Por esses dias, no dia 5 de junho, faz 11 anos que a música brasileira perdeu um de seus mestres sagrados e consagrados: o cantor e compositor João Nogueira, autor de sambas marcantes como Nó na madeira, Espelho, Um ser de luz, Clube do samba e Baile no Elite, entre tantos, quase sempre em parceria com feras Paulo César Pinheiro, Nei Lopes ou Edil Pacheco. Carioquíssimo como poucos, João – uma das mais belas vozes do nosso cancioneiro – nasceu no Méier, no dia 12 de novembro de 1941 (faria setentinha este ano). Era também um grande contador de causos, e foi personagem de alguns, como este que me contaram e eu conto aqui:
Contam que, se apresentando em Belém do Pará, o nosso artista resolveu dar uma volta no tradicional mercado Ver o peso, onde se compra de pirarucu seco e tucupi molhado a roupas, eletrodomésticos e folhas medicinais para curar de um tudo. Queixando-se de uns “probleminhas” de saúde, Nogueira procurou uma daquelas barracas especializadas em ervas, acompanhado do sobrinho, empresário, cantor, pau-pra-toda-obra, companheiro de fé e medianeiro Didu Nogueira.´
Amado e conhecido no Brasil inteiro, João foi reconhecido pelo caboclo do balcão e começou logo a fazer os pedidos:
– Meu camarada, qual é a folha boa para tratar diabetes?
– Essa aqui – respondeu o paraense, de primeira.
– E pra circulação?
– Essa! Desentope tudo o que é veia!
– E para essas coisas de estômago, esôfago, azia pós-esbórnia, o amigo tem alguma coisa?
– Eita! É comigo mesmo. Pode cozinhar essa casquinha de pau. É tiro e queda – e foi juntando a mercadoria escolhida. – Mais alguma coisa?
– Essa folhinha aqui serve pra quê? – perguntou João.
– Espinhela caída, joanete, inflamações generalizadas, cansaço, enxaqueca. Também serve para limpar a voz. Pro senhor, então, é um santo remédio.
João Nogueira pediu também umas misturas boas pros rins, um preparado pro fígado e mais meia dúzia de cipós, mandando embrulhar tudo.
Satisfeito com a venda, mas preocupado com a saúde do freguês famoso, o caboclo comentou baixinho com Didu:
– Arre, égua, véio! O nó-na-madeira aí tá bem ruinzinho, num tá?
sábado, 28 de maio de 2011
quinta-feira, 26 de maio de 2011
Antonio Torres - Carta aos jovens escritores de Palmeira dos Índios
Meninos, eu conto:
Foi na cidade de Alagoinhas, no interior da Bahia, que um professor chamado Carloman Carlos Borges emprestou um romance intitulado Angústia a um aluno que ele flagrou lendo um livro de poemas com este título: Amo! Assim mesmo, com ponto de exclamação! Passar de Amo! para Angústia não deixou de ser um tratamento de choque, radical mesmo, para aquele rapazinho que, ao trocar um autor dito J. G. de Araújo Jorge por um certo Graciliano Ramos, iria avançar rapidamente na sua escada ascendente de leitor, numa escalada sem volta. E de degrau em degrau, acabou se tornando um escritor. Este que agora lhes escreve, valendo-se de uma memória do seu tempo de colégio para saudar, com a mais viva emoção, todos os participantes do Concurso Jovem Escritor/ Prêmio Graciliano Ramos, em boa hora promovido pelo Instituto Federal, campus de Palmeira dos Índios.
É um momento raro para este velho escriba, pelo qual muito agradeço à professora Vanúsia Amorim: o de poder me dirigir aos jovens escritores da terra do velho Graça, aquele cuja leitura, desde meus anos mais juvenis, sempre me provocou um grande impacto, tanto pelos rigores de seus temas e de sua escrita, quanto pelo seu estilo admirável.
Conto isso para dizer que nascer em Palmeira dos Índios, como em qualquer outro lugar do estado de Alagoas, é trazer nas veias as marcas da melhor literatura que este nosso imenso país já foi capaz de produzir, e das quais o baiano aqui se sente impregnado. Porque esta é a terra também de Jorge de Lima - o poeta do qual hoje se diz haver nos legado uma obra “que permanece robusta e poderosa como um penhasco, na solidão incomparável do gênio”; de Lêdo Ivo, que será homenageado em setembro, na próxima Flimar, a Festa Literária de Marechal Deodoro - e cuja produção poética, monumental, está reunida num volume de mais de mil páginas, em edição da editora TopBooks, do Rio de Janeiro. De cepa tão vigorosa saiu ainda o jornalista e escritor Audálio Dantas – que será o patrono da próxima Bienal do Livro de Maceió, numa justa homenagem ao alagoano de Tanque D’Arca que tanto já brilhou, e continua brilhando, na imprensa e na vida artística de São Paulo, onde idealizou uma exposição de grande sucesso, chamada O chão de Graciliano, e de quem se aguarda a publicação de seu novo livro, que terá como protagonista o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, que teve sua vida tragicamente interrompida nos porões da ditadura militar, um tempo negro da nossa História, do qual certamente vocês já ouviram falar.
Portanto, jovens escritores: como o lastro literário de vocês é um legado do próprio chão em que nasceram, reforço-o com duas flores do jardim do poeta português Alexandre O’Neill, os dois versos a seguir que lhes ofereço como um prêmio de incentivo às suas futuras criações:
Folha de terra, ou papel,
tudo é viver, escrever.
Mãos à obra.
Antônio Torres
Itaipava (Petrópolis, RJ), junho de 2011.
Foi na cidade de Alagoinhas, no interior da Bahia, que um professor chamado Carloman Carlos Borges emprestou um romance intitulado Angústia a um aluno que ele flagrou lendo um livro de poemas com este título: Amo! Assim mesmo, com ponto de exclamação! Passar de Amo! para Angústia não deixou de ser um tratamento de choque, radical mesmo, para aquele rapazinho que, ao trocar um autor dito J. G. de Araújo Jorge por um certo Graciliano Ramos, iria avançar rapidamente na sua escada ascendente de leitor, numa escalada sem volta. E de degrau em degrau, acabou se tornando um escritor. Este que agora lhes escreve, valendo-se de uma memória do seu tempo de colégio para saudar, com a mais viva emoção, todos os participantes do Concurso Jovem Escritor/ Prêmio Graciliano Ramos, em boa hora promovido pelo Instituto Federal, campus de Palmeira dos Índios.
É um momento raro para este velho escriba, pelo qual muito agradeço à professora Vanúsia Amorim: o de poder me dirigir aos jovens escritores da terra do velho Graça, aquele cuja leitura, desde meus anos mais juvenis, sempre me provocou um grande impacto, tanto pelos rigores de seus temas e de sua escrita, quanto pelo seu estilo admirável.
Conto isso para dizer que nascer em Palmeira dos Índios, como em qualquer outro lugar do estado de Alagoas, é trazer nas veias as marcas da melhor literatura que este nosso imenso país já foi capaz de produzir, e das quais o baiano aqui se sente impregnado. Porque esta é a terra também de Jorge de Lima - o poeta do qual hoje se diz haver nos legado uma obra “que permanece robusta e poderosa como um penhasco, na solidão incomparável do gênio”; de Lêdo Ivo, que será homenageado em setembro, na próxima Flimar, a Festa Literária de Marechal Deodoro - e cuja produção poética, monumental, está reunida num volume de mais de mil páginas, em edição da editora TopBooks, do Rio de Janeiro. De cepa tão vigorosa saiu ainda o jornalista e escritor Audálio Dantas – que será o patrono da próxima Bienal do Livro de Maceió, numa justa homenagem ao alagoano de Tanque D’Arca que tanto já brilhou, e continua brilhando, na imprensa e na vida artística de São Paulo, onde idealizou uma exposição de grande sucesso, chamada O chão de Graciliano, e de quem se aguarda a publicação de seu novo livro, que terá como protagonista o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, que teve sua vida tragicamente interrompida nos porões da ditadura militar, um tempo negro da nossa História, do qual certamente vocês já ouviram falar.
Portanto, jovens escritores: como o lastro literário de vocês é um legado do próprio chão em que nasceram, reforço-o com duas flores do jardim do poeta português Alexandre O’Neill, os dois versos a seguir que lhes ofereço como um prêmio de incentivo às suas futuras criações:
Folha de terra, ou papel,
tudo é viver, escrever.
Mãos à obra.
Antônio Torres
Itaipava (Petrópolis, RJ), junho de 2011.
terça-feira, 24 de maio de 2011
Cineas Santos - Os meninos sanfoneiros
Já escrevi (não sei onde) que os meninos de minha aldeia, no sertão do Caracol, tínhamos um sonho recorrente: ir para São Paulo. Melhor seria: ir a São Paulo, já que não pretendíamos ficar por lá. Na verdade, “a terra da garoa” infundia-nos um misto de fascínio e medo. Mas, como os muçulmanos que não devem morrer antes de visitar a Meca, sertanejo que se preze precisa conhecer “a cidade que não pode parar”, mesmo que seja para morrer atropelado. Mais que uma cidade, São Paulo era o passaporte para muitos sonhos de consumo, o mais caro deles: uma sanfona vermelha, de preferência Scandalli. Por amor à verdade, devo confessar que não era exatamente a música que nos fascinava; a sanfona, acreditávamos, era apenas o caminho mais curto para chegar ao coração das mulheres... Por falta de qualquer instrumento que emitisse som, construíamos nossas sanfoninhas com palha de carnaúba e tocávamos música inaudível para ninguém, ou melhor, tocávamos para nossas musas invisíveis...
O sonho de me tornar sanfoneiro evaporou-se quando vi o Sivuca executando um frevo. Aquilo me pareceu coisa de mágico. Pensei comigo: por mais que eu me empenhe, não chegarei a tanto, e menos que isso não me satisfaz. Sem perder o gosto pela sanfona, desisti até mesmo de tentar. Quanto às mulheres, deixa quieto...
Essas lembranças tão caras me ocorreram ao ver, na semana passada, no meio da Praça Pedro II, dois meninos tocando sanfona como gente grande. Acompanhados por uma banda esperta, Zaqueu da Boa Hora e Sandrinho do acordeom fizeram um show de arrepiar. Tocaram tudo: de Escadaria a Feira de Mangai, com aquele atrevimento que só os moleques abusados têm. Zaqueu começou a tocar antes de perder os dentes de leite; Sandrinho ainda não os perdeu. O primeiro é natural do interior de Boa Hora; o segundo é sertanejo de Dom Inocêncio. Unidos pela paixão da sanfona, fizeram-se amigos, parceiros e tocam como se estivessem dialogando, com alegria, inventividade e, acima de tudo, competência. São os meninos sanfoneiros do Piauí.
Curiosamente, os dois cresceram vendo e ouvindo o chamado “forró de plástico”, com toda aquela parafernália de luz, cor e bundas em profusão. A despeito disso, preferem seguir as pegadas de Luiz Gonzaga, Sivuca, Jackson do Pandeiro, Dominguinhos, Osvaldinho, Camarão e outras feras batizadas. O cantor Chico César pode ficar sossegado: o “forró de plástico” é um modismo com prazo de validade vencido; o forró autêntico, puxado a sanfona chiadeira continuará sendo o sonho dos meninos sertanejos. Zaqueu e Sandrinho que o digam!
sexta-feira, 20 de maio de 2011
Edna Lopes - Senhora Dona Norma Culta
De Exposição Menas, o certo do errado, o errado do certo |
Permita-me que me apresente: Sou Edna Lopes, professora. Tenho 47 anos, 20 e tantos dos quais como profissional da Educação. Nasci de pai agricultor, mas dono de seu pedaço de chão e de mãe professora. Aos quatro anos aprendi a ler, aos sete entrei numa escola pública, mesmo ano em que conheci a luz elétrica. Na escola pública terminei o 2º grau aos dezessete e aos dezoito entrei numa universidade pública, colando grau aos vinte dois. Fiz pós -graduação em Educação Popular e também em Coordenação Pedagógica para a Educação Básica, sendo aprovada nos dois únicos concursos públicos que já fiz na vida, que me garantem o sustento e a satisfação de atuar numa profissão, se não prestigiada, mas extremamente importante para o desenvolvimento de um povo, de uma nação.
Tudo isso para lhe dizer que antes, bem antes de me graduar, já era professora em classes de crianças e depois em classes de jovens, de adultos e idosos esperançosos pela melhoria de suas vidas, de suas profissões através da educação, portanto minha experiência não só veio dos meus diplomas, nem dos tantos livros que li, nem dos congressos que participei e participo.
Tudo isso para lhe dizer também que nunca, nunquinha, meu fazer profissional se arvorou em assinar laudo, passar receita, fazer planta de casa, apresentar noticiário, instruir processo, construir casa ou fabricar móveis, e me causa espécie ver que, EM SEU NOME, especialistas de ocasião, opinam sobre uma realidade que conhecem talvez de ouvir falar, afinal o universo de pessoas adultas analfabetas ou analfabetas funcionais certamente está há anos luz da classe dirigente e intelectualizada desse país. Dos “imortais” então, nem se fala!
Lamento que EM SEU NOME se use “um texto, sem um contexto, para um pretexto”. Lamento mas ao mesmo tempo fico feliz porque a real face de um país se revela! O quanto somos manipuláveis, superficiais! O quanto somos intolerantes, impacientes!
Senhora Dona Norma Culta, nenhum, mas NENHUM PROFISSIONAL SÉRIO, seja ele professor, escritor, jornalista ou algo que o valha jamais irá dizer que SEU LUGAR não é também a escola. A sala de aula, espaço da pluralidade e do conhecimento é o lugar do acolhimento de TODAS as variantes da língua que ali devem ser expostas, ressignificadas, avaliadas, compreendidas, aprendidas.
Que fique bem claro: não sou da turma de quem quer que seja e não formulo opinião baseada em noticiários tendenciosos, em notas ou pronunciamentos superficiais, açodados, mas não me espanto com quem o faz. Quem é capaz de condecorar com sua mais alta honraria pessoas que NADA fizeram pela “flor do Lácio” é capaz de muitos mais equívocos e quem viver verá.
A senhora continuará sendo a VARIANTE DE PRESTIGIO, fique tranquila! E jamais duvide o quanto sou sua defensora, o quanto me esforço para que quem comigo caminha compreenda-a e utilize-a quando tiver que se comunicar falando ou escrevendo.
Mas reitero meu posicionamento: quem lhe defende como única só precisa ter ouvidos de ouvir e olhos de ver, não é? Que pena que não aprenderam, pra valer mesmo, aprender de apreender, de assimilar que a língua é de quem a usa e não de bolorentas gramáticas, não de arrogantes portadores de diplomas, ou de imortalidade duvidosa.
Quero concluir minha prosa com a Senhora lembrando um lindo poema do imortal, ao meu coração, Solano Trindade: “Senhora Gramática / perdoai os meus pecados gramaticais. / Se não perdoardes senhora / eu errarei mais.”
Senhora Dona Norma Culta, despeço-me. Serei aprendiz sempre, pois continuarei errando no intuito de acertar.
A foto é da exposição Menas: o certo do errado, o errado do certo, no Museu da Língua Portuguesa em 2010...A língua mais viva que nunca, provocante, provocando...
quinta-feira, 19 de maio de 2011
Cineas Santos - A Beleza da Partilha
No domingo passado, um jovem sacerdote se esforçava para seduzir os fiéis com um sermão sobre o encontro de Cristo com os Discípulos de Emaús. Embora o tema seja fascinante, a palavra de Deus não parecia frutificar. Lembrei-me do Sermão da Sexagésima, de Pe. Vieira: “Fazer pouco fruto a palavra de Deus no mundo pode proceder de um dos três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus”. Digamos que a culpa fosse dos ouvintes... O certo é que na passagem em que Cristo reparte o pão e, finalmente, é reconhecido pelos dois discípulos, fiquei emocionado. Impossível ignorar a força da palavra partilha.
Foi aí que o pensamento me levou a Guaribas, no sofrido sertão do Piauí. Eu estava fazendo um trabalho por lá, quando apareceu a equipe de uma TV espanhola. Depois de uma prosa em portunhol, um dos jornalistas me perguntou: professor, o que distingue o piauiense dos demais brasileiros? Respondi de bate-pronto: a hospitalidade, a generosidade. O jornalista, homem de meia idade, insistiu: o senhor poderia ser mais explícito? Limitei-me a dizer: o senhor está no município mais pobre do país. Vá à casa do mais humilde dos moradores de Guaribas e ele não hesitará em matar a única galinha da família para oferecer-lhe um prato de comida decente. E, se nada tiver, há de agraciá-lo com o seu melhor sorriso. O cidadão assentiu com a cabeça e afirmou: então é por isso que aonde chego sempre me oferecem alguma coisa. E mais não disse, por desnecessário.
Essa lembrança remeteu-me a outra bem mais recente. No bairro Ininga, onde moro, presenciei uma cena inesquecível. Meio-dia, sol a pino, um casal agasalhou-se à sombra de uma amendoeira. O homem era carroceiro, idade inescrutável, gestos lentos e cara sofrida. A mulher, catadora de papel, era rechonchuda, ativa, faladeira. Não sei que vínculo afetivo os unia. De repente, o carroceiro encostou-se na parede do muro, esticou as pernas e acendeu um cigarro. A mulher, sempre rindo e falando, abriu um saco de plástico escuro de onde retirou uma quentinha, dessas que se vendem nas biroscas da vida. Tirou um lenço colorido que trazia amarrado à cintura e o colocou na calçada como se fosse uma toalha. Em seguida, abriu a quentinha e, com um gesto acolhedor, convidou o carroceiro a compartilhar o grude. Como só havia uma colher, os dois passaram também a dividi-la. Cada um, depois da colherada, passava a ferramenta ao outro. Só me lembro de ter visto algo assim no sertão do Caracol onde faltavam comida e colher.
Por um instante, parei para apreciar aquela cena comovente: um casal extremamente pobre dividindo o que mal daria para alimentar um deles. Não me lembro de ter visto nada mais belo em matéria de partilha. Enquanto me afastava, pensei: Cristo não morreu em vão: alguma coisa efetivamente ficou.
quarta-feira, 18 de maio de 2011
Eis o quadro da educação no país
Professora do Rio Grande do Norte desabafa a respeito dos baixos salários dos professores e das salas de aula superlotadas em audiência pública na Assembleia Legisativa do Estado. É um discurso muito coerente com a realidade da Educação no país. Aqui em Alagoas o quadro é ainda pior. Vale a pena ver este vídeo.
terça-feira, 17 de maio de 2011
Maurício Melo Júnior - A mentalidade da desconstrução
A televisão ensaiava algumas cores. Era um borrão onde o vermelho agredia nossa visão espantada, encantada, perplexa. E o programa de entretenimento, entre muitos escuros e poucos claros, mostrava um israelita que entortava garfos e facas, o paranormal Uri Geller. Era um fenômeno. Com o poder da mente era capaz de quase tudo, contava.
Servindo ao Exército de Israel precisou saltar de paraquedas carregando uma bazuca. Para fazer um pouso perfeito, tirou todo miolo da arma. Já no avião lembrou que precisava atirar, e como faria com o equipamento desmontado? Usou a mente. Pousou com elegância, atirou e – pasmem – o disparo mereceu elogios e, certamente, tapinhas nas costas. Ao chegar ao alojamento as peças da bazuca desmontada estavam quentes como se realmente tivessem sido usadas.
Diante disso ficava fácil acreditar no depoimento de vários telespectadores que garantiam, atendendo ao pedido do paranormal, terem visto o liquidificador posto sobre a televisão ser ativado mesmo estando desligado da tomada. Minha descrença é que nunca me permitiu acreditar nas proezas desse herói destruidor de faqueiros e muito menos botar qualquer aparelho elétrico sobre a TV.
Talvez tenha perdido uma grande oportunidade de renovar meus valores, não sei.
Fato é que vinha eu de um tempo de descrenças, “um tempo onde o tempo não se esquece e os trovões eram roucos de se ouvir”, como cantava Zé Ramalho. Tempo de destruições homéricas. No Recife o prefeito Augusto Lucena, para abrir a Avenida Dantas Barreto, como um Pereira Passos moderno, destruiu casarões antigos e até a igreja dos Martírios. Diante da grita dos preservacionistas, declarou: “Se eu fosse prefeito de Roma demolia o Coliseu, um trambolho sem qualquer utilidade.”
O senso da destruição cantava em todos os recantos. E sempre com o mote monocórdio. Destruir para construir. No Rio de Janeiro a vítima desta estranha batalha foi o Palácio Monroe, antiga sede do Senado Federal. Um prédio belíssimo em sua exuberância arquitetônica. Caiu por determinação do presidente Emilio Garrastazu Médici para se construir o metrô carioca que, indiferente, caminha sob o vazio da antiga praça, do velho abrigo do palácio cujos lustres e colunas góticas decoram churrasqueiras em Brasília.
O sentido de um tempo. O Ministro da Educação, Jarbas Passarinho, construiu uma reforma educacional que desconstruiu todo sistema de educação pública. Priorizou a formação universitária que, de inicio, abrigou estudantes das excelentes escolas públicas, mas bastaram poucos anos para que essas escolas, minguadas, não mais conseguissem fazer seus alunos vencerem o monstro do vestibular. E nos pátios paupérrimos cantava-se: “Este é um país que vai pra frente…”
Para seguir em frente se precisa de estradas, não de escolas. “Governar é construir estradas”, já dizia Washington Luís. Então nada mais útil que uma infindável via ligando Recife a Manaus, a Transamazônica. E começaram tudo derrubando a floresta e erguendo agrovilas. Homens sem terra para um lugar de muita terra e poucos homens. Só depois é que descobriram que a terra não servia para o cultivo e, abandonadas, a estrada sem asfalto e as agrovilas sem homens foram retomadas pela secular floresta.
Certamente foi a força da natureza que não deixou o país ir adiante. Os governantes, com a grandeza de suas ideias, otimistas espelhos de Uri Geller, reagiram destruindo Sete Quedas para erguer a Hidroelétrica de Itaipu, a maior do mundo, nos orgulhávamos então. A natureza deu o troco. Quase destruiu pela garra das águas São José da Laje, nas Alagoas, a cidade que um dia aninhou Noel Nutels, um sanitarista que nos ensinou a respeitar os índios.
Eram águas muito bravas que chegavam em Palmares invadindo praças e ruas.
Numa dessas cheganças o prefeito José Pretestato de Santana, o seu Dedé, estava limpando a casa invadida pelo barro imenso que entrava pela porta do quintal, quando chegou o governador Moura Cavalcante para vistoriar a tragédia. “Prefeito, fique tranquilo. Vou mandar uma verba gorda e o senhor pode deixar essa casa que lhe tem dado tanto desassossego.” Seu Dedé continuou morando na mesma casa e comercializando na mesma venda do Beco do Mijo. Desprezou o canto da sereia que desconstruía princípios morais e deve ter usado o dinheiro no que devia, pois morreu como o homem remediado que sempre foi.
Igrejas, monumentos, casas, cidades, princípios, homens e mulheres. Durante duas décadas assistimos, não impassíveis, prevalecer a cultura da desconstrução. Pelos riachos da vida desceram muito mais que o boi morto visto pelo poeta Manuel Bandeira. Foi a crença de toda uma geração que se carregou nessa enxurrada.
Ainda assim resistíamos falando mal do governo pelos botecos. Quando era possível votávamos na oposição e alimentávamos nossa porção demolidora. Dizíamos horrores dos mandatários empoleirados no mando, mas a força era tão miúda que somente podíamos secundar Pinto do Monteiro diante de um soldado que botou um couro de rato em sua bandeja: “Derrubar eu não derrubo / porque a força é pequena. / Matar eu não vou matar / porque a justiça condena. / Mas Lampião ter morrido / oh coisa de fazer pena.”
E afinal o que construímos com as forças mentais e musculares que sobraram destes destroços?
Só outra crônica para responder.
domingo, 15 de maio de 2011
A Biblioteca Pública Antonio Torres e a violência
A Biblioteca Pública Antonio Torres está se tornando um centro de referência de leitura da região. Diariamente centenas de estudantes, pesquisadores ou apenas leitores procuram a biblioteca em busca de um bom livro. Por ser o patrono, Antonio Torres, um escritor conhecido internacionalmente, a Biblioteca não para de receber doações, tendo como uma de suas mantenedoras a Fundação Casa de Jorge Amado.
Não é de agora que o também escritor da terra, Luiz Eudes, luta para que a biblioteca tenha sua própria sede, inclusive, em meados da década passada, ele era secretário da Cultura e conseguiu verba da Petrobrás para tal fim, ficando apenas a Prefeitura de ceder o local, mas, por um desses reveses da vida, armaram contra o prefeito de então, a Oposição assumiu e a cidade mergulhou num histórico de corrupção jamais testemunhado pelos viventes do lugar.
Mas, depois de Luiz Eudes, nenhum outro secretário entrou com proposta ou propósito benéfico para a Cultura local. Ao contrário, o sucessor de Luiz Eudes deu fim ao acervo da biblioteca, emprestando livros aos amigos e correligionários e não cuidando em pegá-los de volta. Quando a atual administração municipal assumiu, Luiz Eudes tornou-se secretário de Finanças, mas, por sorte dos leitores da terra, ficou também responsável pela biblioteca e ele botou os funcionários para recuperar o acervo perdido.
Juntou-se a Luiz Eudes a professora e poetisa Cristiana Alves, uma entusiasta da biblioteca. Mestranda em Crítica Cultural na Uneb de Alagoinhas, ela tem uma visão avançada a respeito de livros, leitores e leitura. Alguns dos seus alunos já foram premiados em concursos literários e uma aluna participou da última bienal do livro de Salvador com uma antologia poética.
Ao colocar a biblioteca parede e meia com a agência do Banco do Brasil, o prefeito assumiu o risco de colocar os funcionários e os frequentadores da mesma à mercê da sanha criminosa. Imaginemos que esse assalto da madrugada de ontem tivesse acontecido à luz do dia, como nas quatro vezes anteriores em que esta mesma agência foi assaltada. Mesmo não sendo a intenção dos quadrilheiros machucar alguém, teriam dinamitado uma biblioteca cheia de gente inocente, principalmente, crianças e adolescentes que estudam no Grupo Escolar situado quase em frente e usam a biblioteca como fonte de pesquisa.
Agora, senhor prefeito, chegou a hora de refazer vossa santa visão equivocada de festas e festejos na Soterópolis e falar o que o bom senso exige e que o povo tanto espera: “Se os estudantes de Salvador têm biblioteca segura, por que os de Sátiro Dias não podem ter?” Garanto a vossa excelência que uma sede segura e decente para a biblioteca, com auditório e sala de vídeo, custa muito menos, mas muito menos mesmo, do que vossa excelência paga a uma banda dessas para atrair os ladrões para a terrinha.
No dia da festa ou no replay. Como na madrugada de ontem. Quem procurar a cidade de Sátiro Dias no Google, dá de cara com a seguinte informação do Wikipédia:
“A cidade de Sátiro Dias é famosa por suas festas, como: padroeira da cidade que é patronada por Nossa Senhora do Amparo e ocorre no dia 2 de fevereiro, festejos juninos, aniversário da cidade (14 de agosto) e a sua vaquejada. Ao longo de sua história foi palco para a apresentação de vários artistas nacionais como: Ivete Sangalo, Babado Novo, Bruno & Marrone, Amado Batista, Harmonia do Samba, Aviões do Forró, Edson Gomes, Raça Negra, Calcinha Preta, Mastruz com Leite, Alcymar Monteiro, Adelmário Coelho, Arreio de Ouro, Estakazero, Reginaldo Rossi, É o Tchan, Cavaleiros do Forró, Pagod'art, Pedro & Thiago, Cheiro de Amor, Patchanka, entre outros.”
Todos esses artistas de cachê de ouro foram pagos com os parcos recursos públicos nas três gestões do atual prefeito, na verdade, um bom festejador. E ainda está faltando uma porção de gente boa, como Psirico e companhia limitada. Agora eu pergunto aos cidadãos do Junco: quanto custou esses cachês milionários e quanto custa uma sede para a biblioteca? Qual benefício se adquiriu com esses artistas midiáticos e quais benefícios traz à população o funcionamento adequado da biblioteca?
Infelizmente a cidade de Sátiro Dias deixou de ser “famosa por suas festas” para se tornar famosa nas páginas policiais. Felizmente, até agora não houve vítimas fatais, mas até quando se lidará com ladrões bonzinhos?
sábado, 14 de maio de 2011
Arraial do Junco, a cidade do medo
Hoje o Brasil ouviu falar do Junco, não pelas ações literárias do seu filho ilustre, o escritor Antonio Torres, mas pela ocorrência policial que ganhou dimensão nacional na mídia devido à ação arrojada e inovadora dos correntistas noturnos do Banco do Brasil, aqueles que usam dinamite em vez de cartão magnético nos caixas eletrônicos.
O arraial do Junco, batizado de Sátiro Dias no início do século passado, é um município com pouco mais de 18 mil habitantes, faz parte da microrregião de Alagoinhas e possui um dos mais baixos IDHs do país. Sua economia é baseada em agricultura de subsistência, comércio local, exploração de eucalipto e petróleo, porém, nos últimos anos se fez conhecer pela gastança do dinheiro público com festas e cachês caríssimos, o que levou o atual prefeito a justificar tais gastos dando uma declaração absurdamente equivocada no seu portal eletrônico: “Se o povo de Salvador pode ter as melhores atrações da axé music, por que o povo de Sátiro Dias também não pode?”
Poder até que pode, seu prefeito, mas esse dinheiro teria melhor serventia se aplicado em obras que trouxesse benefício ao povo, como Educação, Saúde, Infraestrutura e, o xis da questão, Segurança Pública. Além do mais, tais atrações milionárias atraem o povo de fora tal qual formiga em açucareiro e os nativos ficam reféns dos desordeiros e meliantes até os acordes finais, com direito a replay, como foi o caso desta madrugada.
Acabou-se o sossego. Ninguém dorme mais tranquilo, principalmente os que moram afastados da urbe. E o Junco, que até tempos atrás era apenas uma pacata cidadezinha do interior, continua sendo uma cidadezinha do interior, porém com os grandes males da cidade grande: o tráfico de drogas, o assédio, o assalto e o latrocínio. Quando inauguraram a torre de uma operadora de celular no ano passado, um cidadão investiu o que possuía numa loja de aparelhos. Ao chegar à loja no dia seguinte à inauguração, não havia um aparelho de celular para contar a história.
Mas o assalto de ontem faz parte de uma crônica do terror anunciado. Enquanto o poder público investe pesado nas bandas de axé e duplas sertanejas, dois minguados agentes policiais tomavam conta da cidade. Aliás, dormiam na delegacia. Não há delegado, não há promotor de Justiça, não há policiamento ostensivo. O lema é: cada um por si e salve-se quem puder.
“Por ser uma noite de sexta-feira havia música ao vivo no Quiosque da Praça e o mesmo estava cheio. Perto da meia-noite pararam dois carros grandes, desceram uns caras armados até os dentes, tomaram o bar de assalto e obrigaram a gente a acompanhá-los até o Banco do Brasil. Foi todo mundo calado, homens, mulheres, crianças, velhos... Chegando ao banco, eles jogaram dinamite na agência e as paredes viraram um monte de entulho. Depois que pegaram o dinheiro, escolheram seis mulheres, colocaram na parte da frente dos carros, três em cada um, e foram para a Delegacia. Chegando lá, metralharam a viatura e obrigaram os dois policias a jogarem as armas fora. Em seguida bateram em retirada e deixaram as reféns um pouco depois da saída da cidade”, relatou uma das personagens que estavam no bar em busca de diversão e se tornaram vítimas da violência.
Os assaltantes inovaram no modus operandi: em vez de dinamitar os caixas eletrônicos, dinamitaram todo o banco e também destruíram parcialmente a Biblioteca Pública Antonio Torres, administrada pela Prefeitura. Uma das paredes fazia divisória com o banco e a mesma foi pelos ares, juntamente com parte do acervo da biblioteca.
Pelos ares também foram os correntistas do Banco do Brasil na cidade. Sem dinheiro a circular, o comércio passará sérias dificuldades. E os velhinhos aposentados, como ficam? Mesmo sacando sua minguada aposentadoria no banco local, vez ou outra morria um, vítima dos latrocidas. Agora terão que sair em comboio até Inhambupe, a cidade mais próxima, e no retorno serão vítimas fáceis dos salteadores.
E os comerciantes? Sem banco onde depositar o movimento diário, serão eles guardiães de seu próprio dinheiro, atraindo para si a cobiça desenfreada dos amigos do alheio.
Apesar de tomar a cidade de assalto à moda cangaceira e tornar a população refém do medo, os cangaceiros modernos só queriam o dinheiro do banco e não causaram nenhum transtorno físico a ninguém, nem mesmo aos policiais. Como diz o dito pop, entre mortos e feridos salvaram-se todos. Mas fica a lição aos moradores, principalmente aos governantes: essa megalomania festeira desacompanhada de investimento na Segurança Pública escancara aos meliantes alhures a fragilidade de uma cidade sem lei e sem rei, embora haja gente com pinta de imperador.
quarta-feira, 11 de maio de 2011
Cineas Santos - Vazando pelo ladrão
A placa do outdoor permanece lá: “Fulana: este outdoor é pequeno para demonstrar o tamanho do meu Amor por você... Sei que errei, mas estou aqui para te pedir desculpas. Te amo! Sicrano”. Não bastasse o fundo vermelho, dois corações entrelaçados ilustram a comovente mensagem. Muito românticos, dirão os românticos. Muito patético, diriam os irreverentes. Quanto a mim, direi apenas: um telefonema ou um e-mail poderiam obter o mesmo resultado por um custo um pouco menor.
Espero que o autor da mensagem não se aborreça comigo. O amor é dele; o dinheiro, também. Ninguém tem nada a ver com isso. Mais estranho é o caso da cidadã enfusada que espalhou placas de outdoor pela cidade inteira com apimentadas declarações de amor feitas por um admirador que nunca existiu. Como em Teresina tudo se sabe, a história vazou e caiu na boca do mundo. Houve um tempo, não muito distante, em que se procurava um escurinho para beijar a (o) namorada (o). Hoje, buscam-se os holofotes, escolhe-se o melhor ângulo ou o enquadramento perfeito e manda ver. Beijar já não basta; é preciso dizer ao mundo que você beija e como beija. Num desses carnavais fora de época, que emporcalham as ruas, um rapaz, esfuziante, jactava-se diante das câmaras: “Bati meu próprio recorde: hoje, beijei 300 garotas!”. Ora, não é preciso ser especialista em nada para saber que quem beija 300 garotas, num curto espaço de tempo, não beijou nenhuma. Na mesma noite, uma garota bem-nascida berrava ao telefone: “Fiquei com seis! Seis!” e ria-se com todos os dentes. Ó tempora! Ó mores! , diriam os antigos.
O problema, segundo um amigo especialista em teses complicadas, “É que já não cabemos em nós mesmos. Estamos vazando pelo ladrão”. Com a autoridade de quem estudou muito, vai adiante: “Outrora, bastava pensar para existir; hoje, é preciso estar na mídia gritando: estou aqui! estou aqui! para que o mundo tome conhecimento da nossa existência”. Falta-me autoridade para contestá-lo. Um exemplo: mesmo sabendo que fotografias nos facebooks podem ser montadas e remontadas ao gosto do freguês, jovens e velhos postam fotografias, todos os dias, sem nenhuma preocupação. A chamada vida privada já não existe nem na dita cuja. Com a proliferação dos celulares com câmaras fotográficas, o seu traseiro pode estar sendo exposto ao mundo enquanto você descome num banheiro qualquer. A vida tornou-se um imenso reality-show. Acrescente-se a isso o twitter, que dá conta até das flatulências que o freguês expele por dia. Os seguidores aplaudem e reproduzem a informação, com a velocidade da luz.
Quando Andy Wharol afirmou que, num futuro próximo, todo mundo teria direito a 15 minutos de glória, certamente não sabia que estava rogando uma praga que atingiria a humanidade inteira. Decididamente, a vida no singular tornou-se impensável. Gostando ou não, estamos condenados trotar com a manada. Mundão pequeno, sô!
segunda-feira, 9 de maio de 2011
Luís Pimentel - Promessas
1.
Prometeu que não faria mais aquilo.
Nem aquilo outros – as mariposas, o conhaque, todos os jogos de azar.
Ela acreditou, até bater na porta da mãe, aos prantos:
– Ele fez de novo.
– Sempre fazem – respondeu a voz da experiência. – Pela décima vez, minha filha, como no samba do Noel.
2.
Prometeu subir de joelhos as escadas da Igreja da Penha, se alcançasse a graça de ver o Oswaldo com um trabalho decente e afastado do vício.
Oswaldo arrumou um batente, na limpeza urbana, e pendurou para sempre o copo.
Ela esqueceu a promessa: tantos degraus, ninguém merece. Depois, o emprego era uma ninharia, e o vício dele – meia dúzia de cervejas, duas ou três cachacinhas – nem tão grande assim.
domingo, 8 de maio de 2011
Mãe, só tem uma
Era mês de maio. Dia das Marias. Dia das Noivas. Dia das mães. O tema da redação para a segunda-feira fazia jus às homenageadas da vez: as mães. Não uma redação qualquer. Obrigatoriamente teria que terminar em “mãe, só tem uma”.
– Claricinha, levante-se e leia sua redação – ordenou a professora, que ainda não era mãe, mas seria quando casasse, assim dizia aos alunos.
Claricinha pegou o caderno, pigarreou, olhou os colegas e começou a leitura:
– Ontem à tarde a minha mãe, meu irmão e eu fomos ao shopping fazer compras e na hora de atravessar a rua o meu irmão se soltou do braço da minha mãe e seguiu na frente, sem perceber que vinha um carro em alta velocidade. A minha mãe não pensou duas vezes: deu um pulo e puxou o meu irmão e por pouco ele não foi atropelado. Ela só fez isso porque mãe, só tem uma.
– Muito bem, Dona Clarice. Agora é a sua vez, Carlos Augusto.
Carlos Augusto se levantou, pegou o caderno e começou a leitura, sem olhar os colegas:
– Ontem de manhã fomos pro sítio do meu avô e o meu primo Artur me chamou pra ir pescar no açude. O sol esquentou e eu resolvi dar um mergulho, mas o açude era fundo e eu comecei a me afogar. O meu primo correu até a casa pra buscar socorro e a minha mãe veio esbaforida, se jogou dentro d’água e me arrastou até a margem. Depois que a gente saiu da água, ela se lembrou de que não sabia nadar e que poderia ter morrido também. Mas ela só fez isso porque mãe, só tem uma.
– Muito bem, Doutor Carlos Augusto. Espero que tenha aprendido a lição. Joãozinho, agora é a sua vez.
Expectativa geral. Joãozinho se levantou devagar, apanhou o caderno, olhou para os colegas valorizando a importância do momento, tomou fôlego e começou:
– Domingo passado o meu primo Juquinha foi almoçar lá em casa. A minha mãe não gosta muito quando ele vai pra lá não, porque ele é muito buliçoso. E quando a gente terminou de almoçar, a minha mãe me pediu pra pegar duas latas de Coca-Cola que estavam na geladeira. Fui contrariado porque queria tomar a outra Coca-Cola de noite, sozinho. Quando abri a geladeira tomei um susto com o que vi. Então gritei pra minha mãe: “Mããããee! Só tem uma!”
sábado, 7 de maio de 2011
O Desmamado
Conta o anedotário que dentro do ônibus a mãe olhava distraída pela janela enquanto dava mamar ao filho. De repente notou a insistência do olhar de um passageiro, em pé, ao seu lado. Perguntou bruscamente:
– O que foi? Nunca viu uma criança mamar?
– Desculpe, dona, não é por maldade não. É que minha mãe morreu quando eu nasci e toda vez que vejo uma criança mamando fico morrendo de inveja, pois nunca tive o prazer de mamar.
Diante de tão comovente explicação, a mãe aquiesceu. Amoleceu o coração. Tornou-se solidária:
– Olha, vou lhe dar meu endereço e amanhã o senhor passa lá em casa que deixo o senhor mamar um pouquinho pra sentir o gosto, tá certo?
Que coração! Quem, senão uma mãe, para ter tanta bondade?! No outro dia o desmamado chegou cedo. A mãe o mandou entrar e sentar-se no sofá. Ela se aconchegou ao seu lado, suspendeu a blusa e lhe deu o peito cheio de leite. Era uma boa vaca leiteira, como se dizia na minha terra quando a mãe tinha muito leite.
Após dois minutos de mamação, ela começou a se excitar. Com a respiração ofegante, gemeu em sussurros:
– Tem certeza de que não quer mais nada? Se quiser, pode pedir!
– Posso, moça?
– Claro que pode! Qualquer coisa... Qualquer coisa meeesssmo!
Ele pensou, pensou... respirou fundo, criou coragem e pediu:
– A senhora tem aí um biscoitinho Cream Cracker?
sexta-feira, 6 de maio de 2011
Luís Pimentel - Dia das Mães
No ano retrasado ele veio, ano passado não. Este ano, só Deus sabe se vem. Pensam que fico esperando? Espero que nem aquela porta espera, aquela mesa espera, aquela planta ali. Não faz nenhuma diferença ele vir ou não vir, com as tolas recomendações de sempre, as mesmas e falsas preocupações.
Teve um ano que trouxe o filho. E o filho veio com a namorada. Dois jovens abobalhados, olhando para as paredes descascadas com curiosidade mórbida, me encarando com nojo e repulsa. Não aceitaram a água nem o guaraná que ofereci, com certeza por acharem que os copos não são lavados. Meu filho ainda aceitou a cerveja, talvez por saber que o álcool desinfeta tudo.
A mulher não vem nunca com ele. Nenhuma falta me faz. Fico dispensada dos salamaleques, de fingir naturalidade, falando de doenças ou de novelas. Tão bem criado, tão mal casado. A última vez que ela apareceu aqui, veio direto do salão de beleza e manteve os dedos esticados, durante os minutos que durou a visita de médico, para não encostar a unha em nada. Meu filho mostrou o quarto onde vivia quando rapaz solteiro. Ela riu, cínica e sonsa. “Como é que alguém pode viver num buraco desses?”, devia estar pensando.
Barulho no portão, só pode ser ele. Lá vêm flores murchas, presente ordinário, casaco de lã ou meias de nylon, garrafa de vinho de padaria, adocicado e enjoativo, pacotinho de torradas que eu não comia nem no tempo que tinha dentes. Vai se sentar no sofá que está forrado desde cedo e estirar as pernas no banquinho que só sai do quarto quando ele vem aqui. Claro que não vai demorar, pois tem compromisso com o filho ou com a mulher. Pouco se me dá que venha ou não venha, fique ou não fique.
Não era ele no portão. Apenas um vendedor de frutas. Pela hora, duvido que ainda apareça aqui. Melhor dobrar e guardar o lençol novo que coloquei no sofá, não quero que pegue poeira. Melhor devolver para o quarto o banquinho de estirar as pernas. Ano que vem pode precisar.
quarta-feira, 4 de maio de 2011
Cineas Santos - Ecos do Sertão
Faz um tempinho que, por minha conta e risco, venho tentando construir uma ponte cultural entre Teresina e o sertão do Piauí. Foi assim que nasceu o projeto A Cara Alegre do Piauí, em 1977. É ocioso dizer que os resultados alcançados ficaram muito aquém das expectativas. Nada de extraordinário: os sonhos voam; as pernas, quando muito, correm... O certo é, ao longo desses anos, nunca me passou pela cabeça a ideia de desistir da construção do necessário diálogo entre a capital e o interior.
Agora mesmo, estou chegando do sertão - Canto do Buriti, São Raimundo, Anísio de Abreu e São João do Piauí - com a alegria de quem acredita no que faz. Posso lhes assegurar que, a despeito das dificuldades de toda ordem, há uma enorme efervescência cultural no interior do Piauí. Os pontos de cultura, presentes em toda parte, são pequenas usinas de beleza. Agregam jovens e adultos e evidenciam a importância da cultura como instrumento de resgate da cidadania e elevação da autoestima do povo.
Das iniciativas culturais que vi, uma me deixou muito entusiasmado e feliz: trata-se do projeto EnCantadores do Sertão,coordenado pelo prof. Gonçalo Carvalho Filho, em São João do Piauí. Como coordenador da Universidade Aberta do Brasil, Gonçalo resolveu envolver os alunos num projeto de grande alcance pedagógico e social. Em vez de teorias inócuas, experiências vivenciadas. O resultado não poderia ter sido mais feliz. Com poucos recursos, mas com enorme capacidade de trabalho, o grupo vem resgatando práticas culturais prestes a desaparecer. O projeto conta com o apoio da Associação Cidadania Verde, da Rádio e Portal São-joanense. Pelo menos uma vez por mês, o grupo se reúne na casa de um dos artistas da terra e realiza uma espécie de sarau onde cada um mostra o que pode e sabe fazer. Desses encontros, nasceram o CD do mestre Julimar do Pife e o DVD Batuque do Brás. Trata-se de trabalhos artesanais, de aparência pobre, mas extremamente valiosos por contribuir para manter vivas tradições seculares. Dona Conceição Viana, de 77 anos de idade, traduz o sentimento dos batuqueiros: “A gente nasceu e se criou brincando com o Brás, a gente se considera uma grande família. O batuque do Brás nunca vai acabar porque nós somos muitos. Eu vou embora daqui a uns dias, mas têm os outros aí, os netos, os bisnetos, os tataranetos dele. Se ele fosse vivo,ficaria muito orgulhoso por estarmos dando continuidade ao trabalho dele”.
Para quem acredita no poder restaurador da cultura, é gratificante ver o brilho nos olhos de figuras do naipe de Jonas, Dió, Dedício, Miltinho, Quibobô, Seu Berto , Xubéu e tantos outros. Gente simples que, com engenho e arte, faz jus ao título de encantadores do sertão. Longa vida a esse projeto luminoso.
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