Eu queria ter um coração duro o suficiente para não tremer de emoção quando recebo notícias de Salvador. Antigas lembranças se libertam e me envolvem numa teia nostálgica e crescente, aflorando a saudade dos velhos tempos. Foi o que aconteceu hoje, numa releitura de Sargaços, do amigo d'além-mar Cunha de Leiradella.
A cidade fascinava, encantava, enlouquecia. Conheci cada canto dos seus encantos, cada centímetro de suas emoções. As ondas traiçoeiras de Stella Maris, o feitiço mortal da Lagoa do Abaeté, a solitude de Itapuã, as batidas de limão de Amaralina, a boemia do Rio Vermelho (e também as batidas do meu amigo Diolino), a prostituição da Barra, o tradicionalismo de Santo Antonio Além do Carmo, e o samba-de-roda do Mercado Modelo ou da Ribeira, em triste e nostálgico entardecer da Baía de Todos os Santos. Paripe, Periperi, Lobato e a cachoeira de São Bartolomeu, perigosamente linda e desconhecida das autoridades policiais. Era preciso salvo-conduto pra se chegar até lá sem ser importunado pelos meliantes e gatunos. O nosso era Clóvis Loureiro, um amigo, morador do bairro do Lobato, nascido e criado na floresta de São Bartolomeu, e os pivetes e malandros da redondeza o chamavam de “Maluco”. E só podia ser maluco para adentrar a mata para tomar banho de cachoeira ao som dos atabaques. Em Salvador toda nascente de água é santuário sagrado para a religião de matriz africana.
As noites soteropolitanas eram curtas para o tamanho das farras. Quando os bares fechavam, à meia-noite, a farra continuava no Zanzibar, no Garcia, reduto de poetas, artistas ou boêmios sem guarida. Quase ao lado do Castro Alves, os deuses do palco costumavam ser gente comum no Zanzi. Quando estava muito cheio, o jeito era descer para o Jereré do Macedo e ver o sol nascer no mar de Amaralina. Ou no Tenda dos Milagres. Quando o Jereré e o Tenda fecharam, o mestre e poeta Batatinha nos abriu as portas do seu “Toalha da Saudade”, na Ladeira dos Aflitos, onde se podia amanhecer o dia em conversas interessantes, ouvindo boa música da nossa MPB.
A praia do Porto da Barra era – e continua sendo - o metro quadrado de mulheres mais bonitas e sensuais do Nordeste. Eram ninfas, sacerdotisas de Eros, deusas da estética. Foi nessa praia que tive a sensação de que o Paraíso existia. Não havia como conter a libido ante a exuberância sensual das mulheres do Porto. Wonderful!
Mas, infelizmente, o que é bom tem seus dias contados. A roda-de-samba do Mercado Modelo foi substituída pela exibição de capoeira, tempos depois do último incêndio. Trocaram o improviso e a espontaneidade do baiano por grupos coreografados para turista ver. Na verdade, um assalto: o inadvertido que fotografar um “rabo-de-arraia” terá que deixar o filme ou pagar uma fortuna para os chamados “mestres”. Uma simples olhadela de um passante significa ter que desembolsar o cachê. Pague e não chore. Ou passe e não olhe.
A Ribeira e toda península itapagipana entraram numa decadência sem volta. Uma tristeza só. Último reduto das famílias tradicionais soteropolitanas, vive entregue ao Deus dará, em total abandono dos gestores públicos. E dos moradores, que migram para a Cidade Alta como alternativa ao descaso.
Como dizia Gregório de Mattos e Guerra: triste Bahia, o quão dessemelhante e triste. Acabaram os puteiros, acabaram as barracas de praia, acabaram as festas de largo, acabaram o carnaval de frevos e marchinhas; o Elevador Lacerda funciona capenga, só vai ao Pelô quem é turista, os clubes sociais e cinemas viraram igrejas evangélicas e Gal Costa só é lembrada como um ferry boat em fim de carreira.
A Salvador de hoje perdeu o brilho e o encanto que existiam nos meus tempos de boêmio pelos becos do Pelourinho, pelos bares do Rio Vermelho, pelas barracas atrás do Clube Português, na Pituba, que a ressaca marinha destruiu, e nos ensaios ritmados do Ilê Ayê, na antiga Casa de Detenção, no Largo de Santo Antônio. Tudo hoje funciona em função do turismo e da exploração do turista. E os nativos sobrevivem em guetos, comendo as sobras. Fora deles, tem que se pagar pedágio. Até catador de lata é obrigado a ter licença da Prefeitura, sem falar que os padres da Igreja do Bonfim estão cobrando pela água benta aspergida sobre os fieis.
Triste Bahia! Tão dessemelhante e triste. A mim foi-me trocando, e tem trocado, tanto negócio e tanto negociante.
Nenhum comentário:
Postar um comentário