domingo, 27 de maio de 2012

A sinuosidade da escrita divina


Alguns religiosos, principalmente os padres de paróquias do interior, creditam a seca que ora assola o sertão nordestino a um castigo divino. Supondo que haja fundamentos nas fundamentações fundamentalista dessa gente apocalíptica, Deus misericordioso iguala os pecadores e atinge a iniquidade sertaneja com o maior dos castigos: a sede e a fome. Lançasse uma bola de fogo sobre os ímpios e estaria tudo resolvido. 

No Velho Testamento, em “Juízes”, Deus criou um enredo de violência, amor e traição com o único objetivo de baixar a crista dos filisteus. Ele, contrariado com a desobediência do seu povo escolhido, tornou-o escravo dos filisteus como penitência de quarenta anos. Enquanto os judeus eram redimidos na chibata filisteia, Deus criou uma história paralela tendo Sansão como o salvador da pátria.  A juba fortificante, a vida desregrada, a traição de Dalila depois de sete semanas de amor, foi tudo maquinação divina para colocar Sansão dentro de um banquete filisteu sem ser convidado.  E a nata filisteia sucumbiu à ira divina sem saber que tudo estava escrito nas estrelas e que a festa, na verdade, era para se comemorar o fim dos quarenta anos de servidão judaica.

Deus escreve certo por linhas tortas, diz o ditado, porém a sinuosidade das linhas às vezes é muita penosa.  Depois de muito matutar, cheguei à conclusão de que a seca que assola o Nordeste, se realmente for castigo divino, então o desejo de Deus é o de acabar com a descaracterização da festa do santo mais popular da região: São João. Antigamente o São João era comemorado ao som do forró pé de serra, regado a licor de jenipapo e de comidas típicas. Nos últimos tempos a coisa desandou para a safadeza de shows eróticos e milionários que em nada tem a ver com o evento. Dupla sertaneja, reggae, axé music, technobrega e o escambau, enquanto artistas do cacife de Dominguinhos, Santanna, Flávio José e outros bons forrozeiros ficam de fora. O que é que Adriana Calcanhoto tem a ver com forró? Um tal de Luan Santana, a versão masculina da Barbie sertaneja e presença garantida nos palcos joaninos de algumas prefeituras miseráveis, cobra um cachê de quinhentos mil reais para fazer duas horas de show. Ora, se Ele enviasse uma bola de fogo sobre a tríplice aliança da mídia corrupta, os empresários safados e os prefeitos espertos, tudo se resolveria sem traumas e sem angústias, além de livrar o mundo da indecência humana.  

A farra com as ervas daninhas da música brasileira não teria importância se a conta não fosse paga com o minguado dinheiro de prefeituras de cidades pobres de Jó, algumas sem posto médico nem escola decente. Quanto mais pobre, mais metida em mega shows. No ano passado, uma pequena cidade do sertão norte da Bahia contratou uma dupla de dois sertaneja para fazer o show na noite de São João. Antes de fazer o show, a dupla mandou medir o palco. Depois das medições, a sertanejada alegou que o palco tinha um metro a menos do combinado em contrato, colocou a viola no saco e pegou a estrada de volta. O cachê, algo em torno de trezentos mil reais, pago dias antes, desceu pelo ralo do desperdício.

Felizmente, nesse mesmo ano, o prefeito da minha terra, que era um megalomaníaco musical, foi abduzido pelo bom senso e contratou apenas artistas ligados ao mês joanino, cujos cachês estavam dentro da razoabilidade financeira dos patrocinadores. No São João deste ano, por causa da seca, o arrasta-pé será por conta dos sanfoneiros locais.

Lá em cima, além das nuvens, no próximo mês São João deverá encher os olhos de satisfação, pois, a exemplo do velho Junco, na maioria das cidades atingidas pela sequidão, os festejos juninos serão à moda antiga, do povo dançando ao som da sanfona, da zabumba e batendo nas portas relembrando a pergunta que nem o tempo fez o povo esquecer:

- São João passou por aqui?


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