quarta-feira, 9 de maio de 2018

A Gramática que estudei


Onde eu nasci, a Gramática desfilava no lombo de jegue. Eram meus bisavós que vieram importados de Portugal pelo Imperador Pedro II para elitizar o sertão. A elite falida portuguesa que tinha o sertão nordestino como opção para não apodrecer nas masmorras del-rey. Não trouxeram mulheres e, aqui chegando, se acasalaram com as índias, todas elas por livre e espontânea vontade do invasor.
Em tempos que não havia anticoncepcional, camisa de vênus e a Igreja não concebia o sexo com as índias um pecado carnal, a prole se tornou grande. Tão grande que faltou índia para os herdeiros e o cruzamento passou a ser entre primos, tios e sobrinhos.
Assim, se é que veio alguma gramática normativa com os aborígenes, essa perdeu-se no meio da caatinga onde brancos e índios conjugavam o Verbo Amar.
A comunidade cresceu. Virou arraial. Depois distrito. Abriram-se estradas e o povo descobriu outro povo além do horizonte. Um povo que lia livros, lia histórias, e mandava seus filhos para a escola. Sabia fazer conta de somar e dividir sem precisar usar pedrinhas ou os dedos. Seriam eles uns alienígenas?
Depois dessa descoberta a cidade nunca mais foi a mesma. Os filhos questionavam os pais, que questionavam o prefeito, que questionava a mulher e, esta, muito católica e devota de Nossa Senhora, perguntava ao padre, que ia lá de mês em mês rezar uma missa e extorquir os dízimos. “O que somos? de onde viemos? Para onde Vamos? E o padre respondia: “Há mais mistério entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”. E todos se ajoelhavam e diziam “amém!” Em seguida faziam fila para dar dinheiro ao padre e depois beijar suas mãos sagradas.
O meu avô, cujo pai exibia sua gramática normatiza num lombo de um jegue, era o chefe político do lugar e ficou matutando como resolver aquele dilema. Pensou dois anos e três meses e finalmente estalou uma ideia nos miolos: “Vou contratar um professor!”
Contratou um professor chamado Laudelino Mendonça, que ficou conhecido como “Professor Lau”, especialista em Gramática e doutor em tortura por palmatória. Sentia um prazer imenso ouvir os gritos de dor da molecada. E ai de quem gaguejasse na hora de conjugar o verbo sofrer!
Depois chegou a professora Tereza. Veio a Professora Serafina. Exigente feito o diabo, mas só usava a violência da palmatória como último recurso didático. E nos colocava pra ler. Ler, ler e ler. Aos seis anos de idade eu sabia Castro Alves de cor e salteado. Todas as fábulas de Esopo, Andersen, Irmãos Grimm e outros mais. Não nos ensinou Gramática normativa, mas lemos tanto que aprendemos a pôr os pontos nos is.
No ano seguinte nos mudamos para uma cidade maior. Estranhamento total. Parecia que o povo falava outra língua. Fui estudar em uma escola que ficava no fundo da igreja do bairro. Duas semanas depois a professora chamou a minha mãe para uma conversa muito séria:
- O que foi que esse moleque andou aprontando? – não esperou nem a resposta e já me deu um cachação.
- Calma, dona Durvalice, ele não fez nada! Chamei a senhora aqui porque seu filho está muito adiantado e vai ser transferido para outra escola.
A minha mãe me olhou penalizada, arrependida, e sussurrou carinhosamente no meu ouvido: “Se não fez nada desta vez, mais tarde fará. Me lembre pra descontar esse cachação”.
Fui estudar numa escola bem maior, mais bonita, e cheia de meninas de cabelos cacheados, arrumadinhas, e usavam perfume vagabundo. Foi amor à primeira vista. Nessa escola aprendi que Deus era substantivo abstrato e o que vinha depois era o verbo. Morfologia. Quem jia é sapo e a rã caminha. O que você disse? Vou mandar um bilhete pra sua mãe! Eu disse que estou sentindo falta do professor Lau.
Sintaticamente falando, eu era um sujeito simples perdido no meio de um mundo composto de bacanas. Se era táxi, por que não dizer “sintáxi”? Porque o nome dessa coisa é “sintache” e vou mandar outro bilhete para a sua mãe!
Nessa época os linguistas brasileiros ainda não eram nascidos e o que a professora dizia era lei. Quando a gente questionava alguma coisa, ela respondia “que era assim que estava na Gramática e vou mandar um bilhete pra sua mãe”. Ainda bem que não mandava pro meu pai.
Fui para o ginásio depois de passar por uma maratona de exames de admissão ao ginásio. No primeiro ano a professora de Português nos ensinou que o melhor caminho para se aprender o português era a leitura. Leiam! Leiam! Leiam!, dizia um tanto alucinada. “Leiam bula de remédio, leiam carteira de cigarro, leiam a Bíblia, leiam até o catecismo de Zéfiro!” Louca. O catecismo de Zéfiro era um gibi de sacanagem.
No quarto ano, pegamos um professor de Português rigoroso com a língua culta e bela, conforme Bilac. Pastor evangélico, não admitia um mas-mas. Errar a Gramática era o pior dos pecados. As provas que ele fazia eram sui generis. No quarto trimestre, depois de passarmos duas semanas suando a camisa no estudo dos verbos para fazermos a prova final, ele pegou o giz, foi ao quadro e escreveu: “Se você vê Ednilda, diga-lhe que enviei lembranças”. Em seguida falou: “Anotem essa oração, vão pra casa e amanhã vocês me dizem onde está o erro”.
Décadas depois, Dom Evaristo Arns soube desse caso e criou o movimento Tortura Nunca Mais. Escrever aqui que ninguém passou, é mera redundância. Todo mundo em recuperação. Ninguém, em tempo algum, ouviu alguém falar “se você vir”. E se falasse, seria chamado de burro, ignorante, metido a falar difícil sem saber. São as armadilhas da gramática normativa que nos põem em conflito com a sociedade falante que se acha dona dos saberes da linguagem, pois é ela quem gera e quem cria seus próprios caminhos de comunicação.
Passado esse dia fatídico, o professor nos deu uma semana para estudarmos todos os assuntos ministrados por ele no nosso quase um ano de convivência. Quem perdesse, iria fazer re-recuperação das quatro unidades. No dia aprazado, entramos na sala com o ânimo de quem se dá ao carrasco. O professor, que não passava de um metro e sessenta, nesse dia entrou na sala do tamanho de Golias. Nosso olhar era de terror e medo. Ele se acomodou na sua cadeira, nos mandou abrir o livro de leitura na página 131, e disse do jeito especial de quem tem o poder de mandar:
- Façam uma cópia desse texto! É a prova de hoje. Se errarem uma vírgula, um ponto, uma exclamação, uma cedilha, não esperem complacência de minha parte. Não há conserto para quem erra uma cópia.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

O Profeta

O povo da minha terra, religioso e temente a Deus, reuniu-se ao redor do forasteiro para ouvir sua pregação. A um sinal de silêncio, a multidão se calou. Então ele falou em tom profético para uma multidão de viventes que esperavam um milagre:
- Hoje eu vos darei a luz! Esta cidade, finalmente, sairá das trevas!
O povo chorou de emoção. Um jovem, com cara de fariseu, caminhou em sua direção e perguntou:
- Acaso és o Messias, senhor?
- Não. Sou o operador desse gerador de eletricidade que o prefeito comprou!

sábado, 31 de março de 2018

O Judas somos nós

Não malhemos o Judas no sábado de aleluia porque ele era o melhor amigo de Cristo. Foi traído pelas suas convicções, tais quais as nossas que nos levam a trair os ensinamentos Dele. Cristo era paz, era amor. Em nenhum momento Ele chamou Judas de traidor.

Judas viu a mulher grávida morrer de fome por causa dos romanos que levaram seus mantimentos como pagamento de tributo a Roma. Viveu pela vingança, acreditou em Cristo não como um rei metafísico, mas como o Messias que viria salvá-los conforme as profecias. Foi testemunha de todos os milagres de Cristo e acreditava que com umas simples palavras Ele destruiria Roma. Vendo Jesus se esquivar do confronto, forçou uma situação que levaria o filho do Todo Poderoso a reagir. O resultado todo mundo sabe.

Não houve o pagamento de trinta moedas. Isso foi invenção dos papas para vender Judas como traidor, do mesmo jeito que fizeram com Maria Madalena, transformando-a em prostituta. Os papas medievais tinham o dom de destruir reputações.

Ao defendermos a pena de morte ou a aniquilação daqueles que não comungam das nossas ideias, nós também estamos traindo Cristo em seus ensinamentos de perdão e paz.

domingo, 25 de março de 2018

Enquanto isso, numa prefeitura aí:


- Seu prefeito!
- Oi!
- Tô numa dúvida atróis.
- Desembuxe!
- Sabe, aquelas pracas de trânsito qui o sinhô mandou fazê...
- O qui é que tem?
- Num sei o qui escrevê.
- Coloca "Atenção, predestre".
- Mais num é quebra-mola?
- Adonde você vai colocar essas praca?
- Na roça.
- Passa carro?
- Não. Só carroça e carro di boi.
- Então vossuncê tá preocupado cum quê? Quem vai lê?

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Por onde andará a minha Amélia?

Ai, que saudade de Claudinha! Digo, de Paulinha. Aquela sim, é que era mulher de verdade. Passava fome e ainda achava bonito não ter o que comer. A Paulinha? Não. A Amélia. Amélia Cristina dos Anjos. Mas não era como a da música não. Só os poetas conseguem arranjar mulher assim. As tais musas. Deusas, rainhas, afrodites, ninfas. Nenhuma baranga. Carinhosas, gostosas, compreensivas e polidas. Mulheres sem TPM e crise existencial. Os mortais, como eu, têm que se contentar com marias e joanas, rainhas da impaciência, deusas da incompreensão, ásperas tal qual lixa grossa de raspar madeira, delicadas como elefante em loja de louça. A minha Amélia não era como a da música, mas era diferente dessas barangas de quinta categoria. Doce, alegre, sorridente, embora eu gostasse mais quando ela ficava de boca fechada. É que lhe faltavam três dentes na frente. Uma vez um candidato a vereador lhe prometeu uma dentadura postiça, ela ficou feliz, deu duro na campanha e depois de eleito, sumiu na buraqueira sem deixar rastro. E a nega ficou desdentada, expondo a boca de trave sem goleiro. Por isso que ela achava bonito não ter o que comer: não podia mastigar.

Um dia, achei que a sorte mudaria e apostei todos os meus vinténs na Amélia. Tudo. Um lance só. Vermelho, vinte e sete. Jogo no pano. Deu preto, dezessete, como no tango de Herivelto Martins e David Nasser. Amélia sorriu reconfortante e me perguntou a título de consolo: “Meu filho, que se há de fazer?” Em seguida deu-me um beijo delicado na ponta do nariz, virou as costas e desapareceu no breu da noite levando o crupiê à tiracolo.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

ONDE CANTA A ACAUÃ: OS OLHOS VERDES DE MARY

OS OLHOS VERDES DE MARY: De Olhos verdes Os olhos verdes de Mary suspiram por outro mundo além da Ladeira Grande. Seus pensamentos cavalgam sobre as nuvens br...

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

BRAZILINO VIEGAS: a escola dos meus encantos




A Escola Brazilino Viegas talvez não fosse a escola dos sonhos futuristas de muitos nos anos sessenta, mas foi a única que me permitiu sonhar sem medo de ser feliz. Vindo do sertão, onde fome rimava com precisão, a humanização e o acolhimento faziam parte do currículo dessa escola.


Disse-me um dos meus irmãos, que também estudou lá, que a diretora à época se chamava Perolina, porém não me lembro, pois não tínhamos contato com a parte administrativa. Minto: eu era useiro e vezeiro dos puxões de orelha na pequena sala da diretora.  Todavia, me lembro das professoras Dayse e Marilda, a primeira, minha professora, a segunda, do meu irmão. Também me lembro das notas: o meu irmão tirava dez; eu, nove vírgula nove.


“Dayse” foi o primeiro nome estrangeiro que aprendi, depois dos filhos de Dona Deusinha e Seu Totó, lá no Junco: Aimêe, Washington, Aidêe, e o último, Telmo de Totó. Este, brasileiro “ajuncado”, mas eu já não morava mais lá. 


A professora Dayse era um anjo encarnado. Doce criatura. Nunca mandou um bilhete para a minha mãe nos quatro anos em que fui seu aluno. Mas com a professora Marilda a história era outra. A minha mãe se alfabetizou lendo os bilhetes da professora. Faziam-me rasgados elogios, inesquecíveis para uma mãe zelosa como a minha: “Dona Durvalice, boa tarde. Seu filho é um capeta em forma de gente...” e desfilava dezenas de elogios que deixavam minha mãe emocionada, alegre ao extremo, feliz por poder exercitar o seu poder. Em apenas um mês que ela, a professora Marilda, substituiu a professora Dayse, a minha mãe fez calos na mão de tanto me bater. Sem falar das vezes que eu me reunia com os moleques da Cavada e tomava a correspondência que o meu irmão portava.


Os bilhetes foram de menos. Na Semana da Pátria a professora Marilda me promoveu a Duque de Caxias e fez questão de me recomendar: “Se gaguejar naquela famosa frase ‘Quem for brasileiro, siga-me!’, vai outro bilhete pra sua mãe”. E no dia da apresentação o nosso herói no Paraguai foi rebaixado a guarda noturno: o quepe do vigia da rua foi a única vestimenta a caráter que consegui para parecer um marechal do Imperador. O comandante do 4º Batalhão de Polícia Militar, convidado de honra da diretora, olhava para mim e sorria zombeteiro, mas a minha interpretação foi tão convincente que ele, no final, aplaudiu de pé.


Lembro-me dos olhos verdes da minha colega Iara, o boto vermelho das minhas paixões. O meu coração acelerava quando ela me pedia um lápis emprestado ou para lhe ensinar alguma coisa. Foi amor à primeira vista e durou até o dia que o colega Belchior arranjou trabalho de cobrador da Kombi que fazia linha Santa Terezinha – Centro, e a deixava viajar de graça. Então ela nunca mais me pediu para lhe dar pesca ou outra coisa qualquer. Iara, santa desilusão amorosa! Foi a minha primeira experiência com o capitalismo selvagem e então procurei um livro de Karl Marx na biblioteca da escola. Sentia-me o proletário do amor sendo massacrado pelo poder econômico. É certo que virei materialista de carteirinha, mas sentia uma falta danada do sorriso de Iara.


Tornei-me frequentador assíduo da biblioteca, que ficava no segundo andar. Era uma sala encantada, cheia de histórias de príncipes e princesas, de monstros marinhos e pavões misteriosos. Como não encontrei o livro de Marx – e não podia encontrar, vivíamos sob a proteção da Ditadura Militar – fiquei fascinado por Andersen, os Irmãos Grimm, e as fábulas de Esopo. E toda semana eu levava um livro para casa e me imaginava um príncipe encantado salvando a princesa Iara das masmorras sebentas e fedorentas onde ela vivia prisioneira.  


E assim, de conto em conto devorado, andei regurgitando as minhas fantasias em um mundo cuja realidade não nos permite mais a simbiose dos sonhos e cismas ideológicas. 


Meus parabéns à Escola Brazilino Viegas que neste ano está completando seu octogésimo aniversário. 

sábado, 11 de novembro de 2017

Da invenção da roda à internet




Dizem os entendidos que a roda foi a maior invenção do homem e que, sem ela, a maioria das coisas não rodava, nem mesmo a Terra que é uma bola, mas que, antigamente, antes da invenção da roda, ninguém sabia desse detalhe e todo mundo achava que o nosso planeta era uma bola quadrada. Galileu Galilei quase foi queimado vivo depois que inventou o telescópio e descobriu que o mundo era redondo. Mas, claro, para não ser queimado teve que voltar atrás e o mundo continuou quadrado.
Que Deus vos guarde guardiães da Sapiência, mas peço licença para abrir a divergência sobre o que já se deu por certo: a maior invenção do mundo, a invenção das invenções, foi a palavra falada. Sem ela, nossas cordas vocais emitiriam apenas grunhidos e as mulheres não poderiam dizer que estão com dor de cabeça na hora do ora-veja nem os homens poderiam dizer que estavam fazendo serão até de madrugada. 
Biblicamente analisando, como Jesus Cristo proferiria o Sermão da Montanha se não existisse a palavra falada? Como Moisés escreveria os Dez Mandamentos ditados por Deus se não existisse a palavra escrita e a caneta Bic esferográfica, escrita fina? Como saber se a roda seria roda e se teria alguma utilidade se os homens não pudessem se comunicar entre si? Como vender alguma engenhoca se o Inmetro obriga o fabricante a enfiar o manual de instrução junto ao produto?
Quando o inventor da roda acabou de inventar a roda, gritou eufórico: “Akerueh!” Um curioso que passava por perto, ouviu e indagou:

-  Ossié ke?
-  Grunf. Gruinchedud?
-  Evesgran?
- Gruiichi. Grudumfish.

Fazendo a tradução pelo Google:
- Que é isso?
- É uma roda, não está vendo?
- Para que serve?
- Não sei. Acabei de inventar.

Como podemos observar pela tradução acima, o indivíduo curioso jamais saberia que a roda havia sido inventada se antes não existisse a palavra.
Pesquisadores dizem que no princípio não era só o Verbo. Havia também o substantivo, o adjetivo, o pronome e o cobrador de impostos. Todo mundo falava a mesma língua, e tenho absoluta certeza de que não era o Esperanto. 
Um dia o homem olhou bem para a roda e resolveu torná-la útil: inventou de construir uma torre até o Céu, assim ninguém precisaria mais pagar dízimo a pastor ou a padre ou a rabino: caminhariam direto para o Paraíso, sem parada no Purgatório. Quando estava quase chegando lá, só faltando uns dois palmos para atingir o território divino, Deus disse:
- Êpa! Vocês já foram longe demais! – pronunciou umas palavras mágicas e ninguém mais se entendeu. Não falavam coisa com coisa: O pedreiro pedia massa, o ajudante levava pão; o carpinteiro pedia prego e o ajudante lhe entregava um carrinho de tijolo. Assim, o projeto de se chegar ao Céu foi abortado por uma simples falta de entendimento entre os homens. É igual à ONU de hoje.
Um dia um descendente da centésima quinquagésima geração do inventor da roda escreveu umas palavras no chão e uma semana depois ele notou que as mesmas haviam criado raízes. Arrancou as palavras com cuidado, enxertou as raízes e então ele viu que algumas formavam palavras híbridas que todo mundo entendia. Eureca!  A humanidade estava a salvo e não precisou nem de um mocinho americano. Então, fazendo sinal com as mãos, o rei ordenou que todos os homens amolassem o machado e saíssem mundo afora a cortar as palavras até a raiz. Depois, observaram cuidadosamente o macho e a fêmea e viram que a diferença entre eles era um “redondo”, um “corte” e uma “haste”. Confabularam entre si, reuniram o conselho de anciões e, sabiamente, decidiram que o masculino seria feito apenas pelo redondo e o feminino pelo redondo com mais um traço côncavo acima, simbolizando a curva do corte. E desse modo acabaram inventando a letra “a”.
Nessa mesma época, arqueólogos do rei encontraram em suas escavações nas pirâmides do Egito centenas de milhares de baús de sufixos e prefixos, mais vogais temáticas e diminutivos que se usavam antes do malogro da Torre de Babel.  Então dividiram a humanidade em grupos os quais chamaram de tribos, e cada grupo podia levar quantos cestos de radicais, sufixos, prefixos, diminutivos e vogais temáticas que quisesse. Deste modo cada tribo criou sua própria codificação da fala e as crianças passavam os dias brincando de criar palavras novas, e quanto mais elas brincavam e formavam palavras, mais o povo enriquecia o seu vocabulário.
Isso aconteceu do lado de lá do oceano Atlântico. Do lado de cá os índios, que até a chegada de Cabral não sabiam que eram índios, plantavam raiz de mandioca e inventavam palavras de acordo com o que viam ou sentiam. Os jovens, que ainda não eram “jovens”, mas “kurimins-gûasu”, levavam para o pajé o que viam de diferente na mata ou no mar ou em qualquer lugar e o pajé, então, reunia a tribo para nomear o que ainda não tinha nome.
Um dia chegaram as tribos portuguesas, espanholas, inglesas, alemãs, francesas, turcas, ciganas, cada uma com seus cestos de raízes primitivas, prefixos, sufixos, aumentativos e diminutivos e centenas de milhares de navios carregados de palavras novas. O povo de Pindorama, que não nomeava as coisas arbitrariamente, mas com a funcionalidade e o sentido que elas denotavam, foi obrigado a ingerir uma Gramática que não sabia o que era, com seus artigos, numerais, verbos, substantivos e uma coisa chata chamada sintaxe. Mas o pior de tudo veio em um cesto latino: uma palavra chamada “varíola”. Outra, também, foi a derivação da palavra “bandera”, chamada “bandeirante”, vinda em um navio espanhol. Essas duas palavras, juntas, foram responsáveis pela quase extinção do povo pindoramês.
Assim, os invasores vindos de todos os cantos do planeta deram a sua contribuição na formação lexical desse povo que vivia nu e não precisava ler placa com os dizeres “Precisa-se de...” para sobreviver. O que eles disseram quando chegaram e avistaram o paraíso tropical:

Meu estoque de grãos está mofado
O som do meu pífano desafinou
O cano da minha pistola está danificado
Avisa para esse povo que o alemão chegou!

Cheguei com meu latim invocado
Toquei piano no meu camarim
Não servirei maçapão a latino mal educado
Bisbilhoteiro, bandido ou italiano ruim.

As polacas desembarcaram da escuna
Sob a mira do flibusteiro holandês
Os ingleses as tratavam na chulipa
E diziam: Aqui tem malte, não maltês!

O francês saiu do porto e tomou o cabriolé
Não levava bagagem, mas dinheiro pro bilhar.
Subiu a Rua das Quengas e parou no cabaré
Sorveu um barril de chope e foi pro cassino jogar.

Trouxeram os espanhóis o fandango e o bolero
Deslumbrando o galã galante de bolsa à tiracolo.
Fizeram-lhes omeletes as curumins nos entreveros
De Tupã e deuses vindos de outros polos.

Assim juntando raízes aborígenes e neolatinas,
Aos galhos arbóreos americanos e estrangeiros
Dando origem a outras palavras cromatinas
Da miscigenação do povo brasileiro.

Obs: As transformações das palavras duraram milênios, mas o homem, um eterno insatisfeito, inventou a internet e a humanidade está voltando a se comunicar por grunhidos.


N.A. - Poemas em parceria com o poeta alagoano Pedro Costa.