Outono era a moringa na mesa forrada de
papel crepom. A caneca de alumínio deixava a água mais fresquinha, gosto de
terra no fundo mais fundo, cheiro de chuva no gargalo. Vento encanado que podia
constipar, menino remelento de nariz a escorrer pelos lábios. Peito apertado na
cor doce e melancólica de um quase maio.
Essa mania de outono eu tenho desde muito
cedo. Desde bem pequeno mesmo, lá na província, onde as pessoas nem davam muita
bola para essa história de estação do ano. Tinha o verão, com aquele calor
medonho dos tempos sem ar-condicionado nem ventilador, e o inverno que trazia
frio de doer nos dedos e obrigar a dormir de pijama. Outono e primavera também
existiam, mas a esses ninguém dava muita confiança.
Eu
dava. Comecei a prestar atenção no outono no dia em que a professora Alda
exibiu o livrão cheio de fotos coloridas, mostrando como a natureza reagia às
boas e más influências climáticas, como se comportava diante de cada uma delas,
se derretendo toda quando o outono anunciava a chegada triunfal. O papel do
livro ficava mais cheiroso nas páginas que mostravam árvores se descabelando,
montanhas abrindo os braços para os dentes do sol que banhava tudo de um
amarelo meio laranja avermelhado, sol que parecia vir de outro mundo e que
jamais passara nem mesmo de passagem pela minha cidade.
Peguei mania e comecei a colecionar folhas
caídas na praça, sobre calçadas e muros da alameda que acompanhava o caminho da
escola. E passei a observar, encantado, que aquelas folhas meio marrons
amareladas disputavam em beleza com os frutos da última primavera, foram verdes
sobre verdes no verão que acabou de acabar e estarão renascendo daqui a pouco,
no inverno que o vento mais fino já anuncia. Fazia as contas e cálculos das
transformações pelas quais deveria passar a minha vida até a explosão do
próximo outono.
Por que o declínio e a decadência? De onde
tiraram as explicações encontradas no verbete do primeiro dicionário que me
caiu às mãos? Até aquele dia, outono para mim era beleza e renascimento.
Coloquei as impressões no poeminha outonal que fez os colegas rirem bastante e
a professora condescender um “ele é sensível”. Também li para minha mãe, à
noite, enquanto ela lavava pratos. Depois do ponto final disse “vá dormir, você
está cansado”, e até hoje não sei se o comentário significou uma aprovação. Mas
a reação generalizada me mostrou que a compreensão do outono é para poucos.
Quantas vezes, ainda no meu pequeno mundo,
me deitei à tardinha sobre a esteira de folhas das palmeiras, da cajazeira, dos
umbuzeiros? Cabeça recostada no travesseiro improvisado de outono e os olhos na
impenetrável luz dos fotógrafos e dos pintores, até o sol se cansar de mim e
fugir para detrás das montanhas. Logo, logo vem o inverno e eu me fecho em
copas, que nem as árvores, escondo os meus frutos.
Catei folhas na volta da escola, na ida
para o trabalho, na vinda dos filhos, na despedida dos pais, sem precisar dar
explicações para ninguém. Hoje não mais. Recolho apenas as que as máquinas de
limpeza não enxergam, escondidas na grama da beira da piscina. Quando eles
descuidam, recolho algumas no tonel de lixo. Só que pouco descuidam e os olhos
de verão são fogo em brasa nos meus calcanhares.
Declínio e decadência. O segurança chuta
para longe a belíssima folha da mangueira que veio caindo, caindo e se
aproximando de mim. A bota do animal quase esmaga os meus dedos, enquanto se
aproxima o enfermeiro vestido de inverno, sem uma gota de luz no semblante,
bordando um sorriso de falsa primavera, o mundo girando, girando e me
devolvendo o outono que ele traz na pontinha da agulha.
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