Conto 3 – O Diário
No exato instante em
que Formiguinha dizia impropérios sobre o caixão virtual de Silveirinha, a
polícia técnica isolava o seu apartamento e vasculhava minuciosamente sua
intimidade em busca de uma explicação para o seu ato suicida.
A festa das formigas
sobre os restos do sanduíche de mortadela largados na pia da cozinha fora
interrompida por mãos enluvadas que pegaram as migalhas de pão e
acondicionaram-nas em sacos esterilizados com destino ao laboratório. O
fotógrafo oficial registrava o ambiente em câmara digital e se espantou quando
viu um metro e meio de parede feita com material pornográfico. Havia filmes e
revistas para todas as manias sexuais, desde um simples papai e mamãe, ao
sado-masoquismo, passando por alguns filmes de transformistas. “Ele também era
chegado à pedofilia”, pensou o fotógrafo, surpreso com a quantidade de fotos
eróticas de crianças e adolescentes, espalhadas pelo carpete do quarto. A
maioria havia sido impressa da Internet.
O computador
continuava ligado. Na pressa de gozar os seus poderes divinos, Silveirinha se
esqueceu de desligá-lo. Um policial tentou acessar a agenda do micro, mas não
conseguiu. Estava protegida por senha. Deixou o computador para um especialista
em informática e vasculhou a estante em busca de uma pista. Havia alguns
livros, um dicionário do Aurélio e, por detrás dos livros, uma agenda. O
detetive puxou-a para fora e passou a folheá-la. Não era uma agenda, mas um
diário com anotações esporádicas. Na contracapa havia um telefone. O único
encontrado até então. Sujeitinho esquisito aquele! Ligou para o número achado:
– Alô! É 2-2
4-7-4-4-2-9?
– É sim! Quem fala?
– Aqui é o detetive
Jotabê, da Delegacia de Homicídios. A senhora conheceu um senhor de nome
Silveirinha?
– Conheci, não: conheço!
É o traste do meu marido. Por quê? Ele matou alguém?
– Não. Pelo contrário,
ele se matou.
Do outro lado, o
telefone emudeceu. O detetive ouviu alguns soluços. Uma voz emocionada
perguntou:
– Onde foi, moço?
O policial deu as coordenadas para a mulher
que se dizia esposa do suicida e desligou o telefone. Do lado de fora do
apartamento se formava um pequeno tumulto, de vizinhos curiosos, de alguns
jornalistas que cobrem as páginas de sangue dos jornais, e do síndico que, como
administrador eleito, se achava no direito de violar a última morada de
Silveirinha. Apesar de só encontrar o falecido raramente, quando coincidia se
cruzarem na portaria, disse para o detetive Jotabê, nas investigações
preliminares, que era amigo confidencial do imprevidente fatal e que o mesmo
nunca lhe segredara algum problema amoroso ou que ele, como amigo do peito,
tivesse notado qualquer resquício de loucura. Até então ninguém sabia que
Silveirinha era casado. Inquirido, o porteiro contou o caso da moradora que ele
paquerou e que foi rejeitado por ela. Mas isso fazia muito tempo. Foi logo
quando ele foi morar lá, coisa de uns três a quatro anos. No máximo, cinco,
disse o porteiro.
Enquanto aguardava a
chegada da suposta viúva, o detetive olhava o diário tentando encontrar alguma
pista ou bilhete dizendo os motivos daquele gesto extremo. Normalmente os
suicidas deixam bilhetes para a família, pedindo perdão pela covardia de seu
ato. Mas, entre as páginas do diário, não havia nenhum bilhete. Quem sabe não
havia escrito no próprio diário?
“Aquilo não é o cão
nem uma jararaca. É o próprio Diabo”, escreveu Silveirinha, no diário, a
respeito da esposa. Havia uma página e meia de impropérios e palavrões. Quando
amenizava, tratava-a como “Sargentona”. E explicava os motivos de haver
comprado aquele apartamento ao arrepio da família. Não fazia sexo há muito
tempo com a esposa, pois não suportava a visão daquelas coxas repletas de
varizes. Os peitos caídos lembravam uma vaca leiteira depois da décima quinta
cria. O corpo, gordo e esmaecido, causava intensa repulsa, somado ao fato de
que ela o tratava com soberbo desprezo, esperneando e gritando por qualquer
motivo fútil. Era como um sargento no quartel. Marido e filhos eram tratados
com a devida desatenção dada aos recrutas. Ante tal quadro, não havia Viagra
que fizesse efeito.
O detetive sentiu pena
de Silveirinha. Tirou um cigarro da jaqueta e acendeu. Deu ordens para que,
quando a viúva chegasse, mandasse entrar. Voltou a folhear o diário.
“Malditas sejam as
mulheres!” iniciou assim as suas confidências em outra página. Relatava o
episódio em que foi preterido pela “galinha” do Condomínio e da sua decisão em
se tornar um onanista militante e praticante. “Enquanto houver punheta no
mundo, não me arrisco a pegar uma doença venérea ou a Aids”, dizia,
filosoficamente. Houve um hiato de tempo considerável e retornou ao diário no
dia em que conheceu a sua “Formiguinha” no site de literatura. Discorria sobre
o encontro virtual e a promessa de uma paixão efervescente. Mais um intervalo.
Registrou a proposta da sua amante virtual em que ela pedia para que os dois se
masturbassem simultaneamente. E citava em riqueza de detalhes o seu prazer
redobrado em poder lambuzar o corpo da sua Formiguinha com o seu sêmen quente.
– Mas esse cara era
um doido varrido! – desabafou o detetive – Que loucura!
Levantou-se a contragosto
para fechar a janela. Ameaçava chover e ventava forte. Voltou ao diário.
“Hoje eu conheci a
Paraná. Ela é amiga da Formiguinha e prometeu me conduzir por esses sites de
literatura. Disse que manja tudo, que é a rainha do babado.” E falava das qualidades
de sua nova amizade e até ensaiava uma suruba virtual, descartada pela
Formiguinha, que não aceitava dividir o seu mouse com outra mulher, mesmo sendo
de suas relações de amizade. Isso ele escreveu em outra página, depois de falar
da queima do monitor na noite anterior, após uma ejaculada vigorosa sobre o
mesmo e do líquido que penetrou pelos orifícios de ventilação, ocasionando um
curto-circuito nas placas. “Que loucura!”, exclamou mais uma vez o detetive.
“Esse cara era mesmo um maluquete, um doido varrido!”
“Paraná me telefonou
para dizer que a minha Formiguinha está visitando outros formigueiros depois
que transa comigo. Ela está fingindo orgasmo, para se livrar logo de mim e ir à
cata de outros por aí. Disse que tem um nortista com os dedos divinos, que
manipula o mouse como ninguém, segundo confidências da Formiguinha. Perguntei à
vagabunda, mas ela negou tudo. Disse que era intriga de Paraná, que ela, a
Paraná, estava a fim de mim, que a Paraná estava chateada por não ter aceitado
a suruba e que eu tomasse cuidado, pois se ela soubesse de alguma traição
minha, bloquearia seu MSN e adeus trepada virtual. Em qual das duas confiar?
Vou ficar na moita e aguardar pra ver. Também não dá pra confiar na Paraná. Já
notei que ela é uma falsa, do tipo da pessoa que joga o verde pra colher o
maduro; se faz de morta pra comer o fiofó do coveiro. Pessoas assim a gente tem
de confiar desconfiando”, assim Silveirinha expunha suas confidências em
páginas escritas um dia antes de cometer a loucura fatal. Nada relacionado ao
suicídio. Só loucura mesmo, pensou o policial, decidido a encerrar as
investigações. O diário era a prova de suas maluquices. Com a palavra, os
psicólogos e psiquiatras de plantão.
Suspendeu a leitura e
guardou o diário em envelope lacrado e devidamente etiquetado. Desceu para a
recepção do prédio para receber a viúva de Silveirinha, que não tardaria em
chegar. Tomou um susto quando a viu. A mulher de Frankstein seria mais
simpática. Em vez de chorar, relampejava pragas contra o defunto e dizia que se
ele não tivesse morrido, que se preparasse para morrer em suas mãos. Que havia
suportado suas noites fora de casa porque não agüentava os roncos e o mau hálito
do cachorro bandido ou vice-versa, que era até um favor que ele fazia pra ela
em dormir em outro canto, só não suportava era ele ficar ali, no bem-bom,
enquanto ela e os filhos moravam no morro, dividindo a miséria com os vizinhos
traficantes e amigos proxenetas. Ah! se te pego vivo!
“Aqui
jaz um cachorro salafrário. Se não tivesse, de fato, morrido, seria enterrado
vivo”, assim foi escrito o epitáfio no túmulo de Silveirinha, que morreu
pensando que era Deus e foi enterrado como um cão sarnento, sem honras nem
pompas. Pedaços rejuntados de um anjo caído do Paraíso, sem saber se haveria lugar
para ele no Céu. O destino dos suicidas é vagar pela imensidão etérea, feito
almas penadas a encher a noite de zumbis e perturbar o sono dos vivos.
Em
vez de réquiem, insultos. A pedido da família, foi enterrado na vertical, de
cabeça para baixo, porque, se ressuscitasse, sairia no Japão.