quinta-feira, 10 de julho de 2014

Susana Ventura - Até a lavagem dos cestos ainda é vidima



Estou triste. Perdemos de 7 a 1 para a Alemanha, escrevendo nova página inacreditável da história do futebol.

Ontem eu já tinha escolhido ver o jogo sozinha pela primeira vez nesta Copa. Trabalhei cedo, almocei na rua e voltei para casa, onde me preparei. Mandei o SMS do costume para um amigo torcedor que vive do outro lado do país e liguei a internet ruim que tenho em casa.

Dei uma volta ao mundo pela rede social, curti os amigos. Dois queridos se fotografaram juntos, ela esticava a bandeira e exibia o sorriso largo, ele ostentava óculos engraçados que cobriam seus olhos bonitos.  Outros dois, pai e filho, postaram a partir do estádio, felizes e encheram meu coração de alegria.

O jogo começou e não é preciso que eu seja cronista daquele primeiro tempo...

Mas o pior ainda estava por vir e, para mim, não veio daquele coliseu em que fomos desesperadoramente massacrados. Mesmo com o sinal vergonhoso de internet eu fui atingida por aquilo que teve o condão de me deixar ainda pior.

O que dizer diante da informação de que, bem perto da minha casa, um grupo queimava a bandeira do Brasil? E da comemoração imediata de vários dos que torciam ‘contra’  e que, naquele intervalo, postavam na rede social seu ‘alívio’ no estilo ‘que bom, agora o POVO vai cair na real e o país vai voltar ao normal...’

Muitas palavras em torno de ‘pão e circo’ celebravam a tragédia em andamento. A mesquinharia de negar o prazer ao outro, associando sempre a alegria à alienação me atingiam em cheio.

Segundo tempo e,  depois, ainda com o Brasil se retirando de campo, fui de volta para a internet.

A decepção ainda não havia terminado para mim: em tão curto espaço de tempo já se havia procurado e encontrado a quem atribuir a culpa: ‘A culpa é TODA de...’, já se havia buscado também por ancestrais alemães. Houve quem achasse um trisavô, de quem sequer sabia o nome e se afiliado a ele, reivindicando o DNA dos vitoriosos.

Começava a aparecer para mim a necessidade de ter razão e a de ganhar sempre, a qualquer custo.
 
Este amor não serve? Ok, vamos abandoná-lo e largar seu cadáver ainda insepulto. Comecei a ter medo, real, da gente que se recusava a sentir a dor que deveras deveria estar sentindo e se jogava desesperada em outras direções.

Os heróis absolutos até ali se tornavam ‘vagabundos’ que não honravam o salário recebido e mereciam o rancor. Aparecia exposto o desejo de que ficassem na miséria, que tivessem que andar pendurados nos ônibus ao final de jornada de trabalho exaustiva e mal paga!

Pior, parte daquela massa de gente abandonava o barco e corria para a rede social para falar da próxima paixão, da próxima vitória esperada: a política. Na mesma chave de interpretação dos que buscavam em si alguma genética que possibilitasse estar no lugar dos vencedores.

Saí, fui tomar ar e pelas ruas do meu bairro, feio como de hábito e ainda deserto na noite de ontem. Caminhei triste demais, me dando conta do medo que eu tenho de quem não goza quando está gozando e não sofre quando está sofrendo.

Aprendi há tempo que, na época em que temos a colheita da uva, em que estamos na lida e no processo, até a lavagem dos cestos ainda é vindima. O trabalho termina somente quando lavamos os cestos em que colocamos os cachos, os secamos e guardamos até o próximo período.

Não saímos no meio da colheita atrás vindimar as uvas doces de outro lugar largando a nossa casa, a nossa terra, a nossa parreira, os nossos parceiros. Não maldizemos a terra, a uva, as ferramentas, os adubos, o sol, a chuva, os vizinhos, pela colheita ruim ou pela uva amarga.

A Copa continua, continuamos na Copa, temos jogo no sábado para disputar o terceiro lugar, honroso sim. Ainda é tempo de vindima e, no entanto, onde estamos?

Susana Ventura é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, professora do Ensino Superior e autora de ficção, ensaios e obras para formação de professores.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Independência da Bahia - Procura-se um herói branco





Há quem diga que o corneteiro Lopes nunca existiu. Há quem diga que os mortos e heróis dessa guerra foram índios escravos, negros escravos ou caboclos escravos das necessidades. Há quem diga que tudo não passou de uma guerra particular entre os senhores de engenho do Recôncavo baiano e a elite portuguesa que residia na Cidade da Bahia e que era dona do porto de Salvador e queria cobrar preços exorbitantes para embarcar o açúcar. Há quem diga até que o baiano alforriado ficou mesmo foi no Mercado Modelo jogando porrinha e tomando umas e outras com caldo de lambreta na barraca do Xacrinha enquanto o couro comia no bairro de Pirajá. "De noite a gente vê no Beatevê o placar da guerra", diziam. Mas eis que vos digo: a Bahia é mais que o Mercado Modelo e o Pirajá. Ocupa quase um quarto do mapa do Brasil, tem mais de quatrocentos municípios, e - pasme! - na cidade de Simões Filho, vizinha a Pirajá, ninguém sabia que existia guerra. Nem em Alagoinhas, nem no Junco, nem em Cruz das Almas, nem em Ilhéus, Feira de Santana, nada, afora Salvador, Cachoeira e Santo Amaro, cidades envolvidas, ninguém sabia que a Bahia estava em guerra contra os portugueses. Até a promulgação da Constituição baiana, em 1989, o 2 de julho só era feriado em Salvador e nas cidades do Recôncavo. Os outros quatrocentos municípios continuavam sem saber que houve uma guerra. Mas, como a história é escrita pelos vencedores, fiquemos com a versão oficial, que vai logo abaixo.

Em sete de setembro de 1822 D. Pedro deu o Grito do Ipiranga e foi para um bordel tomar cachaça e fornicar com as putas. À sua sombra, soldados e bajuladores, pois isso não é coisa d’agora. Enquanto ele mostrava a sua espada para a Marquesa de Santos, o pau comia entre baianos e portugueses na província da Bahia. Por quase um ano o baiano lutou bravamente contra os homens d’el-rey para defender o então solo pátrio. Luta campal renhida e desigual, que ficou conhecida como a Batalha de Pirajá, por um acaso afortunado do destino os portugueses não levaram a melhor: vendo-se acossado, o comando em terra das forças baianas deu ordem ao soldado Lopes, corneteiro da tropa, para dar o toque de retirada e evitar mais mortes. O corneteiro se atrapalhou e, em vez do toque de retirada, mandou para o ar o toque de “avançar”. Os soldados índios, os soldados caboclos, os soldados negros escravos dos senhores de engenho do Recôncavo, aliados aos rotos soldados do Imperador, cresceram em coragem e fé e partiram com vontade para cima dos portugueses, que fugiram até o mar do Porto da Barra e lá entraram em suas naus e escafederam-se na Baía de Todos os Santos, perseguidos pelo almirante Lord Cochrane, contratado de última hora pelo Imperador para reforçar os bravos combatentes baianos na sua luta desigual.

O Sete de Setembro na Bahia é apenas um feriado a mais, sem muitas comemorações. A festa cívica dos baianos acontece na data de aniversário em que o corneteiro Lopes pôs os lusos para correr. Apesar de ser Inverno, o Sol abre alas para as escolas desfilarem em trajes de gala. Alegorias revivem a trajetória vitoriosa, do Pirajá ao Campo Grande, local da última batalha, cujos monumentos lembram os heróis da independência da Bahia. Um dos bairros mais chiques de Salvador, a Vitória, ganhou esse nome em homenagem à data Magna baiana, inclusive a sua principal rua chama-se “Corredor da Vitória”, onde a tropa lusa levou as últimas bordoadas antes de fugir pelo Porto da Barra.

Então, nesse histórico e inesquecível dia, 2 de Julho de 1823, teve início a Primavera do baiano, que lutou bravamente, não pelo seu Imperador, mas por uma pátria chamada Senhores de Engenho do Recôncavo.


Os heróis dessa guerra são três: Joana Angélica, a freira que peitou os soldados portugueses e representa o místico; Maria Quitéria, que se disfarçou de homem para poder se alistar no Exército e representa a transgressão; e o corneteiro Lopes, o soldado trapalhão que virou piada.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

3 O Homem que pensou ser Deus



Conto 3 – O Diário

No exato instante em que Formiguinha dizia impropérios sobre o caixão virtual de Silveirinha, a polícia técnica isolava o seu apartamento e vasculhava minuciosamente sua intimidade em busca de uma explicação para o seu ato suicida.

A festa das formigas sobre os restos do sanduíche de mortadela largados na pia da cozinha fora interrompida por mãos enluvadas que pegaram as migalhas de pão e acondicionaram-nas em sacos esterilizados com destino ao laboratório. O fotógrafo oficial registrava o ambiente em câmara digital e se espantou quando viu um metro e meio de parede feita com material pornográfico. Havia filmes e revistas para todas as manias sexuais, desde um simples papai e mamãe, ao sado-masoquismo, passando por alguns filmes de transformistas. “Ele também era chegado à pedofilia”, pensou o fotógrafo, surpreso com a quantidade de fotos eróticas de crianças e adolescentes, espalhadas pelo carpete do quarto. A maioria havia sido impressa da Internet.

O computador continuava ligado. Na pressa de gozar os seus poderes divinos, Silveirinha se esqueceu de desligá-lo. Um policial tentou acessar a agenda do micro, mas não conseguiu. Estava protegida por senha. Deixou o computador para um especialista em informática e vasculhou a estante em busca de uma pista. Havia alguns livros, um dicionário do Aurélio e, por detrás dos livros, uma agenda. O detetive puxou-a para fora e passou a folheá-la. Não era uma agenda, mas um diário com anotações esporádicas. Na contracapa havia um telefone. O único encontrado até então. Sujeitinho esquisito aquele! Ligou para o número achado:

– Alô! É 2-2 4-7-4-4-2-9?
– É sim! Quem fala?
– Aqui é o detetive Jotabê, da Delegacia de Homicídios. A senhora conheceu um senhor de nome Silveirinha?
– Conheci, não: conheço! É o traste do meu marido. Por quê? Ele matou alguém?
– Não. Pelo contrário, ele se matou.

Do outro lado, o telefone emudeceu. O detetive ouviu alguns soluços. Uma voz emocionada perguntou:

– Onde foi, moço?

 O policial deu as coordenadas para a mulher que se dizia esposa do suicida e desligou o telefone. Do lado de fora do apartamento se formava um pequeno tumulto, de vizinhos curiosos, de alguns jornalistas que cobrem as páginas de sangue dos jornais, e do síndico que, como administrador eleito, se achava no direito de violar a última morada de Silveirinha. Apesar de só encontrar o falecido raramente, quando coincidia se cruzarem na portaria, disse para o detetive Jotabê, nas investigações preliminares, que era amigo confidencial do imprevidente fatal e que o mesmo nunca lhe segredara algum problema amoroso ou que ele, como amigo do peito, tivesse notado qualquer resquício de loucura. Até então ninguém sabia que Silveirinha era casado. Inquirido, o porteiro contou o caso da moradora que ele paquerou e que foi rejeitado por ela. Mas isso fazia muito tempo. Foi logo quando ele foi morar lá, coisa de uns três a quatro anos. No máximo, cinco, disse o porteiro.

Enquanto aguardava a chegada da suposta viúva, o detetive olhava o diário tentando encontrar alguma pista ou bilhete dizendo os motivos daquele gesto extremo. Normalmente os suicidas deixam bilhetes para a família, pedindo perdão pela covardia de seu ato. Mas, entre as páginas do diário, não havia nenhum bilhete. Quem sabe não havia escrito no próprio diário?

“Aquilo não é o cão nem uma jararaca. É o próprio Diabo”, escreveu Silveirinha, no diário, a respeito da esposa. Havia uma página e meia de impropérios e palavrões. Quando amenizava, tratava-a como “Sargentona”. E explicava os motivos de haver comprado aquele apartamento ao arrepio da família. Não fazia sexo há muito tempo com a esposa, pois não suportava a visão daquelas coxas repletas de varizes. Os peitos caídos lembravam uma vaca leiteira depois da décima quinta cria. O corpo, gordo e esmaecido, causava intensa repulsa, somado ao fato de que ela o tratava com soberbo desprezo, esperneando e gritando por qualquer motivo fútil. Era como um sargento no quartel. Marido e filhos eram tratados com a devida desatenção dada aos recrutas. Ante tal quadro, não havia Viagra que fizesse efeito.

O detetive sentiu pena de Silveirinha. Tirou um cigarro da jaqueta e acendeu. Deu ordens para que, quando a viúva chegasse, mandasse entrar. Voltou a folhear o diário.

“Malditas sejam as mulheres!” iniciou assim as suas confidências em outra página. Relatava o episódio em que foi preterido pela “galinha” do Condomínio e da sua decisão em se tornar um onanista militante e praticante. “Enquanto houver punheta no mundo, não me arrisco a pegar uma doença venérea ou a Aids”, dizia, filosoficamente. Houve um hiato de tempo considerável e retornou ao diário no dia em que conheceu a sua “Formiguinha” no site de literatura. Discorria sobre o encontro virtual e a promessa de uma paixão efervescente. Mais um intervalo. Registrou a proposta da sua amante virtual em que ela pedia para que os dois se masturbassem simultaneamente. E citava em riqueza de detalhes o seu prazer redobrado em poder lambuzar o corpo da sua Formiguinha com o seu sêmen quente.

– Mas esse cara era um doido varrido! – desabafou o detetive – Que loucura!

Levantou-se a contragosto para fechar a janela. Ameaçava chover e ventava forte. Voltou ao diário.

“Hoje eu conheci a Paraná. Ela é amiga da Formiguinha e prometeu me conduzir por esses sites de literatura. Disse que manja tudo, que é a rainha do babado.” E falava das qualidades de sua nova amizade e até ensaiava uma suruba virtual, descartada pela Formiguinha, que não aceitava dividir o seu mouse com outra mulher, mesmo sendo de suas relações de amizade. Isso ele escreveu em outra página, depois de falar da queima do monitor na noite anterior, após uma ejaculada vigorosa sobre o mesmo e do líquido que penetrou pelos orifícios de ventilação, ocasionando um curto-circuito nas placas. “Que loucura!”, exclamou mais uma vez o detetive. “Esse cara era mesmo um maluquete, um doido varrido!”

“Paraná me telefonou para dizer que a minha Formiguinha está visitando outros formigueiros depois que transa comigo. Ela está fingindo orgasmo, para se livrar logo de mim e ir à cata de outros por aí. Disse que tem um nortista com os dedos divinos, que manipula o mouse como ninguém, segundo confidências da Formiguinha. Perguntei à vagabunda, mas ela negou tudo. Disse que era intriga de Paraná, que ela, a Paraná, estava a fim de mim, que a Paraná estava chateada por não ter aceitado a suruba e que eu tomasse cuidado, pois se ela soubesse de alguma traição minha, bloquearia seu MSN e adeus trepada virtual. Em qual das duas confiar? Vou ficar na moita e aguardar pra ver. Também não dá pra confiar na Paraná. Já notei que ela é uma falsa, do tipo da pessoa que joga o verde pra colher o maduro; se faz de morta pra comer o fiofó do coveiro. Pessoas assim a gente tem de confiar desconfiando”, assim Silveirinha expunha suas confidências em páginas escritas um dia antes de cometer a loucura fatal. Nada relacionado ao suicídio. Só loucura mesmo, pensou o policial, decidido a encerrar as investigações. O diário era a prova de suas maluquices. Com a palavra, os psicólogos e psiquiatras de plantão.

Suspendeu a leitura e guardou o diário em envelope lacrado e devidamente etiquetado. Desceu para a recepção do prédio para receber a viúva de Silveirinha, que não tardaria em chegar. Tomou um susto quando a viu. A mulher de Frankstein seria mais simpática. Em vez de chorar, relampejava pragas contra o defunto e dizia que se ele não tivesse morrido, que se preparasse para morrer em suas mãos. Que havia suportado suas noites fora de casa porque não agüentava os roncos e o mau hálito do cachorro bandido ou vice-versa, que era até um favor que ele fazia pra ela em dormir em outro canto, só não suportava era ele ficar ali, no bem-bom, enquanto ela e os filhos moravam no morro, dividindo a miséria com os vizinhos traficantes e amigos proxenetas. Ah! se te pego vivo!

“Aqui jaz um cachorro salafrário. Se não tivesse, de fato, morrido, seria enterrado vivo”, assim foi escrito o epitáfio no túmulo de Silveirinha, que morreu pensando que era Deus e foi enterrado como um cão sarnento, sem honras nem pompas. Pedaços rejuntados de um anjo caído do Paraíso, sem saber se haveria lugar para ele no Céu. O destino dos suicidas é vagar pela imensidão etérea, feito almas penadas a encher a noite de zumbis e perturbar o sono dos vivos.

Em vez de réquiem, insultos. A pedido da família, foi enterrado na vertical, de cabeça para baixo, porque, se ressuscitasse, sairia no Japão.

2 O Homem que pensou ser Deus



Conto 2 – A Gênese

Muito bem antes daquela fatídica manhã em que o estrelismo subiu à cabeça de Silveirinha e ele acordou pensando que era Deus e que poderia sair voando por aí ele também acordou em uma manhã de inverno pensando que era escritor. Sentou-se à beira da cama, acendeu um cigarro e se pôs a divagar sobre sua nova descoberta. Anteviu seu nome no Caderno Dois dos principais jornais do país e teve um breve relampejo visionário de um bate-papo com os seus colegas acadêmicos da casa de Machado de Assis.

Morava sozinho. Não porque quisesse, mas por incapacidade ou timidez, talvez. Uma vez resolveu investir em uma vizinha assanhada que ficava na portaria do prédio dando bola pra gatos e cachorros. Levou dois dias escrevendo uma carta-poesia para a sirigaita, deu cinquenta reais ao porteiro para se fazer de portador, e, quando menos esperava, bateram à sua porta. Era o porteiro que trazia debaixo do braço um espelho e uma resposta da pretendente. Despachou o portador e abriu o bilhete na ânsia que domina os amantes nos instantes próximos ao encontro. À medida que se envolvia na leitura, seu rosto se fechava em uma carranca de desgosto; seu olhar perdeu o brilho e ele chorou feito criança perdida no meio da multidão. Refeito, enxugou as lágrimas e pronunciou um impropério contra a vizinha e atirou o espelho pela janela, sem se incomodar com a superstição dos sete anos de azar para quem quebra espelho. Ou com a possibilidade de atingir algum transeunte na calçada.

– Velho babão é a puta que lhe pariu, sua vagabunda! –  vociferou.  

Depois desse episódio nunca mais teve coragem de encarar uma mulher. Retraiu-se em uma timidez crescente e passou a usar a mão grande como consolo. Assinou revistas de mulheres peladas, comprou filmes pornográficos e se cadastrou em sites proibidos para menores de dezoito anos. Finalmente descobrira uma nova modalidade de fazer sexo sem risco de pegar Aids ou outra doença venérea qualquer. Mesmo assim, por precaução, usava camisinha.


Levantou-se da cama e olhou para o computador. Agora ele teria outra utilidade, uma função nobre e, como prêmio pela nova tarefa, ganharia umas memórias a mais. Ligou a máquina. A placa-mãe fez “bip” e ele sorriu enigmático. Ou triunfal. Puxou a cadeira e abriu o editor de texto do seu micro. Aquela data era histórica e merecia uma comemoração. Foi ao bar e preparou um drinque, esquecido de que ainda não tinha forrado o estômago. Retornou ao teclado e exercitou os dedos antes de dar asas à imaginação.

Ao cabo de duas horas imprimiu o que chamou de seu primeiro best-seller. Leu em voz alta e gostou do que ouviu. Entrou na internet em busca de um site onde pudesse publicar seu texto. Não adiantava escrever e ninguém poder ler.

Depois de muita procura, encontrou um que achou legal. Fez o cadastro e enviou o texto, recebendo a promessa dos moderadores do tal site de que no outro dia a sua crônica estaria publicada. Retornou ao micro e passou a dedilhar causos e mais causos, até esgotar o espaço no HD.

No dia seguinte, ao abrir sua caixa de mensagens, havia umas linhas elogiosas de uma escritora daquele site. Retornou a mensagem, agradecendo, e daí nasceu uma amizade que seria duradoura se não fosse trágica.

A escritora tinha uns contos picantes e Silveirinha, acostumado ao prazer solitário, se amarrou neles. Imprimia-os e corria para o banheiro para se masturbar, imaginando-se o personagem das estórias. Inicialmente fazia isso às escondidas; depois escancarou para a escritora a sua dificuldade em ter mulher e de como estava fazendo para se virar. A escritora sentiu a vaidade aflorar à pele e uma pontada de orgulho picou seu coração e ela propôs que se tornassem amantes virtuais e que ele se masturbasse ali mesmo, enquanto ela ficava nua, se manipulando com o mouse e filmando com sua webcam. Silveirinha achou o máximo. Depois de muito tempo ele iria ter um orgasmo na frente de uma mulher. A pedido dela, aboliu a camisinha. Também não fazia sentido.

Durante dois anos eles viveram assim, se amando no silêncio corrupto dos megabytes cibernéticos, vistos apenas pelo olhar frio da câmera e do monitor de vídeo; ela lhe chamando carinhosamente de Sil e ele retribuindo com o apelido de Formiguinha, até o fatídico dia em que ele, por um acaso, descobriu que ela não lhe era fiel e que mentia descaradamente quando afirmava que desligaria o computador tão logo sentisse o último tremor do orgasmo contrair a sua vulva e seus pulmões parassem de arquejar. Desesperado, pulou da janela do seu apartamento, no vigésimo quinto andar, pensando que era Deus e que podia voar, levando Formiguinha a pronunciar impropérios de revolta sobre o seu caixão virtual:

– Eu lhe dei chifres e não asas, seu idiota!