terça-feira, 25 de agosto de 2009

SOLDADO DA PÁTRIA


Uma coisa é certa: o Sargento Couto nutria uma admiração secreta pelo meu irmão Antonio Torres, um comunista que serviu sob suas ordens e, por isso, não deixou meu irmão Raimundo e eu pegarmos no pesado quando chegou a nossa vez de vestir a farda verde-oliva. Minha homenagem ao velho sargento, que, se ainda não morreu, deve ter chegado a general. Mas isso não tem nada a ver com a história abaixo.




Ao completar os 18 anos me engajei nas Forças Armadas Brasileiras. Não por livre e espontânea vontade, mas por força do patriotismo de Olavo Bilac, o patrono dos Reservistas, que tornou o serviço militar obrigatório sinônimo de amor patriótico. 

Servi o Exército Brasileiro como um garbo e orgulhoso infante. Em tempos de exceção, não bastava ser: tinha que parecer. Um soldado tem que ter orgulho da farda que veste, dizia o manual. Do contrário, penaria nas prisões da vida como perigoso comunista. 

Os generais viam inimigos em tudo que era parte. Os quartéis viviam em contínuo estado de alerta. Após longas horas de treinamento sob sol escaldante, o recruta Josafá desmaiou de cansaço e fraqueza. Ao cair, o fuzil bateu numa pedra, lascou a coronha e a vida do soldado Josafá: a verde-oliva abriu inquérito policial, chamado de IPM, acusaram-no de estar a serviço de Moscou, colocaram-no em um camburão e sumiu sem deixar vestígios.

O movimento hippie fervilhava e eu navegava ao sabor da onda do “peace and love”. Paz e amor, bicho! Cabelo ao ombro, barbudo, calça jeans e jaqueta de couro, cheguei ao quartel enrolando um baseado. Apresentei-me ao Comandante.

- Recruta, você tem meia hora pra aparecer aqui feito soldado! – ordenou o sargento.
- E como é ser soldado, Capitão? - perguntei inocentemente e ele ameaçou me prender. Pensou que eu debochava. Fui direto para a barbearia onde rasparam minha cabeleira. Minha sagrada barba foi ao chão em passe de mágica. À noite, me liberaram para dar as boas novas aos parentes e amigos. “Com orgulho!”, ordenou o sargento.

Minha mãe ficou assustada quando me viu entrar em casa na maior desenvoltura:

- Que deseja, moço?
- Qualé, velha, não tá me reconhecendo?!
- Quem é você?

Santo Deus, minha própria mão não me reconhecia! Era o fim da picada. Eu, um soldado da Pátria, e a minha mãe me rejeitava. Será que ela era uma comunista?! 

Carmem Lúcia dizia me amar perdidamente. Eternamente. Mais do que Julieta a Romeu. Repetia seguidamente: “I love my life because my life is you”. Escreveu essa frase na calça jeans, à altura da coxa esquerda. E eu acreditei em suas palavras, pensando na maciez aveludada de suas pernas. O delta das coxas realçado pelo jeans desbotado deixava vestígio de que estava a milímetros do paraíso.

Quando me viu fardado de soldado da pátria, terminou o namoro, de supetão, sem direito a apelação. Ao indagar os motivos, respondeu cinicamente que amara um hippie, e não, um soldado. Se ao menos fosse da Aeronáutica, dava-se um jeito, disse. Ah! Vagabunda! Tive vontade de pegar o fuzil e descarregar em sua cabeça e depois me suicidar. Mas não podia sair armado do quartel. Optei por levá-la presa, como ativista do MR-8. Ela ia ver com quantos paus se fazia uma canoa. No meio do caminho parei e pensei na besteira que estava fazendo. Como soldado da pátria não podia ter relações com uma guerrilheira. Ia ser preso também, como cúmplice. E torturado, até confessar quem era o meu contato em Cuba. Ou em Moscou, como fizeram com o recruta Josafá. 

Desisti da idéia. Soltei a cachorra no meio da rua e entrei num boteco para afogar as mágoas. Enchi a cara e passei a noite num puteiro. As putas me amaram como amam as abelhas os zangões. Só não me mataram porque eu era um soldado da Pátria. Elegeram-me o maior amante do mundo e não me cobraram nada. Se assim não fosse, levaria todas presas, como comunistas.

Apaixonado, fiz uma poesia cheia de mensagem erótico-romântica em papel de carta amarelo e florido. Desenhei um coração verde-amarelo conforme mandava o manual do soldado. Subornei o sentinela e fui ao encontro da bandida na saída do colégio. Pedi uma chance. O Serviço Militar era só um ano. Findo o prazo, voltaria a ser um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Ela vacilou. Entreguei a poesia e uma caixa de bombons. Primeiro ela abriu a caixa de bombons. Leu a poesia em silêncio, com a emoção de quem lê uma receita de bolo: 

EU GOSTO
Ou: ode da desordem

Eu gosto
Da gata.
Não a felina
Que faz miau
Apesar de arranhar quanto.

Eu gosto
Do churrasco.
Não dos gaúchos bigodudos
E suas exuberantes bombachas
Dançando na vara de pau.

É uma gata.
É um churrasco.
Autêntico filé de miau.
É o palito que nos une
Em prenúncio de união das carnes.

As coxas,
As sobrecoxas,
O sobre sob o sub
E o coração arfante
E o meu peito cá chiando
E se pudesse amá-la-ia,
Mas não posso amar ela.

Assim, ó meu doce amor,
Meu sovaco de bolor,
Estes versos tão sublimes
Dizem o que não entendo
Nem pretendo engolir o incompreensível
Esperando que um dia entendas tu
Que nada tive a ver navios
Onde amarrei meu jegue
Nem com o roubo do trem pagador
Ou a fuga de Ronald Biggs.

Apenas subi na árvore
Do arcadismo e suas métricas
Para ver o meu amor passar...

Levei uma eternidade para subir.
Vi os bois de Dirceu pastando
E a minha Marília não passou.
Mandou recado dizendo que ia ao encontro
De Tomás Gonzaga na Ilha das Cobras.

Disse cobras e lagartos.
Cancelei a consulta
Com o alferes Tiradentes
Que iria extrair meu dente
Para ir ao seu encontro.
Agora o dente dói e eu gemo
Com a dor de corno do momento.

E estou aqui, zanzando acolá,
Pronto para amá-la sob o clarão
Da lua nova em eclipse solar...
Amarela como a abóbora
Que matou a fome na seca do Ceará;
E redonda como o tamanco
Que feriu a mãe do jegue
Amuado e sem jeito como este poeta.

Terminou a leitura e me olhou ruborizada, como se eu fosse o único poeta do mundo. Suspirou fundo e disse que havia evidentes vestígios de plágio. Neguei. Mostrei o rascunho cheio de rabiscos e versos riscados. Palavras manchadas de tinta como a mácula da acusação. Ela atacou encolerizada:

- Cachorro mentiroso, pensa que sou burra?! Esta é uma poesia de Manuel Bandeira!




sábado, 22 de agosto de 2009

Dia do Folclore



Hoje, 22 de agosto, para quem não sabe é o Dia do Folclore






I


Lá nas terras dos Dantas

Não tem rio nem tem anta.

Tem o Cruzeiro dos Montes

Em plena linha do horizonte.

Reinam cavalos encantados

Caiporas e sacis aboletados.

O zumbi e o seu pio estridente

Chupando o ouvido do imprevidente.

Não é folclore se falar do fogo-fátuo

Muitos foram os que o viram de fato.

Mulher de padre vira mula-sem-cabeça

A vagar pelo mundo tão-logo anoiteça.

O filho que da mãe não tem gratidão

É o lobisomem da Sexta-Feira da Paixão.

O saci vive na mata a azucrinar

O caçador que ousa lhe perturbar.

O “vulto” pode ser a própria sombra

Do sertanejo que com tudo se assombra.


II


Lá na terra dos Dantas

Não tem rio nem tem anta.

Tem o mito e suas lendas a confundir

O pio da coruja com o canto do zumbi.

A caipora precisando de fumo

Para o caçador não perder o rumo.

A mula-sem-cabeça correndo sem parar

Atrás de um padre para se confessar.

O lobisomem em noite de lua cheia

Espojando-se no campo de areia.

O saci querendo seu cachimbo acender

E o caçador um fósforo deverá oferecer.

O fogo-fátuo e sua breve aparição

Em flashes de luz de assustar o coração.

O “vulto” que não parece ser perigoso

Mesclando folclore e estória de trancoso.


Assim é o imaginário popular do sertão

Mitos e lendas fervilhando em profusão.






sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O ECLIPSE, SEGUNDO MINHAS RECORDAÇÕES









Eu não vi por que nasci na década seguinte. Mas quando o meu pai me contou o fez com tanta perícia que tive a sensação de ter vivido o momento. O eclipse total do Sol, nos anos 1940, causou o maior bafafá no simplório povo do arraial do Junco e seria cômico se a ignorância da época não fosse trágica. Era uma manhã de intenso sol e de um céu anil sem nuvens, como é o céu de lá em todos os tempos, independente de ser dia de eclipse ou não. Comunicação precária, as notícias chegavam a passo de pangaré. Quando chegavam. Era impossível saber em tempo real o que acontecia além de suas divisas.

A economia local era voltada para a agricultura de subsistência. No instante do grande fenômeno a maioria do povo se encontrava na labuta, no meio da roça, chapéu de palha na cabeça e corpo moído pelo calor. De repente, o apagão do Sol. O dia mergulhou nas trevas e o céu se enfeitou de estrelas; o ciciar das cigarras cedeu lugar ao vagalumear. Os pássaros, em revoada, corriam para seus ninhos.

Quem apagou o Sol? Seria o Apocalipse, conforme as Sagradas Escrituras? Alguns correram para casa e se esconderam debaixo da cama, chorando como crianças assustadas. A maioria, no entanto, correu para a cidade, invadiu a igreja, e começou a rezar, pedindo misericórdia e implorando perdão a Deus. Ninguém queria provar a Danação Eterna. O padre, também pego pela desinformação e sem um superior hierárquico para se confessar, pediu perdão ao povo pela sua fraqueza: enquanto os fiéis cumpriam fielmente as duras penitências da vida, o representante de Deus fornicava na sacristia com uma beatinha, filha de um pacato fazendeiro.

– Perdão, meus irmãos! – implorou, chorando.

A multidão teve vontade de esgoelar o padre, mas o fim do mundo se aproximava e ninguém queria correr o risco de levar esse peso para a balança das más ações. Ele que se acertasse diretamente com a Providência Divina. Afinal, todos embarcariam juntos no Trem da Eternidade e cada um que prestasse contas dos seus atos.

Como todos nós sabemos o mundo não se acabou, o Sol voltou a brilhar, as cigarras cantaram com mais intensidade, os pirilampos apagaram as luzes sem entender o porquê de a noite durar tão pouco, e o povo voltou para casa sem atinar com o acontecido.

O padre não pôde se queixar da sorte. O pai da moça desonrada não se encontrava na igreja quando ele abriu o bico em confidências de arrependimento. Correndo mais rápido do que as más notícias, arrumou a mala e picou esporas, sem deixar rastro nem notícias de seu destino, nem mesmo um recado para o bispo, seu chefe imediato, ao qual devia cega obediência eclesial.

Sabe-se apenas que levou na garupa a sua fiel beata. E todo o dinheiro do dízimo, ofertório e doações para reforma da igreja.






quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Do Fundo lá de Casa


Por Cristiana Alves





Foto: Sertão de Canudos - Pierre Verget



Quando eu era criança, do fundo de minha pequena casa de madeira e telhado de Eternit, eu via o mundo mais bonito. Por ser apenas um menino talvez eu tivesse o dom de ver além das cercas do quintal, além da linha do horizonte, usando a imaginação.


Hoje conheço outros horizontes, viajei além das serras, carreguei comigo as lembranças da criança que atravessava o açude a nado, tocava numa banda improvisada nas areias da prainha, se jogando da galeria como um pássaro e mergulhando na água como um peixe, sendo apenas um menino, um sonhador. Eu podia ser um super-homem e resolver todos os problemas do meu mundo sofrido, árido, faminto, e mesmo assim, bonito.


De volta ao lugar onde minha história se inicia, sinto prazer em rever o ponto de partida da minha família, sinto orgulho de mainha, saudades de painho, recordo as minhas estripulias e as de meus irmãos, e de quando minha irmã me defendia das palmadas de mainha.


O menino de ontem cresceu, o homem de hoje mostra aos amigos o paraíso perdido, o castelo desencantado, os sonhos fulgidos que feneceram sufocados pela realidade, mas encontra no seu ponto de partida novo estimulo para sonhar. Ele precisa olhar além do campo de futebol, ver além do açude, além dos morros longínquos nos quais a terra e o céu se limitam diante dos humanos olhos, naquela linha imaginária a qual chamamos linha do horizonte. Esse menino sou eu , esse homem sou eu, e que, às vezes, ainda me sinto perturbado com imagens e dores do passado.


Esse homem tem andado por aí, ora chateado, ora aflito, sem paciência, incapaz de ficar parado e incapaz de decidir o que quer em meio ao caos. É mais corajoso que audacioso. Esse homem esqueceu, muita coisa do seu mundo de criança, mas há muitas outras que carrega na lembrança, que aprendeu neste lugar, que não esqueceu, coisas que ficaram obscuras e forte dentro do seu peito.


Canudos, esse homem pode não parecer um bom filho, mas ele é teu filho, é um dos teus guerreiros no século XXI, no qual o Conselheiro é uma figura lendária e a guerra de Canudos, assunto de universitários. Esse homem é um dos teus guerreiro e, ainda, pode comparecer diante de ti gritando, sem glória, mas sem remorso, como naqueles dias que do fundo no minha casa eu jogava bola no pequeno campo de futebol, sonhando que conquistaria o mundo, já que ele é uma bola e com bolas eu sempre soube driblar.




terça-feira, 18 de agosto de 2009

A MUSA E O POETA PANTANEIRO

De Musa



Zé do Mato não entendia os sorrisos insinuantes e provocativos de sua colega de Repartição. Ou então entendia e se fazia de sonso, para evitar complicações futuras. Falava-se a boca miúda que muitos se finaram por se deixar envolver pelo canto da sereia. Era a mulher tipo “caixão e vela”.

Doutor Zé, conforme tratamento dos subordinados, era o chefe burocrático de uma dessas secretarias feitas para torrar a paciência do cidadão. Não havia muita coisa a ser feita, a não ser ficar atento para que os funcionários sob o seu comando não relaxassem no zelo ao dever. Quanto mais complicar a vida do contribuinte, melhor seria para o prefeito, pois assim o povo passaria o seu tempo na fila da burocracia e não teria tempo de falar mal de sua administração. Às vezes complicava-se tanto que era necessária a intervenção do próprio prefeito para desemperrar a máquina administrativa em prol do contribuinte que, por via de regra, ficava devendo favor ao chefe do executivo municipal. E, no interior, dever favor a político significa votar nele na eleição. Ou em seus indicados.

A colega sedutora de Zé do Mato era uma beldade que devia muitos favores ao prefeito e, por isso, trabalhou duro como cabo eleitoral na eleição para pagar a dívida. Não tinha hora para comer, beber ou dormir. Sempre na luta, na labuta, à frente do principal comitê eleitoral. Eleito, os papéis se inverteram e o prefeito ficou devendo favor à sua ex-favorecida. Como político que deve favor a cabo eleitoral, paga arranjando uma boquinha no cofre da viúva, ela ingressou no serviço público municipal no cargo de chefe-de-gabinete da Secretaria da Burocracia, cujo diretor administrativo era o zeloso Zé do Mato. E assim, burocraticamente, ela tratava de seduzir o seu colega, sabendo que um dia alcançaria o seu intento.

O que impedia Zé do Mato de jogar as cajás em cima da sua colega e colocar as coisas em pratos limpos era o simples fato de a mesma ser casada. E o seu marido tinha fama de valentão. A fama vinha de outros tempos, desde os dias que Lampião andava pelo Sertão, matando o povo de medo e “macaco” a tiro de parabélum. O pai dele, ou seja, o sogro da chefe-de-gabinete, gozava da fama de ser mais brabo ainda: marcou uma peleja com o próprio Lampião e disse que o cangaceiro fosse com quantos homens quisesse que ele ia desarmado e com um braço amarrado. No dia aprazado da pendenga, Lampião não confiou. Antes de entrar na cidade mandou um espião certificar-se de que o oponente tinha cumprido a palavra. Uma hora depois o cangaceiro deu conta do recado:

– Realmente, meu capitão, ele está lá na praça com um braço amarrado, mas observei que ele tem um canivete no bolso.

Lampião fez meia-volta e mandou dizer que a peleja estava desmarcada.

Seria com o filho desse cidadão que prestaria contas caso fosse flagrado com a mulher dele. Ou que ela interpretasse mal as suas conjecturações e desse com a língua nos dentes. Teria que se esconder pelo resto da vida. Ou aventurar-se a morrer de porrada, de faca ou de tiro.

Zé do Mato, além de servidor público exemplar, era um poeta nato. Escrevia maravilhas de versos e prosas, principalmente depois que se satisfazia nas onças, galinhas, cabras ou mulas. Quando a coisa apertava, o jeito era abrir a Playboy e se satisfazer na mão grande, sonhando uma trepança com aquela mulherada. “Êta gostosura! Ainda morro disso!” – exclamava extasiado o nosso herói.

A chefe-de-gabinete, cada vez mais de decote exagerado, se debruçava sobre a mesa do diretor administrativo para ler as suas poesias, deixando à mostra dois belos mamilos, divinamente redondos e durinhos, com os bicos empinados e afiados, querendo furar a blusa. Usava sabonete de canela e a afrodisíaca colônia de patchouli. Zé do Mato sentia que não ia resistir, ia enfiar a mão na jaca, mas quando se lembrava da fama do marido, seu membro esmorecia e acabava o entusiasmo. E ela, dengosa, provocava:

– Ah, Zé, faça uma poesia pra mim, faça!

Além do cargo burocrático, Zé do Mato era cunhado do prefeito e homem de sua inteira confiança. Por ser um letrado, acumulava a função de tesoureiro e era ele quem fazia o pagamento dos funcionários no final do mês. Como na cidade não havia agência bancária, ele sacava o dinheiro da folha na agência do Banco do Brasil, na cidade vizinha e, no outro dia, pagava em espécie e os funcionários assinavam a cópia do contracheque dando conta do recebimento.

Quando saiu do gabinete do prefeito, com o cheque da folha de pagamento na mão, ele cruzou com a chefe-de-gabinete, que lhe deu uma escancarada piscadela, se insinuando derretida. Ele disfarçou o mal jeito, entrou na sua sala, pegou a pasta 007 e, no momento que passava a chave na porta, sentiu uma mão feminina apertar a sua bunda e o dedo indicador cutucar a onça com vara curta. Ele soltou um longo e profundo suspiro. Não ia resistir. Aquilo não era mais uma provocação, mas um convite descarado para prevaricar. Ela, sorrateira, sussurrou um apelo de fêmea no cio: “Me leva com você...” O hálito quente da fêmea gemendo no ouvido e a mão roçando a sua bunda, fizeram-no abrir a guarda e relaxar. Não havia como resistir, por mais macho que fosse o marido e mais frouxo fosse o ricardão. Realmente, não havia como resistir.

Na volta do banco, ela o convenceu a passar em sua casa. Anoitecia e o seu marido estava viajando, só ia voltar no outro dia à tarde. Eles teriam tempo de sobra para que o poeta fizesse uma, não, várias odes ao amor libertino, vivendo cada verso do poema inspirado nos odores do Amor e do Sexo. Literalmente ele ralaria em seu regaço, se afogaria naquele lago transbordante de sensualidade e mamaria naquelas maravilhosas e divinas tetas, sugando todo o néctar do amor.

Entorpecido pelo tesão, o diretor administrativo capitulou. Sem burocracia e sem melancolia. ¡Que venga el toro! Estacionou distante da casa e caminharam sorrateiros, ladinos: ela, na frente; ele, atrás, para não dar na vista. A vizinhança é fogo, ainda mais em cidade pequena. Se caísse na boca do povo fatalmente chegaria aos ouvidos do marido.

Quando se preparava para fundir o parnasianismo com o romantismo, buscando inspiração no Gênese, e, no exato instante em que Eva se preparava para comer a maçã oferecida pela serpente, uma pancada vigorosa na porta e uma voz abusada chamando pela mulher.

– Meu marido! – gritou Emma Bovary tupiniquim. Zé do Mato pulou da cama e disparou pela porta dos fundos, vestido tal qual Adão quando fugiu do Paraíso, a cem quilômetros por hora, livrando-se magistralmente dos obstáculos: muros altos e cheios de cacos de vidro, cachorro no quintal do vizinho, um galinheiro mais na frente e um vigia atento, mandando bala de sal. Chegou a casa arfando e ensanguentado, indo direto para o banheiro cuidar dos ferimentos. Por sorte não havia ninguém no quintal para dar testemunho de sua lamentável situação. E ainda ter que dar explicações.

No outro dia chegou a Repartição mais tarde que o contumaz. O atraso deveu-se ao tempo que levou disfarçando os ferimentos e pensando em uma desculpa a dar, caso alguém perguntasse. Antes de chegar a Prefeitura, viu a fila dos funcionários para receber o salário do mês e levou a mão à testa, preocupado. No susto e na carreira, havia deixado a pasta com o dinheiro do pagamento em cima do sofá, na casa da chefe-de-gabinete. “Tomara que ela tenha visto e tenha trazido”, pensou esperançoso. Que desculpa ela teria dado ao marido para justificar a pasta com o dinheiro da Prefeitura em sua casa? E as suas roupas, será que ele viu?

Foi direto ao gabinete do secretário pegar a maleta com o dinheiro. Lá fora os funcionários começavam a protestar por causa da demora. Lá dentro só havia o secretário. Nenhum sinal da chefe-de-gabinete. Perguntou por ela.

– Ô, rapaz, então você não soube?!

– Não soube o quê?

– Ela, ontem, ganhou uma bolada na Loteria, pediu demissão da Prefeitura e viajou ontem mesmo, sem o marido, que chega hoje de viagem e vai ficar uma fera quando souber do acontecido. Partiu sem deixar rastro, dizendo que não voltaria mais. Deixou o número de uma conta bancária e pediu pra que você efetuasse o depósito do seu saldo de salário juntamente com o salário do mês!