não tenho dúvidas: o projeto existe e tem o aval das autoridades competentes. Vejam bem: não bastasse a investida dos meios de comunicação de massa (notadamente rádio e TV), que privilegiam o vulgar, o  grosseiro, a violência, chegou a vez de a escola privilegiar o rasteiro por meio de obras literárias. Uma escola que nivela por baixo deseduca e compromete a formação do educando.

          Essa ideia de “atualizar” autores não é nova. Na década de 1960, a revista Seleções trazia versões “condensadas” de clássicos da literatura americana. Pode-se argumentar que, no caso, havia  um forte componente ideológico por trás da investida. Para os americanos, o que importava era popularizar os escritores de lá. Nossos “irmãos do norte” não brincam em serviço.

          “Simplificar” obras de autores estrangeiros é discutível, mas explicável, uma vez que as traduções, com honrosas exceções, já descaracterizam o estilo dos autores. Mas verter para o “vulgarês”   textos de brasileiros é crime de lesa-autoria. Se “o estilo é o homem”, como queria Buffon, Machado só é Machado de Assis pelas peculiaridades da sua escrita. O velho Bruxo do Cosme Velho  nunca foi um contador de histórias,  e sim, um construtor de linguagens. O papel da escola deveria ser estimular o aluno a mergulhar no universo machadiano para, entre outras coisas, enriquecer  o vocabulário. 

          Não quero ser pessimista – minha história de vida não me permite sê-lo – mas confesso  desencantado: estamos perdendo a batalha para a burrice galopante que assola o país. Vôte!
         
         
         

domingo, 11 de maio de 2014

Flor Mamãe, quem se lembra?


Quem foi mãe ou foi filho nos anos 60 e início dos 70, sabe da overdose que as rádios nos davam com a voz melosa, quase chorosa, de um garoto chamado José Leão na semana do dia das mães. Sim, turma jovem, nos anos sessenta também existia o dia das mães, não com tanto consumismo assim, mas existia. As mães de antigamente adoravam ligar o rádio nas ondas médias e ouvir o garoto chorar “Flor Mamãe. 


Não me perguntem que fim levou esse garoto. Para mim, ele tinha morrido na era do CD, mas um belo dia o meu saudoso amigo Edécio Lopes chegou à minha casa com um LP do José Leão e me pediu para remasterizar em CD. Eu nem me lembrava mais da música e quando o disco começou a girar na vitrola, as lembranças afloraram e me vi garoto no meio de um coral de mães.


Edécio Lopes, radialista das antigas, precursor da era do rádio nas Alagoas, mantinha seu programa ao velho estilo da boa MPB e nas datas festivas ele gostava de fazer as suas homenagens. Era campeão de audiência. Infelizmente ficou devendo às mamães antigas a recordação dos tempos de outrora: morreu meses antes da data.


Assim, trago à baila a tal Flor Mamãe e se você for desse tempo, vai recordar; se não, vai ficar sabendo que naquela época as mães se contentavam mais com a poesia e com a música do que com as comidas gordurosas de churrascaria.