quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

DE GATOS E SAPATOS

De Gatos e sapatos

Todos os dias da sua infância na Vila São Francisco, nos cafundós das Alagoas, Avelar viu a alma do gato que ele matou assombrar as suas inquietudes noturnas, solidificando a transfiguração luminosa do felino que depois se desvanecia em miados de lamentos e de dor.

Sonsamente eximiu-se da culpa do crime ao relatar à sua mãe ter sido um infeliz acidente, provocado pelo próprio gato, que pulou para pegar uma lagartixa no exato instante em que ele disparava o seu estilingue em mira certeira na sardanita. A pedra atravessou a cabeça do bichano fazendo um grande estrago, como se fosse bala perdida de revólver. Por azar, atingiu também as sete vidas do infeliz. 

Sua mãe não ligou a mínima para a sorte funesta do felídeo porque, naqueles tempos, gato e sapato eram feitos para se pisar. Nem levou a sério as sombrações felinas que vinham assustar seu pirralho na calada da noite. Acreditava piamente que gato não tinha alma. Morto, não fazia medo a ninguém. Tampouco prestou atenção ao que o filho falava, pois, naqueles tempos, menino era como tamanco, ficava debaixo do banco e raramente os adultos davam importância à conversa de criança. 

– Sossegue. Isso é apenas a sua consciência ecológica cobrando suas atitudes. Se não fosse o gato, seria a lagartixa que você veria – disse e se retirou para seus afazeres de mãe com outros pesos mais importantes na consciência. 

Eu também tive um gato nos meus áureos tempos de menino de interior. Chamava-se Bichano e gostava de beber leite recém-saído do úbere da vaca, às seis horas da manhã. Nas horas vagas, Bichano gostava de caçar lagartixa ou correr atrás de preás nas cercas de macambira. Era muito brincalhão e, os adultos reunidos no avarandado para admirar o pôr-do-sol, xícara de café fumegante nas mãos, interrompiam as conversas meditativas para ver Bichano e suas peripécias com uma bola de meia no meio do terreiro. 

Um dia Bichano aproveitou um vacilo do pessoal da cozinha e resolveu mudar a dieta por sua conta e risco. Era um domingo de pescaria no açude e os homens retornaram com várias fieiras de peixes frescos amarrados pelas guelras. As mulheres se organizaram na cozinha preparando o almoço e não deram importância ao olhar cobiçoso de Bichano, pregado na bacia onde os peixes repousavam no limão. Sorrateiro, pulou ágil e abocanhou uma traíra, saindo em disparada na direção do quintal. Reapareceu uma hora depois, corpo mole e bambo das pernas, pigarreando feito tuberculoso antes de entregar sua alma a Deus. Bichano morreu em meus braços, com uma espinha atravessada na garganta, depois de penosos miados agoniados de dor e de falta de ar. 

Diante do seu túmulo, fiz promessa solene de nunca mais ter outro bicho de estimação. Nem de comer peixe pescado em açude. 

Depois de enterrar três bichinhos virtuais, aqueles inventos japoneses que mais parecem miniatura de game, o meu filho Vinícius esperneou por um animal de verdade. Qualquer um, desde que fosse de verdade, carne, osso e pelo para causar alergia. Uma colega de sua mãe, sabedora do seu desejo, lhe presenteou um gato siamês, que ele o batizou de Mendonça, justificando ser o nome de uma onça camarada de um desenho animado que passava na televisão. 

Mendonça é um gato manso, carinhoso, preguiçoso e se deixa afagar por todas as crianças da vizinhança, a maioria cheia de bichinhos virtuais e de vídeos-games com imagens tridimensionais. Uma delas perguntou inocentemente como se trocava as pilhas dele.

Quando Mendonça era filhotinho, pequenininho, fez amizade com uma lagartixa ingênua que vinha todos os dias brincar com ele na varanda do apartamento, achando que seria possível mudar o comportamento natural dos bichos. No início ela teve medo, titubeou, vacilou, mas, com o passar do tempo, ganhou confiança, acreditou na amizade, se tornaram amigos confidentes e ela contou toda a sua vida para ele, que parecia ouvir atentamente. De vez em quando lhe dava umas estocadas com as patas dianteiras, sem feri-la. Era como gente dando tapinhas nas costas de gente em consolo de amigo. 

Um dia Mendonça despertou, se olhou no espelho e se viu um lindo gato, de pelugem lanosa e garras potentes. Quando a sua amiga lagartixa desceu a parede para confabular, ele se eriçou, curvou a coluna em sinal de ataque, se aproximou finório, manhoso, traidor. Ela, sem desconfiar de nada, correu exultante para abraçar o amigo. Tardiamente compreendeu que os gatos são como os seres humanos: usam e abusam dos amigos a seu bel-prazer, fazendo-os de gato e sapato, cativando suas amizades, aprisionando suas almas até o despertar dos seus instintos selvagens que os levarão a engolir os seus melhores amigos. 

Basta, para isso, ser crédulo e confiar em demasia.

3 comentários:

Mislene Lopes disse...

Bela crônica!
Como diz Miguel de Unamuno:
"Cada novo amigo que ganhamos no decorrer da vida aperfeiçoa-nos e enriquece-nos, não tanto pelo que nos dá, mas pelo que nos revela de nós mesmos."
Adoro ler suas crônicas!
Tenho um carinho e muito apreço por você!
Beijos

Kathleen Lessa disse...

Tom do Junco,

passei pra deixar um "xêro" e "zoiá" suas letras.
Andarei por aqui um pouco, entre os mandacarus e algarobas, pela caatinga.
Mas não ouvi a acauã... decerto assustou-se comigo e voou pra longe.

Beijos,
Kathleen

Kathleen Lessa disse...

Um verdadeiro amigo é aquele que nos conhece tal como somos, compreende como e onde estamos, vibra com nossas conquistas, chora com nossos fracassos, é solidário, cruamente franco, aponta nossos erros mas não deixa de nos querer bem.__ E por falar em amigo, Tom, uma reclamação amiga(rsrs): não vi no seu blog qualquer indicação de entrada para meu "Kaleidoscópio Literário" nem para o "PoetiKa&Textos".__ Excelente crônica, como sempre. __Beijos, Kathleen