terça-feira, 17 de maio de 2011

Maurício Melo Júnior - A mentalidade da desconstrução



A televisão ensaiava algumas cores. Era um borrão onde o vermelho agredia nossa visão espantada, encantada, perplexa. E o programa de entretenimento, entre muitos escuros e poucos claros, mostrava um israelita que entortava garfos e facas, o paranormal Uri Geller. Era um fenômeno. Com o poder da mente era capaz de quase tudo, contava.

Servindo ao Exército de Israel precisou saltar de paraquedas carregando uma bazuca. Para fazer um pouso perfeito, tirou todo miolo da arma. Já no avião lembrou que precisava atirar, e como faria com o equipamento desmontado? Usou a mente. Pousou com elegância, atirou e – pasmem – o disparo mereceu elogios e, certamente, tapinhas nas costas. Ao chegar ao alojamento as peças da bazuca desmontada estavam quentes como se realmente tivessem sido usadas.

Diante disso ficava fácil acreditar no depoimento de vários telespectadores que garantiam, atendendo ao pedido do paranormal, terem visto o liquidificador posto sobre a televisão ser ativado mesmo estando desligado da tomada. Minha descrença é que nunca me permitiu acreditar nas proezas desse herói destruidor de faqueiros e muito menos botar qualquer aparelho elétrico sobre a TV.

Talvez tenha perdido uma grande oportunidade de renovar meus valores, não sei.

Fato é que vinha eu de um tempo de descrenças, “um tempo onde o tempo não se esquece e os trovões eram roucos de se ouvir”, como cantava Zé Ramalho. Tempo de destruições homéricas. No Recife o prefeito Augusto Lucena, para abrir a Avenida Dantas Barreto, como um Pereira Passos moderno, destruiu casarões antigos e até a igreja dos Martírios. Diante da grita dos preservacionistas, declarou: “Se eu fosse prefeito de Roma demolia o Coliseu, um trambolho sem qualquer utilidade.”

O senso da destruição cantava em todos os recantos. E sempre com o mote monocórdio. Destruir para construir. No Rio de Janeiro a vítima desta estranha batalha foi o Palácio Monroe, antiga sede do Senado Federal. Um prédio belíssimo em sua exuberância arquitetônica. Caiu por determinação do presidente Emilio Garrastazu Médici para se construir o metrô carioca que, indiferente, caminha sob o vazio da antiga praça, do velho abrigo do palácio cujos lustres e colunas góticas decoram churrasqueiras em Brasília.

O sentido de um tempo. O Ministro da Educação, Jarbas Passarinho, construiu uma reforma educacional que desconstruiu todo sistema de educação pública. Priorizou a formação universitária que, de inicio, abrigou estudantes das excelentes escolas públicas, mas bastaram poucos anos para que essas escolas, minguadas, não mais conseguissem fazer seus alunos vencerem o monstro do vestibular. E nos pátios paupérrimos cantava-se: “Este é um país que vai pra frente…”

Para seguir em frente se precisa de estradas, não de escolas. “Governar é construir estradas”, já dizia Washington Luís. Então nada mais útil que uma infindável via ligando Recife a Manaus, a Transamazônica. E começaram tudo derrubando a floresta e erguendo agrovilas. Homens sem terra para um lugar de muita terra e poucos homens. Só depois é que descobriram que a terra não servia para o cultivo e, abandonadas, a estrada sem asfalto e as agrovilas sem homens foram retomadas pela secular floresta.

Certamente foi a força da natureza que não deixou o país ir adiante. Os governantes, com a grandeza de suas ideias, otimistas espelhos de Uri Geller, reagiram destruindo Sete Quedas para erguer a Hidroelétrica de Itaipu, a maior do mundo, nos orgulhávamos então. A natureza deu o troco. Quase destruiu pela garra das águas São José da Laje, nas Alagoas, a cidade que um dia aninhou Noel Nutels, um sanitarista que nos ensinou a respeitar os índios.

Eram águas muito bravas que chegavam em Palmares invadindo praças e ruas.

Numa dessas cheganças o prefeito José Pretestato de Santana, o seu Dedé, estava limpando a casa invadida pelo barro imenso que entrava pela porta do quintal, quando chegou o governador Moura Cavalcante para vistoriar a tragédia. “Prefeito, fique tranquilo. Vou mandar uma verba gorda e o senhor pode deixar essa casa que lhe tem dado tanto desassossego.” Seu Dedé continuou morando na mesma casa e comercializando na mesma venda do Beco do Mijo. Desprezou o canto da sereia que desconstruía princípios morais e deve ter usado o dinheiro no que devia, pois morreu como o homem remediado que sempre foi.

Igrejas, monumentos, casas, cidades, princípios, homens e mulheres. Durante duas décadas assistimos, não impassíveis, prevalecer a cultura da desconstrução. Pelos riachos da vida desceram muito mais que o boi morto visto pelo poeta Manuel Bandeira. Foi a crença de toda uma geração que se carregou nessa enxurrada.

Ainda assim resistíamos falando mal do governo pelos botecos. Quando era possível votávamos na oposição e alimentávamos nossa porção demolidora. Dizíamos horrores dos mandatários empoleirados no mando, mas a força era tão miúda que somente podíamos secundar Pinto do Monteiro diante de um soldado que botou um couro de rato em sua bandeja: “Derrubar eu não derrubo / porque a força é pequena. / Matar eu não vou matar / porque a justiça condena. / Mas Lampião ter morrido / oh coisa de fazer pena.”

E afinal o que construímos com as forças mentais e musculares que sobraram destes destroços?

Só outra crônica para responder.


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