sábado, 10 de dezembro de 2011

A primeira vez que esperei Noel


Seu irmão mais velho, em visita de filho pródigo aos pais, lhe prometera um velocípede de presente de Natal ao subir no ônibus no dia do ir embora. Nas quebradas do Sertão daqueles tempos não era comum se presentear as pessoas, muito menos os irmãos, em tempo de Natal. A data era comemorada apenas pelas visitas aos presépios enquanto se aguardava a Missa do Galo. Papai Noel era uma palavra desconhecida das crianças.

O garoto não sabia se faltava muito ou se faltava pouco, mas sentia haver uma eternidade entre a promessa e o dia prometido. Sonhava diuturnamente com a chegada do irmão trazendo na bagagem o seu presente.

Um dia acordou sobressaltado mal o galo cantou e correu em busca da folhinha. Então, finalmente, o Natal havia chegado. Passou o dia sentado à beira do caminho esperando ver a figura do irmão se descortinar na distância. A noite chegou, os pirilampos acenderam suas lanternas, e o seu pai o encontrou atento aos vultos passantes. 

- Vamos, filho! Talvez seu irmão tenha perdido o ônibus de Zé do Padre. Não veio hoje, talvez venha amanhã ou depois de amanhã. 

O Natal foi embora e ele continuou a esperar sentado à beira do caminho. Um dia o seu irmão apareceu sem que ninguém esperasse e o garoto sentiu o coração subir à goela. Finalmente realizaria o sonho de possuir um velocípede.

- Você cresceu um bocado, garoto. Não adiantava trazer um velocípede. No Natal vou lhe trazer uma bicicleta. Aguarde.

Os sonhos não se acabam nunca. Apenas se renovam. Uma bicicleta seria o suprassumo de um sonho de uma criança, principalmente em um lugar onde não existia nenhuma. O Infinito seria nada, perto de sua ansiedade sentado à beira do caminho ao longo dos dias à espera de um irmão que tardava em chegar.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Luís Pimentel - Eu prometo

* ... Que em 2012 faço um regime, volto a caminhar, paro de beber, deixo de fumar e, sobretudo, não farei mais promessas!

* ... Que vou trabalhar menos e aproveitar mais a vida: trabalhando, claro, que ainda é a melhor maneira de aproveitá-la.

* ... Que vou continuar torcendo pelo mesmo time, frequentando o mesmo boteco (que fica em Copacabana, claro), convivendo com os mesmos amigos (o meu parceiro Amorim entre eles), vivendo com a mesma mulher. Até porque, estou muito velho para muitas novidades...

* ... Que não olharei para a mulher do próximo, nem mesmo se o próximo estiver muito próximo (Por aí tem tanta mulher "do distante" para se olhar)!

* ... Não trocar de carro, não trocar as pernas, não trocar a noite pelo dia, não fazer troca-troca, não trocar o certo pelo duvidoso. Aliás, antes de trocar, preciso descobrir: qual é o certo, qual é o duvidoso?

* ... Voltar em Feira de Santana, rever Paris, conhecer Lisboa, mergulhar no mar, dançar numa cachoeira, correr numa corredeira e afastar a morte... essa companhia derradeira. Prometo não filosofar nem pensar besteira!

*... Não usar o santo nome em vão. Nem andar na contramão.

* ... Contemplar mais a natureza, começar melhor a semana, enfrentar qualquer dureza, olhar melhor as pernas da Luana, não fazer poesia; a não ser que seja em legítima defesa.

* ... Agradecer a Deus, todos os dias, por me dar um ano que começa tão bom quanto o que passou!


Programa Repertório - Jeane Hanauer - TV Foz do Iguaçu


Queridos amigos:

O Programa Repertório é o único programa de TV de Foz do Iguaçu voltado à arte e à cultura produzida em Foz e região trinacional.

Seja parceiro deste projeto ou envie sugestões e comentários para jeanehanauer@hotmail.com

Os programas podem ser vistos também no youtube - canal Jeane Hanauer.

Todos os domingos nova e deliciosa entrevista.

Nesta edição, entrevistamos o ator, diretor e produtor Juca Rodrigues (04/12/2011).

Para que o programa ganhe visibilidade, gere parcerias e assim possamos melhorar progressivamente a qualidade, necessitamos da ajuda de vocês na difusão. Reenviem esta mensagem aos seus contatos via e-mail e redes sociais.

Agradecemos imensamente esta contribuição e os incentivos que temos recebido.

Um abraço com arte,

Jeane Hanauer

apresentadora do Programa Repertório

Mestre em Letras. Escritora e professora

Palestras na área de literatura e comunicação

http://jeanehanauer.blogspot.com

(45)9956-4077

(45)9129-4077


quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Cineas Santos - Os semeadores de alegria

De Cara alegre do Piauí

Na semana passada, quando juntava a cabroeira do Cara Alegre do Piauí para mais uma jornada no sertão, uma cidadã, bem-nascida, me perguntou: “Professor, desculpe a curiosidade, mas o que o senhor ganha com esse projeto?”. A resposta cabível seria: a alegria de ensinar, aprender, compartilhar, conviver. De repente, me dei conta de que, para quem só se acostumou a ser servido, a resposta não faria o menor sentido. Em tom de pilhéria, respondi: nada, minha jovem, estou apenas gastando o que me resta de alento. A moça sorriu e desconversou. Indagações desse tipo não me surpreendem: já me fizeram perguntas mais diretas. Certa feita, um ex-colega de faculdade disparou: “Quando é que você vai parar de ser besta?”. Respondi de bate-pronto: nunca, meu irmão. Se o fizesse, já não seria eu; seria alguém como você, o que definitivamente não me agrada. Um dia, com sua sabedoria inata, Edson do Ministério de Nossa Senhora sentenciou: “Cada um para o que nasce”. Nunca ouvi nada mais verdadeiro.

Não seria exagero afirmar que a história do Cara Alegre se confunde com a minha trajetória de vida. Quando concebi o projeto, em 1977, eu sonhava alto: queria construir uma ponte cultural entre Teresina e os sertões do Piauí. Arrebanhei alguns amigos jovens - Paulo Machado, Fernando Costa, Margareth Coelho, Rogério Newton e Alcide Filho - e, amontoados num velho fusca verde-sonho, rumamos para Oeiras, Floriano, São Raimundo Nonato. O destino era Corrente, no extremo sul do Piauí. Na metade do caminho, a gasolina acabou. Por pouco, não voltamos a pé. Sem patrocínio e nem apoio das instituições, o projeto não deslanchou. Ainda assim, as sementes foram lançadas e permaneceram vivas. Ao longo desses 36 anos, nunca deixei de regar essa semente com suor e entusiasmo. 

Em 1997, o prof. Fernando Ferraz sugeriu um novo nome para o projeto que, até então, chamava-se Mão Dupla. Fernando propôs A Cara Alegre do Piauí, com o argumento incontestável: “Até hoje, só mostramos a cara triste do Piauí. O que ganhamos com isso? A piedade de alguns e o escárnio de muitos. Chegou a hora de mostrarmos a face luminosa de nossa gente: a cultura piauiense”. Encorpado e revitalizado, o projeto já percorreu o Piauí inteiro, de Teresina a Guaribas, levando oficinas de dança, canto coral, violão, escultura em argila, pintura, teatro, xilogravura e cursos das mais variadas disciplinas. Na verdade, semeamos alegria e entusiasmo nas comunidades visitadas.

No último final de semana, por exemplo, estivemos no município de Fronteiras, a 400 km de Teresina, para mais uma jornada . Seria ótimo se a cidadã que me fez aquela pergunta inteligente pudesse ver o brilho nos olhos das dezenas de alunos e professores que participaram dos cursos e oficinas. Não resisti à tentação de publicar, neste espaço, a foto da Ângela Kelly, de 11 anos de idade, que, embora nunca tivesse ouvido falar de xilogravura, com duas horas de oficina, fez uma xilo de matar de inveja muita gente metida a artista. Por essas e outras, vamos continuar semeando: alguma semente há de vingar. Assim seja.


terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Luiz Ruffato - Domingos sem Deus

Se você é católico, aproveite para saber o que o Diabo anda aprontando...
Se for evangélico, cuidado que o Capeta anda solto;
Se for ateu, então todos os seus dias são sem Deus.
Não precisa levar água benta porque o lançamento será numa sexta-feira, a próxima, e o bispo do Rio de Janeiro estará presente. 


De Domingos sem Deus

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Cunha de Leiradella - Síndrome da dúvida compressiva


O casal caminhava, devagar, pela calçada. A mulher, de calça jeans desbotada e blusa xadrez solta na cintura e uma bolsa de pano a tiracolo, e o homem, de paletó esporte e óculos de aros grossos e um livro debaixo do braço. Escurecia e o trânsito estava lento, e eles caminhavam em silêncio. De repente, a mulher parou e ajeitou a alça da bolsa no ombro.
- Pô. Já tava até aqui daquele táxi.
O homem não respondeu. Um carro saiu da fila e fez a volta, e subiu a outra pista na contramão. A mulher olhou os carros quase parados e cuspiu com força na calçada.
- Se tem merda que me torra é andar de carro deste jeito. Carro foi feito pra correr. Foi feito pra andar assim, não, merda.
Abanou a cabeça com força e começou andando.
- Salvador tá que tá um sufoco mesmo, puta que pariu.
O homem apontou a bolsa balançando e batendo nas pernas da mulher.
- Quer que leve?
- Precisa, não. Tou é puta mesmo.
Continuaram andando. Na porta de um bar, rapazes e moças, os capacetes pendurados nos guidões das motos, conversavam e riam alto. A mulher acenou para um deles e voltou-se para o homem.
- É Zeca.
O homem não respondeu e a mulher parou e olhou-o.
- Zeca, pô. Namorado de Aninha.
O homem acendeu um cigarro e continuou andando. Puxou uma tragada profunda e apontou os carros, quase parados.
- Parece até no Rio.
A mulher não respondeu. Acendeu um cigarro e começou andando.
- Vamos sábado em Maré?
O homem não respondeu e a mulher olhou-o durante algum tempo e puxou uma tragada profunda.
- Quer ir, não?
O homem continuou calado e a mulher parou e tirou a areia dos chinelos, e ajeitou a alça da bolsa no ombro. O homem ajeitou o livro debaixo do braço e a mulher passou-lhe um braço em volta da cintura.
- Você vai gostar de Maré, você vai ver.
Voltou-se e apontou o mar.
- Tá vendo lá, depois do farol? Maré é lá.
O homem não respondeu. Puxou uma tragada profunda e jogou o cigarro no chão. A mulher apertou o braço na cintura do homem e encostou o corpo no dele.
- Maré é a ilha mais porreta que tem Salvador. Você vai gostar, você vai ver.
- A gente não ia pra Arembepe?
A mulher olhou o homem e sorriu.
- Agora, sei, não.
Riu e apertou mais o braço em volta da cintura do homem.
- Olhe, nem lhe conto. Tem um amigo meu, Paulinho, Paulinho tem casa em Maré. Você conhece Paulinho, não, ele agora tá em São Paulo, mas Paulinho é porreta, amigão mesmo. De verdade. Só pra você ver, quando Aninha começou com Zeca, Zeca, aquele que tava ali no Quintela, sabe onde eles foram se entocar? Em Maré, em casa de Paulinho. Aninha falou comigo, eu falei com Paulinho, Paulinho pegou, me deu a chave, e nem perguntou. Paulinho é porreta. Cabeça feita mesmo.
Fez uma pausa e jogou o cigarro no chão.
- Vamos sábado? Hem? A chave tá comigo.
O homem encolheu os ombros e a mulher olhou-o.
- Quer ir, não?
O homem não respondeu e a mulher afastou-se e colocou-se na frente dele.
- Fale, pô.
O homem tirou os óculos e limpou-os, e voltou a colocá-los.
- Você não tá querendo ir?
A mulher sorriu.
- Só por causa de Fiinha. Jorginho tá querendo...
Calou-se e pegou a mão do homem, e apertou-a com força.
- Vai ser legal paca, você vai ver.
O homem não respondeu e começaram andando. A mulher olhando o mar, do outro lado da mureta, e o homem olhando os carros, buzinando.
- Puta que pariu. Parece até no Rio.
A mulher parou e voltou-se para o homem.
- Falar no Rio, quê você que resolveu lá na agência, hem?
- Nada. Já não disse a você?
- Naquela hora eu tava era puta.
O homem não respondeu. Ajeitou o livro debaixo do braço e começou andando. A mulher puxou-o pela mão.
- Mas vai resolver. Vai, não?
- Vamos ver.
Calaram-se e começaram andando. A mulher largou a mão do homem e ajeitou a alça da bolsa no ombro.
- Tereza falou, lembra de Tereza?
O homem acenou com a cabeça e a mulher sorriu e voltou a pegar a mão dele.
- Tereza diz que apresenta você a um monte de gente, se você quiser. E Dito, lembra de Dito?
O homem voltou a acenar com a cabeça e a mulher continuou.
- Dito também falou. E olhe que Dito conhece todo mundo que trabalha em propaganda, viu?
Fez uma pausa e olhou o homem.
- Quer que eu fale com Tereza e com Dito? Hem?
O homem soltou a mão e acendeu um cigarro.
- Amanhã a gente vê.
Calaram-se. Estavam a meio do caminho, entre o Farol da Barra e o Barravento, e o homem parou e debruçou-se na mureta, olhando o mar. A mulher aproximou-se e passou um braço nas costas dele.
- Quê que tá olhando?
O homem não respondeu e a mulher debruçou-se também. Batida pela luz dos postes da calçada, a água rebrilhava. A mulher encostou-se no homem e apontou as ondas, marolando, devagar, até à praia.
- O mar também é porreta. Mas eu gosto, mesmo, é da lua.
Endireitou o corpo e apontou a lua, quase na linha do horizonte.
- Parece que tou até olhando pra mim. Quando tou na fossa, então...
Calou-se e olhou o homem.
- Gosta de olhar a lua, não?
O homem não respondeu e começaram andando. A mulher acendeu um cigarro e ajeitou a alça da bolsa no ombro.
- Por quê que você falou aquilo, ontem, lá no Juvená, hem?
- Aquilo, o quê?
- Aquele negócio de querer ficar em Salvador.
O homem não respondeu e a mulher puxou uma tragada profunda e soprou o fumo com força.
- Era verdade mesmo? Hem?
O homem puxou uma tragada e jogou o cigarro no chão. A mulher ajeitou a alça da bolsa no ombro e olhou-o durante alguns instantes.
- Só que, do jeito que você falou, sei, não. Parece até que você tá muito mais a fim de se picar do Rio, do que ficar em Salvador.
Fez uma pausa e olhou o homem.
- Era isso, não?
O homem não respondeu e a mulher pegou a mão dele e apertou-a.
- Era isso, não?
O homem continuou sem responder e a mulher parou e olhou-o.
- Se arrumar tudo lá na agência, você fica em Salvador?
O homem continuou calado, os olhos vagando no horizonte, por cima da mureta. A mulher olhou-o durante algum tempo e, de repente, puxou a mão dele com força.
- Fale, pô. Parece até que tá com medo, merda.
O homem tirou a mão e começou andando. A mulher ficou parada, olhando as costas dele, mas o homem não se voltou. A mulher xingou um palavrão e correu. Na frente deles, o letreiro do Barravento piscava, iluminando a areia da praia. De mãos dadas, um casal andava, devagar, junto da água. O homem acendeu um cigarro. A mulher puxou uma tragada profunda e jogou o cigarro por cima da mureta.
- Merda. Amanhã tou com prova.
- Vai dormir em casa?
- Precisa preocupar, não. De inglês eu entendo.
Calaram-se. Uma moto passou, a moça colada nas costas do rapaz e os cabelos esvoaçando. O rapaz gritou e acenou para a mulher.
- Oi.
A mulher sorriu e agitou os braços.
- Oi.
O homem olhou a moto ziguezagueando por entre os carros e a mulher riu.
- É Zeca. Namorado de Aninha. Aquele que tava no Quintela, lembra, não?
O homem não respondeu e a mulher riu outra vez.
- Zeca é fora de série. Mal Aninha vira costas, ó. Zeca é porreta. Cabeça feita mesmo.
O homem parou e olhou a esplanada do Barravento. A mulher continuou andando e parou junto de uma mesa vaga.
- Vai de caipirosca, não? Tou sequinha, sequinha.
O homem não respondeu, mas aproximou-se da mesa. Sentaram. A mulher pendurou a bolsa nas costas de uma cadeira e tirou a areia dos chinelos. O homem colocou o livro em cima da mesa e puxou uma tragada. Apesar da hora, a maior parte das mesas estava lotada. A mulher passou as mãos no rosto e abanou a cabeça com força.
- Pô. Salvador tá que tá uma merda mesmo.
O homem não respondeu e chamou um garçom.
- Duas caipiroscas.
O garçom anotou o pedido e afastou-se. A mulher olhou as mesas à volta.
- Tá uma merda mesmo.
O homem não respondeu e a mulher acendeu um cigarro e puxou algumas tragadas. O garçom trouxe as bebidas e ambos beberam, em silêncio. O ar cheirava a maresia e o vento trazia gotas de espuma até à mesa. O homem olhou a mulher. A mulher olhava o mar. O homem puxou uma tragada profunda e olhou a rua, os carros ainda andando devagar. A mulher pegou o copo e bebeu dois goles. Colocou o copo em cima da mesa e ficou olhando para o homem.
- E se você não arrumar nada lá na agência, hem?
O homem não respondeu e a mulher debruçou-se na mesa e pegou a mão dele.
- Vai procurar outra. Vai, não?
O homem continuou sem responder e a mulher tirou a mão e puxou uma tragada profunda, e jogou o cigarro no chão.
- Hem?
O homem continuou calado e olhou a esplanada. A mulher olhou a rua. Ficou assim algum tempo e, de repente, cobriu o rosto com as mãos. O homem pegou o copo e bebeu um gole. A mulher tirou as mãos do rosto e espalmou-as em cima da mesa.
- Tá uma merda mesmo.
O homem bebeu outro gole e olhou a mulher. A mulher abanou a cabeça com força.
- Tou gostando daqui, não.
Olhou o homem fixamente, durante alguns instantes, e passou as mãos no rosto.
- Parece que a gente tá presa, merda.
Voltou a passar as mãos no rosto e abanou a cabeça com força.
- Suporto sufoco, não, pô.
O homem colocou o copo em cima da mesa e olhou a mulher.
- Quer ir?
- Ir pra onde, merda? Pro hotel?


domingo, 4 de dezembro de 2011

Toalha da Saudade, a boemia nas noites soteropolitanas



Eu queria ter um coração duro o suficiente para não tremer de emoção quando recebo notícias de Salvador. Antigas lembranças se libertam e me envolvem numa teia nostálgica e crescente, aflorando a saudade dos velhos tempos. Foi o que aconteceu hoje, numa releitura de Sargaços, do amigo d'além-mar Cunha de Leiradella.

A cidade fascinava, encantava, enlouquecia. Conheci cada canto dos seus encantos, cada centímetro de suas emoções. As ondas traiçoeiras de Stella Maris, o feitiço mortal da Lagoa do Abaeté, a solitude de Itapuã, as batidas de limão de Amaralina, a boemia do Rio Vermelho (e também as batidas do meu amigo Diolino), a prostituição da Barra, o tradicionalismo de Santo Antonio Além do Carmo, e o samba-de-roda do Mercado Modelo ou da Ribeira, em triste e nostálgico entardecer da Baía de Todos os Santos. Paripe, Periperi, Lobato e a cachoeira de São Bartolomeu, perigosamente linda e desconhecida das autoridades policiais. Era preciso salvo-conduto pra se chegar até lá sem ser importunado pelos meliantes e gatunos. O nosso era Clóvis Loureiro, um amigo, morador do bairro do Lobato, nascido e criado na floresta de São Bartolomeu, e os pivetes e malandros da redondeza o chamavam de “Maluco”. E só podia ser maluco para adentrar a mata para tomar banho de cachoeira ao som dos atabaques. Em Salvador toda nascente de água é santuário sagrado para a religião de matriz africana.

As noites soteropolitanas eram curtas para o tamanho das farras. Quando os bares fechavam, à meia-noite, a farra continuava no Zanzibar, no Garcia, reduto de poetas, artistas ou boêmios sem guarida. Quase ao lado do Castro Alves, os deuses do palco costumavam ser gente comum no Zanzi. Quando estava muito cheio, o jeito era descer para o Jereré do Macedo e ver o sol nascer no mar de Amaralina. Ou no Tenda dos Milagres.  Quando o Jereré e o Tenda fecharam, o mestre e poeta Batatinha nos abriu as portas do seu “Toalha da Saudade”, na Ladeira dos Aflitos, onde se podia amanhecer o dia em conversas interessantes, ouvindo boa música da nossa MPB.

A praia do Porto da Barra era – e continua sendo - o metro quadrado de mulheres mais bonitas e sensuais do Nordeste. Eram ninfas, sacerdotisas de Eros, deusas da estética. Foi nessa praia que tive a sensação de que o Paraíso existia. Não havia como conter a libido ante a exuberância sensual das mulheres do Porto. Wonderful!

Mas, infelizmente, o que é bom tem seus dias contados. A roda-de-samba do Mercado Modelo foi substituída pela exibição de capoeira, tempos depois do último incêndio. Trocaram o improviso e a espontaneidade do baiano por grupos coreografados para turista ver. Na verdade, um assalto: o inadvertido que fotografar um “rabo-de-arraia” terá que deixar o filme ou pagar uma fortuna para os chamados “mestres”. Uma simples olhadela de um passante significa ter que desembolsar o cachê. Pague e não chore. Ou passe e não olhe.

A Ribeira e toda península itapagipana entraram numa decadência sem volta. Uma tristeza só. Último reduto das famílias tradicionais soteropolitanas, vive entregue ao Deus dará, em total abandono dos gestores públicos. E dos moradores, que migram para a Cidade Alta como alternativa ao descaso.

Como dizia Gregório de Mattos e Guerra: triste Bahia, o quão dessemelhante e triste. Acabaram os puteiros, acabaram as barracas de praia, acabaram as festas de largo, acabaram o carnaval de frevos e marchinhas; o Elevador Lacerda funciona capenga, só vai ao Pelô quem é turista, os clubes sociais e cinemas viraram igrejas evangélicas e Gal Costa só é lembrada como um ferry boat em fim de carreira.

A Salvador de hoje perdeu o brilho e o encanto que existiam nos meus tempos de boêmio pelos becos do Pelourinho, pelos bares do Rio Vermelho, pelas barracas atrás do Clube Português, na Pituba, que a ressaca marinha destruiu, e nos ensaios ritmados do Ilê Ayê, na antiga Casa de Detenção, no Largo de Santo Antônio. Tudo hoje funciona em função do turismo e da exploração do turista. E os nativos sobrevivem em guetos, comendo as sobras. Fora deles, tem que se pagar pedágio. Até catador de lata é obrigado a ter licença da Prefeitura, sem falar que os padres da Igreja do Bonfim estão cobrando pela água benta aspergida sobre os fieis.

Triste Bahia! Tão dessemelhante e triste. A mim foi-me trocando, e tem trocado, tanto negócio e tanto negociante.


sábado, 3 de dezembro de 2011

Cunha de Leiradella é gente nossa

Programa VEREDA LITERÁRIA (entrevista) gravado com o escritor e dramaturgo CUNHA DE LEIRADELLA, em 21 de junho de 1996.
Pesquisa e apresentação: Helton Gonçalves de Souza.
Direção: Melquíades Lima.
Produção: Abel Amâncio Silva.


Navegar é preciso, viver não é preciso. Por trás desta frase está mais do que uma interpretação filosófica do poema de Fernando Pessoa; está a sobrevivência do Império Romano setenta anos antes de Pedro negar Cristo por três vezes. 

Para início de conversa, Pessoa não traz a si a autoria da frase. Nem podia.  Ela foi dita pelo general romano Pompeu, em 70, antes de Cristo. Roma vivia uma greve de escravos e passava fome. Pompeu foi enviado à Sicília para escoltar uma frota com provisões para Roma. Naquele tempo navegar era uma aventura desconhecida, temerária, e Pompeu encontrou a marujada temendo entrar no mar. Então, entre Roma sucumbir à fome e os marujos perecerem no mar, a última opção foi a escolhida pelo general quando disse a frase de efeito, uma versão maneira do refrão usado pelos gladiadores: “Ave César, os que vão morrer te saúdam!”. A intertextualidade do vate português dois milênios depois, deu pano pra mangas de muitas discussões acaloradas, muitas equivocadas, e até mesmo tese de mestrados e doutorados de Filosofia a Física Avançada, o que não me cabe discutir aqui sobre o pai da criança.

“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito desta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.”
(Navegar é preciso - Fernando Pessoa)

Navegar é preciso. Não por mares revoltos de perigos abissais, mas pelo inofensivo telecoteco do mouse nesse oceano cibernético. Uma viagem tranquila, sem tempestades ou ondas gigantes, muito menos com o traiçoeiro canto das sereias. É coisinha besta e fácil, e que só depende da sua boa vontade: ajudar um amigo a vencer um concurso de contos lá na terra de Fernando Pessoa.

Cunha de Leiradella é um escritor d'além-mar, com um pé fincado no Pelô quando este era apenas um reduto de marinheiros. Estivemos juntos num lançamento de livro no Circo Voador e, na ocasião, ele lançava um romance prefaciado pelo meu irmão Antonio Torres. O livro parece obra de roteirista roliudiano: há cenas de sexo, drogas e o rock and roll desvairado da polícia política da gloriosa Ditadura. Quem errasse o passo dançava no pau-de-arara. O pano de fundo era a velha Bahia, a Salvador dos anos 80, seus misticismos e encantos em cada canto, além dos saudosos bares do Sandoval, Quintela e do Raso da Catarina. Apesar do pouco tempo na Bahia, pois à época morava em Belo Horizonte, parece que no livro “Sargaços” ele incorporou uma entidade profundamente conhecedora dos hábitos e costumes baianos do início dos anos 80.

Assim como eu, Leiradella se cansou do lengalenga da axé music e picou esporas. Só que ele atravessou o Atlântico e voltou para os braços do fado e do bailarico. Mas como a crise econômica europeia afetou barbaramente a vida do trabalhador português, ele hoje precisa da colaboração dos amigos do lado de cá do Atlântico. Precisa que cliquem no link abaixo, leiam o conto, e votem no mesmo. Se preferir, pode votar sem ler mesmo. 



Livros do Leiradella
    Réquiem op. 1 (Peça de teatro, 1964)
    Inúteis como os Mortos (Peça de teatro, 1965)
    O Homem Calado (Peça de teatro, 1965)
    As Pulgas (Peça de teatro, 1983)
    Laio ou o Poder (Peça de teatro, 1984)
    Sargaços (Romance, 1984)
    O Longo Tempo de Eduardo da Cunha Júnior (Romance, 1987)
    O Homem Sentado (Peça de teatro, 1987)
    Cor Local (Peça de teatro, 1988)
    Guerrilha Urbana (Romance, 1989)
    Judas (Peça de teatro, 1992)
    Cinco Dias de Sagração (Romance, 1993)
    Vestida de Sol e de Vento (Roteiro para vídeo, 1994)
    Belo Horizonte: Caminhos (Roteiro para televisão, 1994)
    A Solidão da Verdade (Romance, 1996)
    Fractal em Duas Línguas (Antologia de contos, 1997)
    Síndromes & Síndromes (e conclusões inevitáveis) (Antologia de contos, 1997)
    O Circo das Qualidades Humanas (Roteiro para cinema, 1998)
    Apenas Questão de Método (Romance, 2000)
    Os Espelhos de Lacan (Romance, 2004)
    Apenas Questão de Gosto (Romance, 2005)
    Inéditos (1989/2006)

Inéditos
    Apontamentos para um Teatro de Questionamento (Ensaio, 1986/1990)
    Balancê Balançado (Peça de teatro, 1989)
    Três Chopes (Roteiro de curta-metragem para cinema, 1999)
    O Que Faria Casanova? (Antologia de contos, 2001)
    Brazilian Way Of Life (Peça de teatro, 2002)
    Classe A - Roteiro de curta metragem para cinema, 2005
    A Pata do Javali (Romance, em fase de criação, 2006)
    Quem Falava de Marcello Pizzantini (Roteiro de longa-metragem para cinema, em fase de criação, 2006)

Prêmios Literários (Vencedor)
Prêmio Fernando Chináglia 1981, Brasil
ROMANCE: O Longo Tempo de Eduardo da Cunha Júnior
I Concurso de Textos Teatrais Rede Globo/APATEDEMG 1982, Brasil
TEATRO: As Pulgas
 Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte 1984, Brasil
TEATRO: Manera, Doutor, Manera (Reescrita em 2002 com o título Brazi-lian Way of Life)
 Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte 1986, Brasil
TEATRO: O Homem Sentado
Prêmio Plural 1987, Cidade do México, México

CONTO: O Homem que já Sabia
Prêmio Nacional Clube do Livro de Literatura 1988, Brasil
ROMANCE: Guerrilha Urbana
Prêmio Instituto Nacional do Livro 1988, Região Sudeste, Brasil
ROMANCE: O Longo Tempo de Eduardo da Cunha Júnior
 XX Concurso de Contos de Paranavaí 1988, Brasil
CONTO: Inúteis como os Mortos
Concurso Nacional de Contos Prêmio Paraná 1990, Brasil

CONTOS: Turistas são os Outros
Prêmio Plural 1990, Cidade do México, México
CONTO: Inúteis como os Mortos
Prêmio BDMG-Cultural de Literatura 1991, Brasil
TEATRO: Judas
Prêmio Cruz e Souza 1995, Brasil
CONTOS: Fractal em Duas Línguas
Prêmio Literário Terras de Lanhoso 1997, Portugal
CONTO: Os Homens e os Outros
Prêmio Caminho de Literatura Policial 1999, Portugal
ROMANCE: Apenas Questão de Método

Fonte das obras do Leiradella: site Wikipédia  

Cineas Santos - A lenta agonia do Parnaíba

Matar um rio não deve ser tarefa fácil. Se o fosse, o Parnaíba, há muito tempo, já teria desaparecido da paisagem física do Piauí. Desde o início da colonização (século XVII), o Rio Grande dos Tapuias vem sofrendo agressões de todo tipo e, a despeito disso, “ainda pulsa”. Para que se tenha ideia da longa agonia do rio, basta ler o Relatório do engenheiro alemão Gustavo Luiz Guilherme Dodt, enviado ao presidente da província do Piauí, em 1867. Ao enumerar os problemas que afetavam a saúde do rio, afirma: “... ocorre que o estado do rio tende a piorar de ano para ano, pelo motivo que os habitantes das margens do rio cortam o mato que cobre as ribanceiras para plantar nelas fumo. As enchentes encontram desta forma as ribanceiras despidas de qualquer vegetação e, sendo elas formadas de areia muito fina e pouco barrenta, não podem resistir ao ataque das águas e partes consideráveis delas são arrojadas todos os anos no meio do rio, aumentando a quantidade de areia movediça já existente ali”. Como se pode perceber, o processo de assoreamento já estava em curso e bastante adiantado.

Dodt não se limitou a denunciar; apontou soluções: “...devem-se plantar nestas ribanceiras arbustos próprios que as cubram com seus ramos e formem, para o futuro, a resistência enérgica e menos dispendiosa, como o catumbi e outras semelhantes”. É enfático ao exigir o cumprimento da lei: “...que é necessário proibir-se o corte do mato que ainda existe (...) não carece mencionar que esta proibição se deve estender a uma zona de 25 metros de largura de ambos os lados do rio”. O minucioso Relatório de Dodt acabou devorado por traças e cupins nalgum arquivo morto de uma repartição qualquer. Quanto ao Parnaíba, assoreado e, agora, poluído, pode tornar-se apenas um “risco na memória”, como no poema do Dobal.

A exemplo de outros rios brasileiros, o Parnaíba tornou-se o escoadouro do lixo das cidades que banha ao longo de sua trajetória de pouco mais de 1.400 km de extensão. Em Teresina, por exemplo, além de esgotos e galerias pluviais, despejados no rio sem tratamento adequado, diariamente, centenas de carros são lavados na margem do rio, aumentando o nível da poluição, já bastante elevado.

Se matar um rio é um processo demorado, ressuscitá-lo é tarefa gigantesca e caríssima. Ingleses e sul-coreanos que o digam. Entre nós, um exemplo gritante é o do Tietê, um dos rios mais poluídos do mundo. Ao longo de 18 anos de erráticas tentativas, o governo já gastou US$1.6 bi e o estado do rio está pior do que no início do processo de “despoluição”, em 1992. Há quem afirme que boa parte desse dinheiro repousa placidamente em paraísos fiscais. Quanto ao Parnaíba, o que está previsto, para os próximos anos, é a construção de cinco barragens (isso mesmo) ao longo do seu curso. O rio nunca mais será o mesmo. Nem todos, porém, lamentam o destino do “Velho Monge”; as grandes construtoras têm bons motivos para sorrir.



quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Luís Pimentel começa 2012 com novo livro na parada: Cenas de Cinema


Se você é daqueles que acreditam que o mundo vai se acabar em 2012, então não se esqueça de comparecer ao lançamento do novo livro de contos de Luís Pimentel. Segundo uma lenda Maia, na hora do pau comer no Juízo Final quem tiver tal livro será automaticamente escolhido para as benesses e maravilhas celestiais. Mas, se por um acaso você é cético e usa o 6666 como um número qualquer, aproveite que os juros baixaram e use seu cartão de crédito ou cheque especial para dar esse livro de presente. É mil vezes melhor do que o DVD de Roberto Carlos. E mais barato. Além disso, tem garantia estendida contra travamentos e arranhões.

De Cenas de Cinema Luís Pimentel


CENAS DE CINEMA 

CONTO EM GOTAS
Luís Pimentel 



ISBN 978-85-89125-17-8
128 páginas / R$ 25,00
Formato: 13 x 17
Edição: Myrrha / Distribuição: Mauad
21) 2220.4609 3479.7422


LANÇAMENTO NO RIO: DIA 20/12/2011, DAS 19 ÀS 22 HORAS, LIVRARIA DO MUSEU DA REPÚBLICA (Rua do Catete, 153, Estação Catete do Metrô)


A vida miúda, em sua desconcertante grandeza; o homem em fúria, em êxtase, perdendo-se e encontrando-se nas mesmas curvas incertas; o amor, o ódio, esperanças e incertezas. A matéria-prima dessas histórias é a mais substancial possível: o homem com seus dramas, medos, contemplações.

 Contista muitas vezes premiado (Cruz e Souza, Literatura Para Todos e Prêmio Cidade de Belo Horizonte, entre outros), Luís Pimentel volta às narrativas curtas (neste livro, curtíssimas), com histórias eletrizantes.

 Vamos ao cinema – Conto em gotas é um livro para estantes e mesas de cabeceira de quem gosta da melhor literatura brasileira.

"Luís Pimentel escreve contos em que a suprema sofisticação se realiza, muitas vezes, na simplicidade, no desenho despretensioso da vida, em que todo mistério dela cabe numa cena de rua (...) Poucos contistas têm a medida exata do conto. Entre eles, Luís Pimentel".
ANDRÉ SEFFRIN

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Né brinquedo não!

Tinha tudo para ser o Papai Noel do shopping center:  barba branca e alongada, barriga crescida e fazia “ho, ho, ho” como ninguém. Mas quando a loirinha do marketing passou por ele exibindo um decote generoso, descobriram que o seu saco não era de brinquedo.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Edna Lopes - Quem deve proteger a infância de nossas crianças?

Há situações que vivo em meu ofício de educadora que foge completamente do meu entendimento, da minha compreensão como mãe e cidadã que assumiu e assume uma postura de luta pela garantia e conquista de direitos, com a responsabilidade de quem cumpre o seu dever e nele se pauta para afirmar minhas obrigações como profissional.

Como presidenta de um Conselho de Direitos que é o Conselho de Educação de Maceió, faz parte das minhas responsabilidades responder a consultas sobre os assuntos da educação do município no que concernem às questões que envolvem a legislação e a regulamentação da vida escolar dos estudantes e das escolas.

É comum o conselho ser procurado para orientar procedimentos e encaminhá-los caso seja assunto da nossa jurisdição e competência legal. Pais e mães, diretores de escolas, conselheiros tutelares, professores, jornalistas e quem mais precisar nos consultar são e serão sempre bem vindos no espaço dos conselhos.

Dias atrás recebi uma visita que provocou minha perplexidade. Nada demais, a princípio, apenas mais um pai querendo tirar umas dúvidas e se certificar da legislação sobre a data de corte de acesso ao ensino fundamental (seis anos completados até 31 de Março), pois procurava uma escola para sua filha para o ano de 2012. Acessei uma pasta sobre o assunto e apontei o parecer do Conselho Nacional de Educação, mostrei pareceres anteriores e a farta argumentação pedagógica sobre a decisão do CNE. Afirmei a ele que resoluções e decisões do CNE não têm força de lei, mas são bases para as orientações que os sistemas de ensino encaminham às suas escolas.

O pai relatou que já havia ido a várias escolas (todas da rede privada) e não concordava como posicionamento do CNE e menos ainda com o agrupamento que elas adotavam, pois isso atrasaria sua criança e isso ele não iria permitir; que ia entrar na justiça questionando a orientação do CNE e o modo com que as escolas agrupavam as crianças. Perguntei a idade de sua filha e não consegui esconder minha surpresa: a criança faria (fará) DOIS ANOS em abril de 2012!

Argumentei que a criança ainda era um bebê e que não entendia qual era de fato a sua preocupação e ele me respondeu que sua criança era muito inteligente e evoluída e não aceitava que ela ficasse no grupo de 02 anos, mas queria que já fosse incluída no grupo de 03 anos.

E não adiantou nenhum dos meus argumentos, todos eles fundamentados nos estudos dos mais sérios pesquisadores e na resolução e parecer sobre a questão. O pai se mostrou irredutível! Alegava que se sua filha se “atrasasse” na entrada do fundamental, se atrasaria (pasmem!) para fazer o ENEM daqui a quinze anos!

E mesmo que chamasse sua atenção ao exagero da preocupação (quem pode afirmar qual será a forma de acesso à universidade daqui a quinze anos?), que alertasse para o perigo da escolarização tão cedo, percebi que já havia definido uma posição e que não abriria mão dela.

“O mundo é dos que chegam primeiro. Dos que têm condições de competir”, afirmava. Por várias vezes deixei bem claro que, ainda bem, essa visão de mundo fundamentada no deus mercado, na competição desenfreada por postos de trabalho não era a visão defendida por mim e por muitos (as) educadores (as) que defendiam o direito de infância das crianças.

Fico perplexa também quando procuradores fazem proposições para derrubar o parecer do CNE e quando um juiz, sob força de liminar, defende que crianças assumam responsabilidades sem a maturidade que a etapa exige, pois é isso que vai acontecer por aí.

A lógica do mercado têm prevalecido nas decisões judiciais, mas a pressa por ler, escrever e contar não pode ser o critério determinante para negar o direito da criança de ter infância, de viver cada etapa da vida sem a pressão da competição de ir buscar “um lugar ao sol”.

Para além das polêmicas jurídicas, pedagogicamente, a defesa do direito das crianças a uma infância saudável se confronta com o exagero da escolarização precoce. Infelizmente paira entre nós uma mentalidade estreita e mal informada que acha que a criança só está aprendendo quando está em contato com letras e números e esquece que é através do brincar que a criança atribui sentido e significado a tudo que a rodeia.

Pais e mães mais do que ninguém deveriam e devem querer que a infância dos seus filhos e filhas seja vivida plenamente. Que prevaleça o bom senso! A idade mínima, a data de corte, são critérios talvez mais palpáveis para que não matemos o pouco que ainda resta de infância das nossas crianças, infância essa já tão violentada pela falta de valores éticos, pela falta de limites e pela falta de referência que muitos pais e mães tiveram em suas infâncias.

Depois que o pai foi embora com cara de poucos amigos, mas garantindo que ia ler tudo que lhe indiquei, fiz um pensamento positivo por essa criança, tão bebê, mas já com o peso da responsabilidade de ser mais um rosto nos outdoors das instituições que fazem disso chamariz para novos “clientes”.



Centenário de Mário Lago no Programa Sarau

No programa Sarau, do Chico Pinheiro, na Globo News, Mariozinho Filho não sabe, mas inventa: ele diz que a letra de Amélia foi criada em parceria Lago/Ataulfo, cada um escrevendo um verso. Ainda bem que o Ataulfo Alves decidiu contar a verdadeira história antes de morrer. E ponto para Ricardo Cravo Albim que resolveu registrar em LP.

Mas, independente da invencionice do Lago Filho, o programa foi muito bom e vale a pena perder uns minutos pra ver essa bela homenagem do Chico Pinheiro ao Mário Lago. Aproveitem enquanto a Globo deixa.

sábado, 26 de novembro de 2011

Amélia, a pedra no sapato no relacionamento de Mário Lago e Ataulfo Alves

Nos cem anos de Mário Lago, o pai biológico da Amélia, tão festejado pela mídia, não poderia deixar passar em brancas nuvens esse dia. Trago aos leitores do blog mais uma história de bastidores da nossa MPB, desta vez um depoimento de Ataulfo Alves, o pai adotivo da Amélia (conforme vocês verão, Mário Lago fez e Ataulfo criou), onde ele esclarece certas coisas a respeito do nascimento da mulher de verdade. Esse depoimento faz parte de um registro em LP, em 1969, de uma entrevista de Ataulfo Alves, concedida a Ilmar Carvalho, Ary Vasconcelos, Sylvio Túlio Cardoso e Ricardo Cravo Albim, no Museu da Imagem e do Som, no dia 17 de novembro de 1966. Acompanhado do seu violão, ele conta a história de sua trajetória musical e interpreta várias músicas, porém, hoje, é o centenário do seu parceiro, e não do grande compositor e sambista de Miraí, portanto, só tem o áudio da parte que ele fala de Amélia, que, apesar de ser a mulher de verdade, foi a pedra no sapato entre os dois ícones da nossa Música Popular Brasileira.

Para ouvir, basta clicar abaixo:

Cineas Santos - A arte de maltratar poetas

Houve uma época em que os poetas eram conhecidos como vates, ou seja, pessoas capazes de fazer vaticínios, previsões, adivinhações. Tempos idos. Certa feita, Mário Quintana, poeta em tempo integral, escreveu no Caderno H: “Maltratar poetas é indício de mau caráter”. A breve sentença tinha um quê de premonição: o poeta parecia adivinhar que, na Internet, ainda “no ventre das expectativas”, seria ele o mais maltratado dos poetas brasileiros. Internautas inescrupulosos atribuem a Quintana toda sorte de literatice. Agora, por exemplo, faz enorme sucesso, entre os incautos, esta pérola atribuída ao poeta: 

"Deficiente é aquele que não consegue modificar sua vida, aceitando as imposições de outras pessoas ou da sociedade em que vive, sem ter consciência de que é dono do seu destino”. Alguém que já tenha lido pelo menos um poema do Quintana poderia imaginá-lo escrevendo algo desse tipo? Os falsários não se limitam a atribuir textos ordinários a Poeta; adulteram, criminosamente, poemas conhecidos como o “Seiscentos e sessenta e seis”, que se inicia assim: “A vida é um deveres que trouxemos para fazer em casa”. No texto que circula na internet foi acrescido um punhado de versos que destoa complemente do restante do texto. Ao vinho de boa safra misturou-se água poluída. 

Poderia servir de consolo o fato de Mário Quintana não estar sozinho no calvário das falsificações. A lista é imensa e nela figuram de J. L. Borges a Frederico Garcia Lorca, passando por Drummond, Mário de Andrade e muitos outros. Entre os prosadores, os campeões absolutos são Luís Fernando Veríssimo, G. García Marquez e, no momento, Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu. Qualquer sentença ambígua ou “inteligente” é atribuída a um dos dois ou, simultaneamente, aos dois. Dia desses, uma jornalista postou no facebook uma “frase espirituosa” assinada por Clarice & Caio. Acabava de inventar mais uma dupla fantasma.

Na semana passada, conversei com um amigo letrado sobre o assunto. Ele me garantiu que, na UnB, há psicólogos sérios estudando esse estranho fenômeno que desafia o bom senso. Ainda não se chegou a um consenso.

Bem, como não sou psicólogo nem sério, arrisco aqui alguns palpites: 1 -Trata-se de um infeliz com tamanho complexo de vira-lata cotó que nem se assume como autor das próprias baboseiras. 2 - Pode ser um cretino tão pretensioso que, por se julgar no mesmo patamar dos grandes autores, toma-os como “bondes” para veicular suas preciosidades. 3 - Não descarto a possibilidade de ser um safado gozador que, sabendo serem os internautas, em sua maioria, gente leituras rasas, resolve tirar sarro com a cara de meio mundo. Se alguém aí tiver explicação melhor, que se habilite.