domingo, 21 de fevereiro de 2016

Duas Notas Musicais - Luís Pimentel


A ilusão de que ser homem bastaria

          “Gilberto Gil estava hospedado na casa de Caetano Veloso no Rio de Janeiro, quando, um dia, o anfitrião chegou entusiasmado com Super-Homem (Superman), um filme que acabara de assistir, com Christopher Reeve no papel de herói. Então, Gil “viu o filme” através da narrativa de Caetano e naquela noite não conseguiu dormir. Ficara tão impressionado com a imagem do Super-homem fazendo a terra girar ao contrário em seu movimento de rotação, a fim de voltar a tempo e salvar a mulher, que acabou pulando da cama para compor Super-Homem – a canção em apenas uma hora, o que contraria seu método habitual de trabalho”.
(Relato dos escritores e pesquisadores Jairo Severiano e Zuza Homem de Melo, em A Canção no Tempo, volume 2. Editora 34, 1998)

      Diz a bela canção de Gil:

Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter
(...)
Quem sabe o Super-Homem venha nos restituir a glória
Mudando com Deus o rumo da História
Por causa da mulher...

To go back to Bahia, de Caetano a Richão

          Expulso do país, juntamente com o parceiro e amigo Gilberto Gil – acusados de subversão – o cantor e compositor Caetano Veloso desembarcou no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro no dia 11 de janeiro de 1972, retornando do exílio político na Inglaterra. 

     Pouco depois fez um show histórico no Teatro João Caetano, antes de embarcar para a boa terra. Neste show, revelou para o Brasil inteiro um genial compositor baiano chamado Riachão, interpretando um samba de sua autoria que tinha uns versos assim: “Chô, Chuá, cada macaco no seu galho/Chô, Chuá, eu não me canso de falar/Chô, Chuá, o meu galho é na Bahia/Chô, Chuá, o seu é em outro lugar”.

     Aos 95 anos Riachão (Clementino Rodrigues, 1921) é um compositor moderníssimo. Prova disto é que a moderna Cássia Eller regravou, lindamente, a super-modernosa Vá morar com o diabo, uma canção que diz assim: “Ai, meu Deus, ai, meu Deus, o que é que há?/A nega lá em casa não quer trabalhar/Se a panela ta suja, ela não quer lavar/Quer comer engordurado, não quer trabalhar (...)/Ela quer me ver bem mal/Vá morar com o diabo que é imortal”.


 


segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Utopia

Uma senhora dormiu numa poltrona de um shopping center, alguém viu, fotografou e fez umas montagens ridículas. Depois postou no Facebook. Dezenas de milhares de compartilhamentos. Centenas de comentários jocosos que mais pareciam hienas arreganhando os dentes. No meio de tantos urubus ávidos por carniça, surgiu uma voz dissonante, condenando o que se fazia com a pobre senhora. Foi massacrada, vilipendiada, escorraçada pelos que se achavam no direito de rir da gente humilde, embora ela tivesse um poder de resistência descomunal.

Fiquei animado com a feliz constatação de que o mundo ainda pode ser salvo por gente que em um repente levanta a voz contra as indecências dos presunçosos. Ainda há gente com capacidade de se indignar. Poucas pessoas, mas há. E por isso, uma ode à sua coragem de enfrentamento e recuo estratégico.

Utopia
Para Mariana Escopel, com a devida vênia por não ser mais enfático na sua defesa.

Meus sonhos são ilhas vulcânicas
Soterradas em águas profundas
De mares sujeitos a abalos sísmicos.
Não há correntes marinhas
Transportando garrafas de náufragos
Prenhes de quimeras e utopias
Para além do reino de Poseidon.
Nem golfinhos de Palêmon salvando afogados,
Nem cavalo-marinho da amplidão oceânica
Cavalgando vales e surfando tsunamis
Desfraldando minha bandeira utópica
Soterrada em sete toneladas de magma
Rota e violada em seu afeto moral.

Encantamentos

E a mocinha ribeirinha, lá do Norte, mostra à mãe o que já não pode mais esconder. Inocente, disse displicente:
- Foi o boto, minha mãe!
A mãe engoliu saliva, engasgou um palavrão e sorriu carinhosa para a filha, pois sabe desses encantamentos e feitiços do amor.
Sua filha também era filha do boto.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

O retratista

Era o único retratista do lugar. Batizado, casamento, amancebamento e discurso político, nada passava em brancas nuvens. Um dia, em visita à capital, comprou a última novidade do mercado: câmara fotográfica com temporizador. Era a única maneira de também sair nas fotos.

Retornando, reuniu a família no topo de um barranco, armou o tripé, ajustou o foco, acionou o temporizador e correu para junto do pessoal. Ao vê-lo correndo, todos correram também, esquecidos da ribanceira a menos de um passo.

No hospital, perguntou ao único que conseguia falar:

- Por que vocês correram?
- Se você, que conhece aquele troço, correu com medo, imagina se a gente ia ficar...

domingo, 26 de julho de 2015

Assim viaja a humanidade

Peguei o coletivo no Farol da Barra e adiante vi a palavra "ônibus" em sentido contrário na sinalização horizontal do asfalto e perguntei ao motorista:
- Você sabe o que é subinô?
- Sei. É o contrário de descenô.

É a velha Bahia, com suas histórias a cada acelerada.

O jogo do bicho e os sonhos

O meu problema é de interpretação e não de crença. Creio em Deus sobre todas as coisas e na Santa Madre Igreja Católica, Apostólica, Romana, mas creio mais nos sonhos, apesar de não dar uma dentro no jogo do bicho. Jogo cobra e dá veado. Sonhei com um gato caindo do muro, joguei gato, fui buscar o prêmio, deu burro. Sonhei com o número onze estampado no muro de uma casa. Seria tiro e queda, não precisava passar pela peneira das interpretações. Onze é onze, e ponto final! Procurei a banca do jogo do bicho e esvaziei os bolsos no 11. Deu 24, veado. O bicheiro me explicou a lógica:

- A gente tem que saber interpretar os sonhos. Nem tudo é como a gente imagina. No primeiro caso, quem sonha com cobra é viado. No segundo, gato que cai do muro é burro. No terceiro, 11, é um atrás do outro, viado.

Tem lógica. Eu nunca havia pensado nisso. Jogar no bicho não é para qualquer um não. Mas agora já sei: se sonhar com um juiz, vou jogar no veado. Todo juiz anda na vara.

Troque o homem mas não troque o nome

Seu nome era Vliado. Uma mistura de iniciais do pai com um não-sei-o-quê da mãe. Precisava dar os créditos num videoclipe e ele implorou:
- Não se esqueça do "lê" antes do "I"! Olhe lá! É "V-L-I-A-D-O" - soletrou.
Como haveria de esquecer nome tão inesquecível? Botei todos os "lês" merecidos. Depois de pronto, DVD entregue, ele me ligou puto da vida, quase em ameaça de morte:
- Que porra foi que você fez com meu nome?
- Eu? Nada. Tenho certeza de que coloquei o "l"!
- Colocou, sim. Mas escreveu "Glay", seu... seu!
- Ora... E Glay não é o mesmo que Vliado?
- (impublicável)

domingo, 28 de junho de 2015

A Missa


Diante das circunstâncias, eu confesso essa minha agonia que, antes de ser dilema, se transformou em paradoxo: o meu irmão Dimas não gostava de missa, de padre ou de qualquer religião. Não era ateu, porém ficava à toa na escolha do ser ou não um cético ou um crente. Antes de se casar, cumpria suas obrigações de católico, apostólico, romano todo santo dia; depois que se casou, sua cara-metade, dizendo-se agnóstica, proibiu a palavra “religião” dentro de seus domínios.

Ao contrário dele, eu vivia na sacristia, ajudando a celebrar missa e a entornar o vinho canônico nos descuidos do padre. Era um temente a Deus e me confessava toda semana para poder ter direito a degustar uma hóstia consagrada inteira e sentir a leveza do corpo diáfano flutuando no espaço, conforme o que se garantia nas aulas de catequese. Toda comunhão, uma decepção. Nunca conseguia sentir essa sensação. Era dominado por um sentimento de culpa e me sentia o mais vil pecador, ignorado ou castigado por Deus na hora de gozar do nirvana cristão. Uma vez criei coragem e confessei ao padre esse meu desapontamento. Ele creditou ao meu confessar sem estar devidamente arrependido. “Arrependei, cretino!”, esbravejou, apontando a minha culpa para uma sacristia cheia de coroinhas e beatas. Em vez de baixar a cabeça sentindo a culpa do pecado pelo não arrependimento, joguei uma praga de urubu no padre e nunca mais ele pôde ouvir confissão de alguém: na semana seguinte fugiu com uma beata que vivia, dia e noite, enchendo o saco de Santo Antônio, pedindo casamento em troca de flores e velas. Ambos foram proibidos de frequentar a sacristia e tiveram que mudar de cidade.

O paradoxo se deve ao fato dos papéis se inverterem trinta anos depois: eu perdi a fé em padre e em missa e o meu irmão Dimas se tornou um carola de carteirinha, daqueles que são convocados para ler as epístolas e está a ponto de virar diácono, com direito a fazer sermão e de ler a Bíblia quando o padre estiver com preguiça de cumprir sua obrigação canônica. Dimas reviu seus conceitos no dia que sua mulher virou discípula do seu melhor amigo, um ateu legítimo, um radical do pancosmismo, materialista convicto, discípulo de Holbach e seguidor do marxismo. Dimas tinha o maior apreço por esse seu amigo e, ao ler o bilhete deixado pela mulher, dizendo que partia com Raimundão Poeta em busca de sua afirmação interior, odiou todas as formas de ateísmo e tomou o fato como um castigo exemplar de Deus por sua pretensa heresia.

 O dilema era que, estando eu em Alagoinhas, cidade no litoral norte da Bahia, às vésperas das festas juninas, Dimas me chamou para ir à missa de Santo Antônio, que é celebrada toda terça-feira, na igreja de São Francisco de Assis, para fazer uma avaliação de sua atuação como pré-diácono.

Desde o dia que um padre se negou a rezar missa de corpo presente no enterro do meu pai, por pura preguiça, passei da indiferença para a rejeição aos padres, mesmo sabendo que algum justo – se é que existe algum – pagaria pelos pecadores. Mas também não podia fazer uma descortesia ao meu irmão. Eu era seu hóspede. Vesti a minha domingueira – apesar de ser uma terça-feira – e o acompanhei até a igreja.   

Entrar no Convento dos Frades, ou Igreja dos Capuchinhos, ou ainda Convento de São Francisco de Assis, foi como caminhar no túnel do tempo em viagem de retorno ao passado. Nada havia mudado na pintura e na decoração interna. A maioria dos fiéis presentes era de amigos ou colegas, ex-militantes do Clube São Domingos Sávio, a escola de coroinhas mantida por Frei Fidélis. A novidade era o meu irmão que nessa época só ia à missa se a mulher lhe desse a devida permissão. Como ela não dava, ele nunca ia e ainda pousava de ateu, esconjurando os padres e seus adeptos.

Os santos, os mesmos, continuavam em seus nichos laterais sob a luz de vela. Velas estas que só são apagadas na Sexta-Feira da Paixão, quando os santos são cobertos por mortalhas roxas. Apesar de ser um convento franciscano, abriga outros santos cristãos: São José, Santo Antônio, Nossa Senhora das Dores e São Domingos Sávio. São Francisco abençoa os seus fiéis na nave-mãe, no altar-mor, onde fica a sua estátua de mais ou menos um metro de altura, com o braço direito estendido em sermão aos pássaros. Acima dele, dois anjos carregam Cristo ressuscitado para o Seu trono, ao lado de Deus, o seu pai.

Atrás do altar existe uma ala em que os outros frades assistem à missa e ficam rezando o terço. É um ambiente sombrio, iluminado apenas por um refletor de um Cristo crucificado em tamanho natural, de um realismo fantástico, incomum, assustador, e Ele parece nos cobrar a culpa pelas chagas no Seu corpo, pelo Seu martírio mortal.

Se não houvesse um hiato de 30 anos e as pessoas ao meu redor não tivessem pintados os cabelos de branco – inclusive eu –, diria que o tempo transcorrido seria apenas de um sermão a outro, ou então que o convento e eu envelhecemos juntos, tricotando nosso cotidiano com a linha invisível do Tempo. 

O envelhecer junto é parar a ação do Tempo sobre o nosso corpo, é banhar-se diariamente na fonte da juventude, à luz de nossa compreensão da decadência corporal. É ficar imune à corrosão ácida da sucessão das eras ante nossos olhos. Por isso que os filhos são vistos como eternas crianças pelos pais, que se assustam quando eles dizem que já são donos do próprio nariz e jogam a realidade tal qual como ela é, sem meneio nem pinceladas floridas de aquarela. Nessa hora, teme-se olhar para o espelho e ver desnudar sua imagem real, descobrindo-se andando de mãos dadas com o implacável Senhor dos Séculos: o Tempo.

Iniciada a missa, todos de pé, o padre (ou frei, como são chamados os capuchinhos) disse o introito “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo” e, no “amém”, desapareceu atrás do altar. O coral abafou o ruído da queda. Em vez de antífonas, uma súplica desesperada do meu irmão, dublê de diácono: “Há algum médico aqui que possa socorrer o padre?” Não havia. Mas surgiu uma multidão de curiosos querendo sacudir o badalo do padre, que se levantou pálido, zonzo, aéreo. Fora só um desmaio provocado pelo intenso abafamento.

Enquanto se providenciava um substituto para continuar a missa, lembrei-me de uma outra cena, trinta e cinco anos antes. O padre, na hora da consagração do vinho, suspendeu o cálice e falou: “Do mesmo modo, ao fim da ceia, tomou o cálice em suas mãos, abençoou, e deu aos seus discípulo dizendo...” nesse exato instante ele ergueu os olhos para a janela aberta na parede lateral do altar, com vista para o imenso pomar do convento, e viu uns moleques roubando laranjas, as suas laranjas. Não se conteve e emendou a fala de Jesus com a sua indignação: “Ladrões! Canalhas! Moleques sem vergonha!”. A plateia, também chamada de assembléia, tomou um susto. Quando Jesus Cristo dissera isso? Pensou-se que o padre havia enlouquecido. Generalizou-se o tumulto. O padre quis se explicar, mas não deixaram e ele saiu do altar direto para uma casa de repouso.  Depois foi transferido para outra paróquia e dele não se soube mais notícias.

Lembranças indeléveis que teimam em aflorar nostálgicas. Lembrei-me da última missa, trinta anos atrás, e da cara de espanto de Luciene quando lhe comuniquei a minha decisão de ir embora da cidade, partir no primeiro trem no dia seguinte, com destino a Salvador. Ela chorou no meu ombro. Um choro sincero, honesto, inconformado pela perda iminente. Ela sabia que seria uma viagem só de ida, sem retorno, um adeus definitivo, sem a esperança do “até a volta”. Seria inútil qualquer apelo para ficar. A cidade já tinha chegado ao meu limite.

Por onde andará Luciene? São trinta anos sem saber notícias e, pela primeira vez nesse ínterim, pensei em seus olhos azuis marejados e escurecidos pela tristeza. E me dei conta de que nunca me preocupei com o seu destino ou de ao menos saber de seu estado físico-emocional. Ela representava o meu último elo de ligação ao passado e eu queria esquecer completamente e quase teria conseguido se não estivesse ali, no templo das últimas lembranças. Por onde andará Luciene?

O padre foi substituído e a missa reiniciada. O meu irmão leu as epístolas de São Paulo aos Coríntios e ainda teceu outros comentários. Como ele é político, sabe dominar a platéia, envolver o povo. Em outras palavras, sabe enganar a torcida.

Antes do rito da comunhão, o celebrante pediu para que saudássemos uns aos outros em nome de Cristo. Primeiro, saudei os que estavam sentados no mesmo banco que eu; depois parti para os do banco da frente; ato contínuo, me virei para saudar o povo do banco de trás e não consegui abafar um grito de surpresa:

– Luciene! 

sábado, 6 de junho de 2015