Foi Jorge Amado quem primeiro me deu notícia deles.
Era um romance meio proibido, apesar de sua longa idade. Beirava os quarenta anos quando a década de 1970 estava pelo meio, ainda era lido com olhos de escândalo e seu texto somente falava de uma tensa questão social. Pelo sim pelo não foram as palavras que eu podia ler sem medos ou restrições – não me lembro de meus pais terem me proibido nenhum leitura; eu que cheguei, por influência de Tim Maia, a ler O Universo em Desencanto, bíblia de uma seita meio hippie de então –, pelo sim pelo não, dizia, foi Jorge Amado e seu romance que levaram meus olhos a enxergar a infância invisível que circundava minha quase adolescência.
Eram meninos afoitos e libertos, mas não tinham o heroísmo vadio dos personagens jorgeanos e moravam em Palmares. O líder do grupo chamava-se Calango, um homossexual ingênuo, com voz de comando e uma indizível capacidade de revestir todas as atitudes com uma capa lúdica. Gostava de nos mostrar como batia a carteira dos matutos e roubava o relógio dos cidadãos.
A rigor não temia nada, só Luiz Guarda, um policial arbitrário que costumava matar todos os ladrões que encontrava. E enquanto não se deparava com seu destino fatal, Calango se divertia correndo e brincando nas ruas da cidade. Poderia ter presença no romance de Jorge, mas seu tempo era outro, e os capitães da areia me parecem mais reais que a realidade vista de minha janela adolescente.
Não sei o fim de Calango. Acho que quando sai de Palmares ele já não andava pelas ruas. Foi pro Recife? Morreu? Ajustou-se? Impossível saber. Sua invisibilidade ganhou densidade e ele não pertencia ao grupo de meninos que tentava nos arrancar algum trocado enquanto bebíamos pelos bares da Boa Vista. E sempre duvidávamos de seus apelos.
Certa feita um deles se achegou à mesa pedindo dinheiro para comprar comida. Desconfiando de seu pedido, oferecemos sanduiche. E o menino devorou. Agradeceu olhando com olhos súplices para nosso petisco. Oferecemos outro sanduíche. Devorou três ao todo.
Em sua invisibilidade tinha fome e nenhum futuro.
Seus pares espalhavam-se por todos os cantos.
Conheci um deles em Matriz de Camaragibe. Era prestativo, carregava as compras de quem se dispunha a dar-lhe algumas moedas na feira da cidade. Como o morador do cais da Bahia, Perna-Seca, tinha um perna comida pela poliomielite, mancava e chamava-se Pé-de-Bombo. Mais do que viver, brincava pelas ruas escaldantes da cidade, pela praça Bom Jesus, um descampado onde nas festas de Ano-Novo se armavam barracas de madeira para as funções da pândega, os jogos e as bebidas.
Dia dois de janeiro, passada a procissão e fechadas as barracas, sobravam as armações de madeira. Liderando um bando de cangaceiros lúdicos, Pé-de-Bombo se encarregava de derrubar os restos. Aquelas estranhas ruínas que ainda recendiam a madeira nova caiam, uma a uma, na força lúdica do lazer dos meninos que logo sumiam, iam brincar noutros terreiros, deixando aos garis a necessidade de recolher os novos restos.
Eu que os aprendi a olhar nas páginas da literatura, sem cheiros desagradáveis e com o futuro trágico ou glorioso descrito no final do volume, ainda me surpreendo.
Ceio que o precursor de todos eles, pelo menos nos livros, foi Leonardo, o herói de Manuel Antônio de Almeida, das Memórias de um Sargento de Milícia. Era no tempo do rei Dom João VI que ele reinava no Rio de Janeiro. Abandonado por pai e mãe, vivia entre a liberdade das ruas e o pouco rigor da casa do padrinho, o barbeiro que “arranjou-se”. O mundo era tão outro que das ruas Leonardo também “arranjou-se”.
De outras leituras – dos jornais, das revistas – vejo crescer a invisibilidade dessa gente e os alertas vêm de longe, muito longe.
“E o garoto de doze anos, raquítico e cínico, encostado num poste, escolhe entre os passantes precisamente aquele que sabe ingênuo e facilmente enganável. É um psicólogo instintivo, no excesso de pó que cobre o rosto de certa senhora descobre a infalível beata, a dona da bolsa cheia de níqueis destinados aos mendigos que possa encontrar no caminho…”
Eu ainda encontro esse garoto de doze anos, não cresceu, embora José Carlos Oliveira o tenha visto nas ruas do Rio de Janeiro e era novembro de 1953. O tempo teima em não passar para essa gente invisível. Continuam vagando na vastidão, Carlinhos, pois “sobre os desmandos e a insensatez dos adultos paira a inocência infantil”.
Enquanto isso fazemos literatura, enquanto isso o real escarra em nossos rostos escanhoados todas as manhãs.
Pouco antes das seis da madrugada, no Núcleo Bandeirante, cidade-satélite de Brasília, um menino brincava com uma cadeira de rodas. Descia na disparada possível a rua de baixo declive. Estava feliz. Disse um galanteio chulo para duas senhoras que passavam de roupa justa com destino à academia. Elas não deram bola. “Coitado, deve estar varado de crak”, diagnosticaram. E o menino, nem-aí-seu-souza. Corria com a cadeira que tomara emprestado a outro miserável. Já estava invisível.
Os olhos bem formados somente costumam enxergá-los nos noticiários, na narrativa de tragédias que nenhum Sófocles escreveu.
Todos perderam a ingenuidade, já não se assinam Pedro Bala, Calango, Leonardo, Pé-de-Bombo, não esperam a senhora maquiada nas esquinas, não pedem sanduíches. Cresceram suas necessidades e suas encruzilhadas são bem mais cruéis e doloridas.
Cresceu também nosso distanciamento.
Pela televisão, impotentes, ou indiferentes, assistimos o balé macabro. Vestidos de trapos, andrajos, jogaram fora as latas de cola que já nos chocou e fumam crak com o prazer danado de quem caminha para a indesejada. A certeza de que não chegam a lugar nenhum nos transmite a segurança de que não carece enxergá-los. Até a lei os apaga da vida. São inimputáveis, não são responsáveis, e nesta condição, são canteiros férteis para a criminalidade de outros tantos.
E no meio do desalento, na calçada de um edifício em Maceió, por esses dias, esperando um amigo, vi a polícia acossando essa infância invisível. Um deles, idade indefinida, talvez doze anos, levantava com seus trapos. Dormia sob uma árvore. Caminhou até a árvore mais próxima. Voltou a dormir. Seu amigo, um pouco mais velho, ensaiou um discurso. Deus está vendo. Chamou a polícia para nos expulsar daqui. Nós não roubamos, queremos só viver. E porque estão na rua? Minha mãe morreu. Não tenho pai nem para onde ir. E essa corda aí na árvore? Só um balanço; a gente precisa se distrair, né? É.
A ausência do espaço lúdico, da solidariedade, da esperança.
E aí fechamos a porta e abrimos um livro. A legião de excluídos, espectros vivos, ganha a rua na solidão da madrugada fria.
O mundo pode dormir em paz.
Um comentário:
Um texto tão desesperançado que doeu. Fazer o que? Abrir um livro...
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