terça-feira, 19 de julho de 2011

Maurício Melo Júnior - O reino do invisível

Foi assim. Um auditório repleto, coisa de difícil enfrentamento. Neste caso, no entanto, estamos num estágio ainda pior. Um auditório repleto de crianças, quase adolescentes ávidos para trucidar o coitado de um escritor desguarnecido de imaginação e esperanças. Uma horda de canibais modernos vazando curiosidade por todos os poros. O desespero aumentou quando percebi que era eu a vítima do delírio famélico daquela gente miúda, liliputianos a transpirarem sangue pelos olhos. Meu desespero aumentou quando descobri que não transitava no espaço do onírico. Na mais cruel das verdades percebi que não havia saída de emergência. Juro que invejei Hans Staden.

Como um herói despido, pisei o primeiro degrau da escada. Entrei no palco e, ateu convicto, apelei para o Senhor das Esferas – Seja o Deus quiser. E Ele foi generoso com este seu filho desgarrado. As crianças e adolescentes ansiavam que eu falasse de literatura, criação literária, essas coisas que edulcoram nossas vidas tão insossas.

Por que o senhor escreve?

Diante da primeira pergunta não temi, ao contrário desandei um rosário. Escrevo por um motivo muito simples: sou, em verdade, um grande mentiroso, e isso pode ser uma imensa mentira, afinal quem em sã consciência acredita em um embromador? Fato mesmo, buscando os cânones da veracidade, é que a fama de escritor é mais salutar que a de simulador, daí escrevo todas as minhas inexatidões e atendo convites para parolar com pubescentes hodiernos.

O diálogo não se deu desta maneira, afinal muitas das palavras aqui empregadas apanhei agora no dicionário, esse companheiro de horas infindas, mas o tom foi este mesmo. Além do mais quem falar daquela maneira, num arremedo danado do velho Camões, merece bons safanões, imensos apupos.

Esgotadas todas as agressões possíveis aos dicionários, voltemos à frieza dos fatos. Nós escritores – tenho a pretensão de ser um deles – somos vendedores de mentiras. Durantes horas, dias, meses, anos convivemos com pessoas que não existem. Mesmo assim conversamos com elas, compartilhamos todas as suas angústias, todas as suas esperanças. Choramos suas dores, rimos suas felicidades. E se por ventura algum desavisado aventureiro desdizer a mais vil e canalha destas criaturas nos tomamos de mágoas maternais e defendemos estes seres imateriais como quem se bate em favor de um filho.

Somos estranhos, reconheço.

O danado é que quase sempre nos apanhamos em dúvidas: Isso de fato aconteceu?

Ainda outra hora lembrei uma tarde vadia na Câmara dos Deputados. Sempre que conseguia estes espaços corria para a sala onde trabalhava Luiz Berto. E ficávamos ali a falar da vida alheia, mas posando de intelectuais a discutir os destinos artísticos da nação. Foi então que surgiu uma bela e jovem vate abraçada às suas produções. Era de fato uma moça interessada nos meandros da literatura tanto que, informaram-me, cursava letras numa faculdade qualquer. Berto leu as estrofes e, com uma incolor pergunta: o que você acha?, passou-me as folhas. Li. Levemente constrangido sentenciei: Lembra-me o poema Menina e Moça, de Machado de Assis. E a novel bardo pergunta com serenidade: Quem é Machado de Assis?

Terá sido isto verdade?

Vivo com meus comparsas o mundo das inverdades, mas mentimos apenas para a folha em branco. Ou a tela em branco. Resguardamo-nos numa ética que pode parecer estranha. E nos alimentamos de fantasias amando a veracidade, por isso desconfiamos sempre da vida. Ela nos espreita e nos surpreende em cada nova esquina. E há fatos que contamos desconfiando de nós mesmos, afinal a vida também é uma grande mentirosa.

Há tempos, num tempo onde ganhava o necessário para a sobrevivência dando aulas numa faculdade, fui abordado por um rapaz. Sou seu aluno, me garantia. Minha memória não chega a ser uma maravilha, mas também não costuma falhar com freqüência. E como tinha outras atividades profissionais, era fácil lembrar o rosto de cada freqüentador das poucas salas onde ministrava a ciência do jornalismo. Aquela cara, tinha certeza, me era totalmente desconhecida. E o moço insistia: sou seu aluno.

Depois de um breve interrogatório descobri o fato. O rapaz havia se matriculado em minha disciplina, mas já estávamos no final do semestre e ele não comparecera a nenhuma aula. E fazia um pedido singelo, que lhe aplicasse um teste capaz de o aprovar na matéria, pois, segundo me garantia, mesmo faltando a todas as aulas, conhecia em profundidade a matéria.

Que diploma de jornalismo eu poderia dar aquele moço?

Radicalizei. Fale-me sobre Ionesco.

Sobre quem, professor?

Eugène Ionesco.

Diante da cara de espanto do aluno retruquei. Ionesco, um dos pais do teatro do absurdo, era romeno e escreveu um clássico, A Cantora Careca, onde durante todo o espetáculo se procura a tal cantora que nunca aparece, pois simplesmente não existe. Meu caro, você é minha cantora careca. Você não existe.

Vivemos num mundo de delírios, mas procuramos sempre o caminho da sinceridade. É que ler mentiras nos parece um exercício bem honesto.


sábado, 16 de julho de 2011

O bê-á-bá de Brasília: dicionário de coisas e palavras da capital - Por Edna Lopes



Meu caro Marcelo,

Embora não tenhamos nos avistado dessa vez, quero lhe agradecer a companhia bem humorada nesses meus dias na Novacap (já não tão nova assim). Tomar chá de cadeira em aeroporto, subir e descer de avião, se a gente não está em boa companhia fica difícil. O seu livro O bê-á-bá de Brasília: dicionário de coisas e palavras da capital foi mesmo uma ótima companhia e me faz dar boas risadas, só não sei se meus companheiros de poltrona acharam graça em viajar com alguém que enfia o nariz num livro e ainda ri sozinha. 

Brasília é uma cidade especial e mesmo trabalhando um tanto quando estou por aí, aproveito para rever amigos e foi uma pena que você perdeu a “Noite da tapioca das Alagoas em Brasília” em casa dos queridos Iara e Maurício, mas entendi seus motivos. Fica para a próxima, certamente.

Depois que li o livro quero recomendá-lo. Brasilienses, candangos, gregos e baianos reconhecerão seu bom humor, seu espírito livre e por vezes galhofeiro e também o seu amor por esta terra que o acolheu com tanta generosidade. Mesmo baiano, sua candanguisse da gema do ovo de codorna é explícita! 

E dentre tantas boas resenhas que li vou destacar abaixo a que achei mais representativa do conjunto da obra. Cá com meus botões fiquei pensando o ótimo serviço que seria um Guia de Brasília, com o olhar curioso de quem chegou e ficou, de quem ama e respeita sua diversidade cultural e sua atitude blasé de metrópole. Que tal?

Dicionário de Brasília é um glossário irreverente sobre a capital
Fonte: Revista Nós
*Publicado por Gregory Cotrim em 2 de junho, 2011
Brasília já possui um vocabulário para chamar de seu, ainda que seja um linguajar bastante influenciado pelas pessoas de fora, que representam a metade da população. Em Brasília, edifício é bloco; bicicleta é camelo ou magrela; e ônibus tem ao menos quatro “apelidos” – baú, Davi, caixão e GOL (grande ônibus lotado). Em Brasília, micro-ônibus é zebrinha, radar é pardal, retorno é tesourinha, térreo é pilotis, periquito é maritaca, tiara é diadema e meleca é um pequeno adesivo que se cola no peito.
(...)
A obra não se limita às gírias, palavras e expressões do cotidiano do Distrito Federal. Ela também aborda, de um jeito informal e irreverente, os mais diferentes aspectos da capital do país. Verbos como “arrudiar” e “abadiar”; apelidos de locais, prédios, monumentos e vias públicas (Cascata, Água Mineral, Prendedor, Bolo de Noiva, Túnel do Tempo, Torres Gêmeas, H, Eixinhos); e siglas, muitas siglas (QI, SQN).
O livro também mostra outra característica brasiliense – a mania de abreviar as palavras: véi, cachu, refri, Taguá, Ban-Ban, cerva, Piri, mó, fi e até fi-in são alguns dos termos usados pelos jovens.
Fatos, frases, palavras, gírias, expressões, coisas típicas, curiosidades, bizarrices. São 884 verbetes, numa espécie de Brasília de A a Z. “Este livro é uma declaração de humor a Brasília”, diz o autor, o jornalista Marcelo Torres.
Marcelo nasceu na pequena cidade de Sátiro Dias-BA, a 210 km de Salvador; com 15 anos de idade foi estudar em Salvador, onde se formou em Jornalismo, pela Universidade Federal da Bahia. Funcionário de carreira do Banco do Brasil, passou em seleção interna em junho de 2002 e veio trabalhar na Diretoria de Marketing e Comunicação, em Brasília, onde foi editor de uma revista interna. http://brasiliamaranhao.wordpress.com/2011/06/15/
SERVIÇO

“O bê-á-bá de Brasília: dicionário de coisas e palavras da capital”
Editora Thesaurus, 96 páginas
Site: www.thesaurus.com.br
Contato com o autor: (61) 9962 6035
marcelocronista@gmail.com

Obs. Marcelo Torres é primo legítimo de Tom e Vinícius, portanto, meu primo torto.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Cineas Santos - Pato, Ganso, Catatua e Caterva

A seleção brasileira de futebol participava de uma competição e, a exemplo do que está ocorrendo agora, ia muito mal das pernas. Certeiro como uma bala perdida, Millôr Fernandes disparou: “Se eu fosse tratado como esses rapagões e não pintasse pelo menos uma Capela Sistina por semana, eu me sentiria um incompetente”. Mais que uma bela sacada humorística, o filósofo do Méier botou o dedo na ferida: nunca antes na história da humanidade (com a devida licença do Lula), os jogadores de futebol, digo, as estrelas do futebol receberam tratamento tão diferenciado. Hoje, mais que atletas, esses bravos rapazes são tratados como deuses. Além de salários astronômicos, têm treinadores, fisioterapeutas, massagistas, nutricionistas, psicólogos e, principalmente, mulheres. Mulheres de todas as cores e versidades, com a prevalência das louras oxigenadas, naturalmente. As chuteiras, por exemplo, são moldadas e construídas sob medida para se ajustarem aos pés desses seres iluminados como luvas de cirurgião. Em campo, com raríssimas exceções, comportam-se como bisonhos cabeças-de-bagre: erram jogadas que os moleques entanguidos, nos campinhos de monturo, executam com eficiência e alegria. O que estaria acontecendo?

Para um entendido, “o futebol modernizou-se e passou a exigir desses superatletas, além de excelente preparo físico e técnica requintada, atitude”. Eis aí a palavrinha mágica: atitude. Com ela, podem-se abrir até as portas do Valhala. Dia desses, ouvi de um desses sábios de plantão o seguinte comentário: “Hoje, o Garrincha seria um estorvo num time como o Barcelona, que valoriza o futebol coletivo e de resultado”. Falta-me autoridade para contestá-lo. Particularmente, o que me surpreende é o fato de esses meninos ricos ainda encontrarem algum alento para jogar futebol, esporte que, às vezes, exige “sangue, suor e lágrimas”. Tomemos o exemplo de Neymar, recém-coroado pela Veja como “REYMAR. Aos 19 anos de idade, louvado como “um craque da linhagem de Pelé”, o garoto fatura pelo menos um milhão de reais por mês. Segundo o publicitário Washington Olivetto, “Neymar é o melhor exemplo do fute-pop-bolista, cruzamento de futebolista com artista pop , que une a habilidade de um craque com a irreverência de um artista. Esse perfil tem uma abrangência muito grande de negócios”. Tá explicado, não? O moleque entra em campo como um verdadeiro outdoor. Independentemente do que fizer durante o jogo, precisa sair bem na fotografia. A revista mais endireitada do país testifica: “Neymar não é um fenômeno só nos gramados. Dono de um senso de marketing inato, inventou um estilo e diverte-se manipulando a própria imagem (...), fica diferente de todos, todo mundo o adora, e ele é chamado para vender de celular a mortadela”. Consta que este novo Midas tem mais de um milhão de seguidores no Twitter. Com tantos penduricalhos a exibir e tantos negócios a administrar, é possível jogar futebol? Tenho minha dúvidas.

Estou escrevendo este arremedo de crônica antes do jogo entre Brasil e Equador, cujo resultado será decisivo para a permanência da seleção na Copa América. Seja qual for o placar da partida, mantenho tudo o que afirmei aqui. Nunca imaginei viver o bastante para ver um técnico da seleção brasileira protagonizando um comercial de cerveja. Não é preciso ser especialista em nada para saber que bebida alcoólica não combina com esporte, a não ser com arremesso de bagana. Sem perder a fleuma, o senhor Mano Menezes tenta o que parece impossível: fazer o Ganso e o Pato alçarem voo. Quanto a Neymar, com seu cabelo moicano, entrou na competição como rei, mas já está sendo carinhosamente apelidado pela galera de “cacatua ciscadeira”. Pena que já não se leiam os poetas: “A mão que afaga é a mesma que apedreja”.


quarta-feira, 13 de julho de 2011

O brega e a juventude

Hoje, remasterizando uns discos de vinil, os chamados “bolachões”, me reencontrei com a breguice de antigamente, que, perto das breguices de hoje, soam como músicas eruditas. Pelo menos, naqueles tempos, brega era a música melosa e romântica que se tocava no rádio e tinha um público fiel em qualquer ocasião. Os jovens de então, na vanguarda dos metais e sintetizadores, deixavam na retaguarda uma trilha sonora poética e melodiosa, chamada por eles de “música de velho”, esquecidos de que a música é arte, e a arte fica antiga, não envelhece.

Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Silvinho, Ângela Maria, Orlando Silva, Sílvio Caldas e muitos outros cantantes da serenata, eram os que recebiam a pecha de “brega” e eram desprezados pela turba jovem, sedenta de guitarra e distorção. Porém, para estes “bregas” ainda havia tolerância, pois restava algum resquício de infância ressoando na memória auditiva dos jovens ligando os laços musicais paternalistas. No entanto, havia outra vertente da música romântica, a mais moderna, representada por novos artistas que corriam à revelia da recente MPB. Eram chamados preconceituosamente de “cantores de empregada doméstica”, pois estas profissionais do lar gostavam de ligar o radinho de pilha em volume perturbador, sintonizado em emissoras AM (naqueles tempos não existia rádio FM.) de programação intragável e que constava na programação diária Odair José, Nilton César, Miss Lene, Gretchen, Diana, Fernando Mendes, Peninha, Moacyr Franco, Márcio Greyk e mais a jovem guarda que então se tornara brega, inclusive Roberto Carlos, que se salvou depois que virou especial de Natal, da Rede Globo, e que chegou ao final da década de 70 no auge da carreira, sendo que era chique, no fim de ano, presentear-se os amigos e parentes com o novo disco do “Rei”.

Mas voltemos aos bregas de antigamente, que não são os mesmos bregas de hoje. Naquele tempo nem “brega” existia. Dizia-se “cafona” a música que continha forte dialética sentimental, bem diferente dos atuais, que beiram o ridículo e carecem de conteúdo, mas encontram  grande receptividade nos jovens “cabeças ocas”, que deliram em êxtase nos pagodes, rodeios e blocos axés musicais da praga baiana que se espalhou por todo o Brasil feito erva daninha em terra devoluta.

Caetano Veloso, o ícone da nossa MPB, gravou Peninha (duas vezes) e Fernando Mendes e foi disco de ouro em menos de dois meses. Orlando Moraes gravou Odair José. Fafá de Belém gravou Waldick Soriano que foi gravado por meio mundo de gente, incluindo Maria Creuza, Altemar Dutra e Nelson Gonçalves. O maranhense Zeca Baleiro revelou ter sido fã de Waldick Soriano.

Pois é: a geração Hi-Fi vai envelhecendo e ficando besta, sensível e nostálgica, resmungando da juventude apática e caminhando no túnel do tempo na direção do passado, em busca de uma afirmação para a vida e de um sentido para a sua transitoriedade.

Afinal, em alguns instantes da nossa vida amamos os Beatles e os Roling Stones.



segunda-feira, 11 de julho de 2011

Luís Pimentel - As rabugices do velho Graça*

De Matador de Aluguel e outras figuras

Conta a lenda que o jovem repórter procurou o velho revisor, no covil dos copidesques do jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, para pedir uma opinião sem compromisso sobre texto literário. O velho revisor chamava-se Graciliano Ramos, escritor já consagrado que ainda precisava suar a camisa em redações para pagar as contas. Chegando à sexta ou sétima linha do texto, levou o primeiro susto, sublinhou uma palavra mal-empregada e devolveu os papéis ao iniciante, com um comentário sucinto:

– “Outrossim” é a puta que pariu!

Graciliano detestava conversa fiada. Quando a conversa era escrita, então, nem se fala. Economizava na fala e chegava a ser mesquinho no texto:

“Escrever é cortar palavra” era a sua máxima. E mais:

“Quem escreve deve ter todo cuidado para a coisa não sair molhada. Quero dizer que da página que foi escrita não deve pingar nenhuma palavra, a não ser as desnecessárias. É como pano lavado que se estira no varal. Naquela maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lava. Molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Depois colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Depois batem o pano na laje ou na pedra limpa e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer”.

Tenso como seus parágrafos e seco como o chão do seu sertão alagoano, onde nasceu em 1892 (Quebrangulo), o Velho Graça nos deixou no ano de 1953. Apreciador de aguardentes e fumante inveterado, não foi correspondido no amor devotado por mais de 40 anos aos cigarros Selma. Teve os pulmões bombardeados pelos bastões cancerígenos.

A fogueira das vaidades vive a incendiar corações e mentes de escritores, sempre achando que tudo o que escrevem deveria estar no index das obras-primas da humanidade. Diante desses, vale sempre a pena a gente se lembrar de Graciliano Ramos, que passou a vida a desconfiar de tudo e de todos, sobretudo dele mesmo.

Ao ser comunicado da premiação pela Prefeitura do então Distrito Federal dos originais de sua ficção infanto-juvenil A terra dos meninos pelados (publicado em 1941), torceu o nariz para o júri, em carta à mulher, Heloísa Ramos: “Premiaram uma bobagem, sem qualquer valor literário”. Diante do contrato para edição, foi além: “O Zé Olympio quer editar Os meninos. Problema dele, se está querendo jogar dinheiro fora”.

Graciliano Ramos interrompeu e retomou inúmeras vezes o ótimo Angústia (1936), por não enxergar ali qualquer valor literário (como também não enxergava nos anteriores, Caetés, 1933, e São Bernardo, 1934). O livro só não foi interrompido de vez (o que talvez interrompesse também a sua carreira literária) por conta da insistente cobrança de Rachel de Queiroz. O desconfiado queixou-se com Heloísa: “Julgo que terei que continuar o Angústia, já que a bandida da Rachel cobra e diz que é bom (...) Escrevi ontem duas folhas, tendo prontas 95. Vamos ver se é possível concluir agora esta porcaria”.

O livro que o projetou no cenário nacional foi São Bernardo (mereceu adaptação histórica para o cinema, com Othon Bastos e Isabel Ribeiro nos principais papéis, e direção de Leon Hirsman. Vidas secas também foi adaptado e filmado – com Átila Iório de protagonista –, pelo hoje imortal da ABL Nelson Pereira dos Santos). Ali desponta o narrador rigoroso de períodos curtos e contundentes, linguagem crua, magra e fria, contando a história do bruto homem da roça Paulo Honório:

“Aqui nos dias santos surgem viagens, doenças e outros pretextos para o trabalhador gazear. O domingo é perdido, o sábado também se perde, por causa da feira, a semana tem apenas cindo dias e a Igreja ainda reduz. O resultado é a paga encolher e essa cambada viver com a barriga tinindo”.
Não há uma palavra fora de lugar.

Graciliano Ramos correu atrás de bode, trabalhou em balcão de armazém, vendeu tecidos, foi professor, instrutor de ensino, prefeito em Palmeiras dos Índios (AL), preso pelo Estado Novo sob acusação de comunismo (a experiência de cadeia mais valiosa do mundo, pois ao mundo legou Memórias do cárcere, publicado no ano de sua morte) e mais tarde até comunista. Mas jamais precisou de coerência partidária para exibir, ao longo da vida, coerência e apego ao povo mais necessitado do seu sertão ou encontrado por ele nas inúmeras pensões por onde viveu no Rio de Janeiro.

*Do volume de crônicas “O matador de aluguel e outras figuras”, a sair em setembro, pela Editora Melhoramentos.

Nota do blog - Ilustração: capa, contracapa e orelha do livro

domingo, 10 de julho de 2011

Maurício Melo Júnior - A invasão da Terra

Somente agora consegui entender um filme de Mel Gibson, Sinais, já meio antigo. A inteligência é fraca, reconheço, pois o enredo é bem besta. Um fazendeiro americano, viúvo, cria sozinho os filhos menores até que encontra o milharal esmagado em imensos círculos. Daí decorrem os suspenses e as emoções até que se descobre o motivo de toda confusão: extraterrestres invadiram a Terra. Mais um bocado de suspense, mais outro tanto de emoção e o fazendeiro galã percebe que os alienígenas, como os franceses, não simpatizavam com banhos e passa a matá-los com altas doses de água. Pronto a Terra está salva.

Até aí entendi tudo direitinho, o que me incomodava era uma determinada cena. Como a invasão era mundial o Brasil não poderia ficar de fora e, vendo televisão, Mel Gibson é informado que um extraterrestre passeia pelas ruas de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Por que essa escolha já que tudo por aqui acontece no Rio ou em São Paulo? Conheço a cidade e quase fui expulso de lá por conta de minhas limitações culturais. Declarei num artigo que a comunidade está implantada no pampa gaúcho. Levei um puxão de orelhas: “Ficamos no Planalto Médio. Até Teixeirinha diz isso numa música.” Quem mandou não escutar o bardo gaúcho nem estudar geografia?

Fora este deslize, e apesar do frio, me dou muito bem por lá. Freqüentemente sou convidado para ciscar naquele terreiro e fiz muito boas amizades ali. Apesar do frio. Acostumado com o clima ameno de Garanhuns e congelando aos quinze graus, suportei com garbo e elegância os nove graus que costumeiramente baixa na cidade. Num dessas noites geladas, torcendo moderadamente, assisti o Sport vencer o Grêmio. E tudo sem fazer um inimigo, afinal estava cercado por solidários torcedores do Internacional.

Claro que não foi o futebol, muito menos o frio, que me levou a Passo Fundo. Sob um circo armado no campus da universidade, na companhia de cinco mil pessoas, por toda uma semana passei todo o dia e parte da noite a escutar outros mortais falarem de suas obras e suas criações. Perdemos a noção do tempo e embevecidos gastamos nossas horas enquanto lá fora o mundo corria com seus encantos. Manhãs de sol, crianças nas ruas, velhos nas praças, carneiros pastando, bovinos e muares sob as serras. E nós enfurnados em tendas, protegidos do vento e da vida, a discutir palavras.

Somos uma estranha trupe e nos encontramos em todos os lugares que nos permitem a falta de lucidez. Anualmente invadimos Paraty. O mar está próximo, mas também ali somos fustigados pelo frio. Ele nos avisa que aquela não é a nossa praia, que a cidade carece de belas moças semi-nuas a quarar sob o sol tropical. Teimosamente, no entanto, vestimos pesados casacos de couro, nos cobrimos de lã e pisamos as pedras seculares que nos dá um eterno andar de bêbado. Novamente buscamos o abrigo de tendas e, aborígenes modernos, voltamos aos nossos debates, ao exercício perdulário de gastar palavras, palavras, palavras.

Quando chega a noite, fechadas as tendas, reforçamos nossas vestes, nos abrigamos nos bares, pagamos caro por bebidas e petiscos – a conspiração que nos combate usa todas as armas – e voltamos ao mundo das palavras. Distribuímos elogios e patadas, brigamos sempre, nunca chegamos à conclusão nenhuma, fugimos das todas as unanimidades e amamos seres patológicos que passam a eternidade entre quatro paredes sonhando com mundos paralelos e irreais, enquanto pelas praias caminha a sensualidade despida de um país tropical que dispensa o peso das lãs e dos couros.

Teimosamente também conspiramos e espalhamos nossos vícios por todos os recantos. Bravamente enfrentamos o sol e o calor da marinha Alagoas. Em Marechal Deodoro tiramos os turistas da praia do Francês e os atiramos, junto conosco, num auditório climatizado por ar-condicionado e parolamos, parolamos, parolamos. Nossa prosa infinda invade as águas da lagoa de Manguaba, navega a placidez de Mundaú e chega a Maceió. Desabitamos a Ponta Verde e os corpos bronzeados, solares, nos olham indiferentes e seguem para a vida que margeia os canaviais e se reinventa nas engrenagens da usina.

Nem assim nos entregamos. À noite, de volta aos paralelepípedos de Marechal, subimos ladeiras cantando antigas canções. Somos felizes e as vezes fechamos parceria com a vida escutando um sax melancólico na escuridão, sob o luar, e dançamos tangos, boleros, frevos. Este mundo é meu, este mundo é meu.

Um dia a umidade pegajosa da Amazônia envolveu nossa turma em Manaus. Como as calçadas desenhadas do teatro eram amplas e a vastidão do Amazonas nos assustava, trancamos jovens estudantes no ambiente art nouveau de um vetusto salão e desandamos a falar sobre um certo bruxo que morava num lugar distante e viveu marcado pela epilepsia a inventar vidas e dúvidas.

Haja frio ou calor nossa luta cotidiana nunca cessa. E de nada valerão os truques do cinema americano. Enfrentamos tempestades, torrentes, vulcões. Heroicamente nos apossamos de redes, espreguiçadeiras, ônibus e aviões. Somos soberanos em nossas obsessões e vamos ainda dominar a terra.

Somos uma trupe estranha e dela participa o extraterrestre combatido por Mel Gibson, pois agora tenho certeza de que ele foi a Passo Fundo, a convite de Tânia Rösing, participar da Jornada Literária. Isso ninguém me tira da cabeça.


sábado, 9 de julho de 2011

Cineas Santos - Um sonho em curso

De Prof. Cineas Santos

Corria o ano da graça de 1977 e, apesar da ditadura, imperava entre nós a crença na “salvação do planeta”, na iminência de uma luminosa revolução cultural e, principalmente, na construção de um mundo mais justo e mais fraterno. Sonhos juvenis, irrealizáveis, mas necessários. Movido por esse desejo de mudanças, juntei um grupo de jovens – Paulo Machado, Fernando Costa, Alcide Filho, Rogério Newton e Margarete Coelho – e decidimos construir uma ponte cultural entre Teresina e o sertão do Piauí. Amontoados num velho fusca verde-sonho, iniciamos nossa peregrinação por São Raimundo Nonato onde, anualmente, realizava-se uma semana universitária. Levamos uma bela exposição do pintor Fernando Costa que, sozinha, falava mais que a nossa arenga de pregadores. Animados com os resultados, fomos a Oeiras, Floriano e já nos preparávamos para ir a Corrente, quando a gasolina do fusca acabou. Como não éramos financiados por ninguém, encerramos nossa errática aventura na vizinha cidade de José de Freitas. 

Esta história é sabida e consabida. A aventura durou pouco, mas as sementes foram lançadas em terreno fértil, e o projeto A Cara Alegre do Piauí, 34 anos depois, continua mais vivo do que nunca. Agora, por exemplo, estou escrevendo de Pio IX, onde, com um punhado de trabalhadores culturais, estamos fazendo o de sempre: ensinando, aprendendo, compartilhando experiências e vivências. Com a chancela da Universidade Aberta do Brasil, da UESPI e da UFPI, sob a batuta da professora Rosa Melo, nada menos de 500 pessoas (professores, alunos, gente do povo) estão participando dos cursos e oficinas oferecidos por nós na sede do município. É gratificante participar de um projeto que, entre outras atividades, semeia alegria. Mais do que nunca, estou convencido de que a ponte cultural entre a capital e o interior do estado precisa ser construída com a maior urgência para que se mantenha aceso o diálogo enriquecedor entre os que fazem cultura em qualquer parte, mesmo em condições adversas. É ocioso afirmar que um projeto de tal magnitude não poderá ser mantido apenas por um punhado de esforçados trabalhadores. Urge que o Estado faça a sua parte, fomentando políticas culturais capazes de gerar emprego, inclusão social e, acima de tudo, de elevar a autoestima do nosso povo.

            O Cara Alegre, com a experiência dos que já vêm fazendo há mais de 30 anos , está disposto a colaborar com qualquer iniciativa que tenha como objetivo promover a inclusão cultural e estimular o intercâmbio entre a capital e os municípios do Piauí. 


quarta-feira, 6 de julho de 2011

Maurício Melo Júnior - Viver é arriscoso

Riobaldo Tartarana, o brilhante jagunço maquinado por João Rosa, tinha medo da vida, mesmo assim trocou tiros com Hermógenes, amou loucamente e sobreviveu por muitos anos, um tempo suficiente para contar suas aventuras a um ouvinte desconhecido. Sobreviveu agarrado em suas crenças e no desespero de não poder concretizar os desejos do peito. Quando pensava em religião, variava, bebia água de todos os rios, quando devotava seu amor via Diadorim como uma neblina.

Um homem sábio temente a Deus e ao diabo.

Contra esta corda bamba permanente que é a vida, não há muito remédio senão viver, e viver intensamente, como fez Riobaldo.

Um tio meu bem criativo, maquinando uma vida segura, projetou uma casa onde seria possível morar livre de todos os riscos. Desenhou quadrados, estabeleceu espaços, pensou soluções para todos os problemas, previu todas as brechas possíveis para a insegurança e, enfim, fechou o projeto de seus sonhos: um imóvel sem portas ou janelas. “Ninguém vai conseguir entrar nesta casa”, constatavam os céticos. “Nem mesmos ladrões ou homicidas”, rebatia meu engenhoso tio que, infelizmente, não encontrou pedreiros ou mestre-de-obras capazes de concretizar seus sonhos de segurança. Hoje vive no décimo segundo andar de um edifício comum. Aparentemente livre de perigos.

Isso enquanto fica em casa, pois nas saídas há sempre um trânsito cada dia mais difícil. Embora não morando na mesma cidade que este meu tio, vejo o quanto tem se tornado arriscado andar nas ruas das grandes e pequenas cidades. Vai longe o tempo em que uma modesta batida de carros sem vítimas, fatais ou não, era assunto por toda uma semana em Palmares ou Matriz de Camaragibe. Discutíamos o prejuízo dos infelizes proprietários e os possíveis lucros dos mecânicos escolhidos para reparar os estragos. E isso tomava dias de nossas vidas até que nova batida ou, mais comum, as notícias de um novo adultério aumentavam nosso repertório de prosa boêmia.

Os tempos mudam e a vida se torna cada vez mais arriscada, parece uma bolsa de valores onde apenas se negociam ações de massas falidas.

Frequentemente escuto notícias de sequestros relâmpagos, novos golpes na praça, balas perdidas, agressões no trânsito e busco encontrar um outro lado da vida. Nunca consigo chegar ao excessivo grau de otimismo daquele personagem do Roberto Benigni, o Guido, de A Vida é Bela, mas acredito que estamos num tempo de bonança. Talvez isso se deva ao fato de vir de outros tempos, não tão remotos, é certo.

Basta dizer que outro dia, no Recife, tomei conhecimento, um noivo enlouquecido matou um dos padrinhos de seu casamento, a noiva e depois se suicidou. Um fato tão absurdo que nem mesmo Nelson Rodrigues conseguiu imaginar.

Vivi no Recife num tempo em que nosso maior medo, quando rondávamos suas ruas vazias, nas madrugadas vadias, era encontra a Perna-Cabeluda, uma lenda urbana, um ser misterioso com mais de dois metros de altura que chutava corruptos e outros cidadãos menos perigosos. Como éramos boêmios inveterados, temíamos uma vingança mandada pelos céus.

Da terra o perigo era mais real. Galeguinho do Coque vivia nos noticiários e em nosso imaginário. Era cruel, perverso, roubava e judiava de suas vítimas. Um dia foi preso e comemoramos como altas doses de rum, única bebida acessível aos nossos modestos bolsos. E, surpresos, sem comemorações, lemos nos jornais a conversão do famoso bandido ao protestantismo. O mundo estava salvo e podíamos voltar, nas altas da noite, dos bairros distantes, onde os preços eram mais justos e as noites mais felizes. No entanto, confirmando minha tese jurídica de que a ocasião faz o furto, já que o ladrão nasce feito, lamentamos a volta de Galeguinho à prisão: fora flagrado roubando os cofres de sua igreja. Na Idade Média seria queimado por heresia, o malandro.

Isso se deu no Recife, uma cidade cruel, inóspita para quem não se adequa aos seus caprichos. Vítima disso foi o doce Mané Antônio, mecânico estabelecido em Catende. Homem pacato enquanto não lhe envolvia um súbito e costumeiro surto de loucura. E aí subia no primeiro banco da primeira praça que encontrava e desandava seu mais vibrante discurso com a maior de suas frustrações.

Certa feita, desembarcando na Estação Central, foi acometido pelo surto em plena Praça Joaquim Nabuco. Vivia-se os tumultuados idos de abril de 1964. Mané subiu ao banco e abriu o verbo: “Exército, Marinha e Aeronáutica, toda nação, fode e eu não. Por quê?” Os olheiros de plantão não perdoaram e até descobrirem que focinho de porco não era tomada o pobre mecânico exemplar sofreu pelos cárceres da repressão.

Corre-se mais riscos em tempos de exceção, é fato.

Ascenso Ferreira, pelo que me consta, foi dos pouco a escapar com bom humor desta fatalidade. Nos mesmos idos de 1964, no sentido de neutralizar a tendência de esquerda dos artistas pernambucanos, circulou o boato da existência de uma indecente lista apontando os poetas veados, boiolas, homossexuais, enfim, eram tempos em que tal prática não tinha nenhum glamour. O fato é que foi uma avalanche de acusações. Os poetas já não podiam circular em paz sem serem apontados como membro da desabonadora lista. Até que todos os dedos apontaram para o imenso Ascenso. E sem outra saída mais convincente ele gritou para os quatro ventos: “Eu não posso. Eu tenho hemorróidas.”

Viver é arriscoso, mas como vale a pena correr este risco.


domingo, 3 de julho de 2011

Cineas Santos - Pérola na lixeira


Há quem afirme, com uma pontinha de maldade, que a internet é uma espécie de cloaca da civilização ocidental onde cabe tudo: de pedofilia a passaporte para o céu, em módicas prestações mensais. Ainda assim, basta buscar com cuidado para encontar pérolas à disposição de todos. Ademais, não se pode culpar uma estrada pelo simples fato de nela, acidentalmente, transitarem salteadores. Um amigo me mandou esta bela história que, comovido, repasso a vocês.

UBUNTU

A jornalista e filósofa Lia Diskin, no Festival Mundial da Paz, em Floripa (2006), nos presenteou com um caso de uma tribo na África chamada Ubuntu.

Ela contou que um antropólogo estava estudando os usos e costumes da tribo e, quando terminou seu trabalho, teve que esperar pelo transporte que o levaria até o aeroporto de volta pra casa. Sobrava muito tempo, mas ele não queria catequizar os membros da tribo; então, propôs uma brincadeira pras crianças, que achou ser inofensiva.

Comprou uma porção de doces e guloseimas na cidade, botou tudo num cesto bem bonito com laço de fita e tudo e colocou debaixo de uma árvore. Aí ele chamou as crianças e combinou que quando ele dissesse "já!", elas deveriam sair correndo até o cesto, e a que chegasse primeiro ganharia todos os doces que estavam lá dentro.

As crianças se posicionaram na linha demarcatória que ele desenhou no chão e esperaram pelo sinal combinado. Quando ele disse "Já!", instantaneamente todas as crianças se deram as mãos e saíram correndo em direção à árvore com o cesto. Chegando lá, começaram a distribuir os doces entre si e a comerem felizes.

O antropólogo foi ao encontro delas e perguntou porque elas tinham ido todas juntas se uma só poderia ficar com tudo que havia no cesto e, assim, ganhar muito mais doces.

Elas simplesmente responderam: "Ubuntu, tio. Como uma de nós poderia ficar feliz se todas as outras estivessem tristes?" 
Ele ficou desconcertado! Meses e meses trabalhando nisso, estudando a tribo, e ainda não havia compreendido, de verdade,a essência daquele povo. Ou jamais teria proposto uma competição, certo?

Ubuntu significa: "Sou quem sou, porque somos todos nós!"
Atente para o detalhe: porque SOMOS, não pelo que temos...


sexta-feira, 1 de julho de 2011

Edna Lopes - O forró daqui é melhor do que o seu?

Encerrando a página de junho, mês de festejos do primeiro ao último dia em várias cidades do nordeste, constato que, pela primeira vez em muitos anos, sinto-me devedora em relação a minha contribuição na festa.

Por compromissos de trabalho não recebi amigos em casa no dia de Santo Antônio e meu dia de celebrar a vida, mas prometi ao Santo que o farei em dia e hora a combinar com ele e com minha agenda. Por questões de saúde descansei mais que festejei o S. João e o S. Pedro abrindo exceções aqui e ali quando o corpo permitiu.

Do visto e vivido, a sensação de que cada vez mais nos distanciamos dos festejos da forma mais saudável, das tradições que sustentou ao longo da história, nossa identidade cultural. Há quem mate e morra pelas disputas das quadrilhas estilizadas que, como espetáculo, tem seu brilho e valor, mas não me convencem como expressão do jeito de ser e viver do nordestino.

Sou chata. Atrações contratadas a peso de ouro com dinheiro público, deveriam no mínimo, obedecer ao critério, cuja apresentação devesse conter elementos que ressaltassem a cultura, ressaltassem valores éticos e de civilidade, mas, salvo exceções, muitas dessas “atrações” seriam apropriadas para um circo dos horrores, com mulheres seminuas em coreografias de sentido no mínimo duvidoso, músicas que incitam a violência e promovem o mau gosto, a baixaria. Nada contra a quem canta o que quiser e lhe aprouver, ou quem gosta de ouvir, mas com dinheiro PÚBLICO acho um acinte!

Minha chatice reconhece acertos.Pude ver e sentir que nas cidades do interior (não todas, é claro) ainda se luta bravamente para se manter algumas tradições como as quadrilhas matutas, o degustar das comidas típicas da época, a contratação de atrações ligadas aos festejos juninos, a festa nas casas das famílias, a decoração mais característica, entre outras.
Para minha alegria, visitei amigos no S. João e mesmo não tão bem de saúde, aproveitei esse clima de genuína alegria.

De volta a casa, fui ao show de Alcymar Monteiro e me emocionei com as músicas que fazem sucesso há muito tempo e os aboios cantados por ele e seus fãs a plenos pulmões...Gente simples, com filhos pequenos e talvez netos. Gente que como eu, não nega sua raiz. Minha alegria se completou quando na despedida Alcymar lembrou: “Podem trazer seus filhos ao meu show, aqui não se canta baixaria”. Nem preciso dizer o quanto foi aplaudido.

Também quero parabenizar o gol de placa que foi a festa de rua dos SERESTEIROS DA PITANGUINHA no dia 28, um grupo que ao longo de 16 anos faz resistência cultural aqui em Alagoas. Das caras festas para privilégio de poucos ao arraial com milhares de pessoas festejando, vestidas a caráter, maravilhadas com as atrações que destacavam a fina flor da música nordestina foi um salto e tanto. Além dos próprios Seresteiros, a animação ficou por conta de Chau do Pife, da cantora Wilma Araújo e de Tião Marcolino, numa canja especial. Encerrar a noite ouvindo a beleza da voz de Khristal, uma potiguar que encanta com sua apresentação personalíssima, foi um privilégio que precisamos repetir ano que vem.

Para encerrar os festejos e comemorações juninas, fui à procissão de S. Pedro na paróquia do Pontal da Barra, na tarde do dia 29. Organizada pela colônia de pescadores, já fazia alguns anos que não era realizada e mesmo na simplicidade, foi bonito ver a expressão da fé e do respeito às tradições daquela comunidade às margens da lagoa Mundaú.

Tenho plena consciência que o forró daqui NÃO é melhor do que o seu, mas a ideia de festejar de forma saudável e respeitosa as nossas tradições e costumes nas festas juninas é a minha bandeira e certamente a de muitos e muitas que, como eu, sabem que, para além da diversão, o que está em jogo numa festa dessa magnitude é a sobrevivência da nossa identidade como povo nordestino, cujas raízes rurais são fonte de inspiração para praticamente todas as expressões da arte que se faz nesse país.

O forró daqui NÃO é melhor do que o seu, mas quem sabe não chega perto?


quinta-feira, 30 de junho de 2011

A volta dos que não foram


De O blogueiro e o artista



Finalmente de volta pro aconchego. E já não era sem tempo, resmungou a cara-metade que não pôde me acompanhar nessa turnê etílica junina. Uma semana e mais alguns dias de pleno arrasta-pé pelo interior da Bahia, e mais uma parada na capital baiana pra rever os amigos. Aliás, poucos, porque a maioria, se não estava de ressaca, estendia as festas até São Pedro.

São Pedro é santo de viúva, dizia a minha mãe. E nunca acendeu uma fogueira para o porteiro do Céu, nem mesmo depois que ficou viúva. Também é padroeiro dos pescadores, mas, de onde viemos, achar água já era difícil, imagine ter pescador em procissão. A ladainha lá era rezada pra outro santo ou santa, o das chuvas, que não sei quem é.

Nos anos 60, antes de Inocêncio Oliveira se dizer o dono dele, o DNOCS andou mostrando serviço por lá e encanou a água de poço artesiano até as casas do povo. Um milagre de Nossa Senhora do Amparo, a padroeira da terra, que se transformou em muitos votos para os políticos da UDN.  Mas os gestores público nunca fizeram manutenção nos poços e agora a água está salobra e o povo, em vez de matar a sede com um copo d'água cristalina, está se suicidando em câmera lenta com o excesso de sal acumulado no sangue. Não é à toa que o alcaide está se dando bem e expandido seu negócio de hemodiálise pelo sertão baiano.

Mas deixemos a água de lado que no São João o negócio é licor, de preferência, jenipapo. Infelizmente as festas juninas  no Nordeste estão perdendo a tradição graças à contratação das duplas sertanejas e das estrelas da axé music. Em vez de um pau de porteira, dança-se na boquinha da garrafa. Uma cidade baiana contratou a grande estrela forrozeira Adriana Calcanhoto para animar a festa. Voz e violão. São João, o santo mesmo, deve ter feito calo nos pés de tanto dançar.

O prefeito do Junco não fica atrás e tem verdadeira adoração por essas duplas sertanejas e dos pagodes da vida. Por ele, toda festa teria Victor e Léo de dia, e Xande, de noite. Mas este ano a banda tocou diferente. Graças a uma campanha deflagrada nessas comunidades cibernéticas que retumbou nas grotas junquesas, ele foi obrigado a se render à vontade popular e fez o São João dentro dos conformes tradicionais.

E o som da sanfona ecoou de 22 a 25 de junho, reunindo o povo no mais autêntico forró pé de serra. Coube a Dominguinhos, o maior sanfoneiro vivo do Brasil, encerrar com chave de ouro a festa na Praça, no dia 24. Aliás, minto: a surpresa ficou na canja que ele deu a uma cantora local, que fez muito sucesso nos anos setenta e oitenta cantando em banda de baile do marido e cunhados: Lia de Bispão. A multidão vibrou ao ouvir sua voz ecoar na Praça interpretando “De volta pro aconchego”, acompanhada pelo próprio autor da música, e vi muitos olhos lacrimejarem porque uma grande parte dos expectadores era de gente de volta pro aconchego da terra. 

O dia 25 foi dia de concurso de quadrilha junina, mas aí eu já estava com o pé na estrada. 

E o prefeito, depois de elogiado até por alguns da oposição, descobriu que algumas coisas boas nem sempre estão no plim-plim Global.



segunda-feira, 20 de junho de 2011

Recesso temporário do blogueiro



Comunico aos leitores deste blog que o blogueiro, depois de ler a crônica de Luís Pimentel falando do são joão na terrinha, não resistiu à tentação e,nos próximos dias, estará em turnê etílica licoreira pela Bahia e provavelmente não haverá novas postagens no blog até o dia 30 deste.

Como se diz lá na minha terra, nessa época: VIVA SÃO JOÃO!

Inté a volta.

Cineas Santos - O Homo Faber do Sertão

Num gesto de pura generosidade, a jornalista Cláudia Brandão, com a cumplicidade de Zózimo Tavares, publicou, no Diário do Povo (12/06/11), uma crônica – “O Midas do sertão” – na qual me atribui qualidades e importância que efetivamente não tenho. Comovido, agradeço-lhe o carinho, mas a verdade deve prevalecer sempre. Em relação ao Salão do Livro do Piauí, por exemplo, a iniciativa não foi minha. Na década de 80, eu realizava, praticamente sozinho, o seminário Língua Viva, tentativa de propiciar aos professores piauienses o necessário diálogo com os gramáticos e linguistas do país. Por minha conta e risco, trouxe a Teresina, entre outros, Celso Cunha, Evanildo Bechara, Celso Pedro Luft, Napoleão Mendes de Almeida e José de Nicola Neto. Cansado de malhar em ferro frio, resolvi parar. Foi aí que apareceram os professores Wellington Soares, Luís Romero e Nilson Ferreira e me propuseram a realização do SALIPI. “Emprestei-lhes” o meu nome e autorizei-os a utilizá-lo onde pudesse ter alguma utilidade. Os rapazes foram à luta e, em 2003, nasceu o Salão. Não sou, portanto, o pai da ideia. Sou,quando muito, um avô afetuoso. Além disso, o SALIPI só se mantém vivo graças ao apoio de muitos parceiros, entre eles, o governo do Piauí e a Prefeitura de Teresina, para citar apenas dois. Trata-se de um trabalho coletivo.

A Cláudia acertou em cheio quando falou da minha paixão pelos livros, pela educação, pela cultura. Não respiro bem onde não exista efervescência cultural. Creio que o título da crônica estaria mais adequado se fosse O homem faber do sertão. Ao longo da vida, tenho sido apenas isto: um fazedor. Sofro de uma saudável inquietação que me impele a fazer sempre, independentemente das dificuldades a serem enfrentadas. Em 1969, quatro anos após chegar a Teresina, eu já estava à frente de um magro grupo de teatro, mambembando pelos sertões do Piauí e do Maranhão. Desde então, como professor, editor e produtor cultural, tenho realizado muitas atividades, coisas pequenas, mas que, no conjunto, constituem um lastro de certa expressão. Entre as realizações, faço questão de destacar a criação do grupo A Cara Alegre do Piauí que, há 34 anos, presta serviços onde for solicitado. Na próxima semana, por exemplo, estaremos ensinando, aprendendo e compartilhando experiências com professores e alunos de Pio IX. Compartilhar é o meu verbo preferido.

Depois de milhares de aulas ministradas, centenas de palestras proferidas, dezenas de livros editados, todos os dias me surpreendo fazendo a mesma pergunta: o que serei quando crescer? No limiar da senescência, continuo apaixonado por tudo o que faço. Sou um amador, na acepção plena da palavra. O que amealhei? O que não está à venda em nenhum lugar do mundo: o respeito e o carinho de pessoas especiais como a Cláudia Brandão, ex-aluna e sempre amiga. Para um homem do meu tope, basta.


Luís Pimentel - Elza: mulher, negra, estrela e gostosa

Ela já me disse em uma entrevista: “Degustei lágrimas como quem degusta vinho. Sei o gosto que elas têm”. Não foi apenas uma frase de efeito. Quem conhece um pouco de sua história sabe que ela comeu o pão que o diabo amassou, apanhou mais do que boi ladrão. Mas seguiu os ensinamentos do “Che” e não perdeu a ternura, jamais.

Elza Soares, uma das mais brasileiras entre as cantoras brasileiras chega aos 74 anos neste junho de 2011, no dia 23, cantando melhor do que nunca. Possui recursos vocais personalíssimos, arrancando as sílabas da garganta como se quisesse estourar as veias do corpo. Parece que “rói do cóccix ao pescoço”, como no verso da música que Caetano Veloso escreveu para ela e que virou título de um dos seus mais belos CDs.

Outro que homenageou lindamente a garra da cantora, seu som em fúria, foi Chico Buarque. Lembrou o craque dos craques, na canção Dura na queda: “Apanhou à beca, mas pra quem sabe olhar/A flor também é ferida aberta/E não se vê chorar”.

Do velho 78 rotações ao CD, são mais ou menos 100 discos gravados, no Brasil e no exterior. Nos EUA, resolveram examinar sua garganta e concluíram que as cordas vocais eram defeituosas. Um defeito perfeito. “Armstrong ficou deslumbrado quando viu que termino de cantar e falo normalmente, que esse som é puro efeito vocal. Ele me chamava de filha espiritual”. Não vai nesse depoimento nenhum excesso de vaidade. Simples relato.

O sucesso enorme que fez com músicas como Mulata assanhada, Se acaso você chegasse, Língua, Malandro, Cadeira vazia etc., não mudou sua estrada, desde o início para cima: 

– Sou uma poderosa. Vitoriosa quatro vezes: mulher, negra, estrela e gostosa.

Diz o último verso da canção do Chico: “O sol ensolará a estrada dela...”. A estrada sempre esteve ensolarada. Elza Soares é a verdadeira guerreira da luz.



domingo, 19 de junho de 2011

Maurício Melo Jr - O Sequestro de Dom Helder

Parei de rezar há muito tempo. Hoje minha memória não alcança nada além de uma Ave Maria ou um Pai Nosso. Nada mais. A decisão foi voluntária, mas inconsistente. Tenho uma irmã carola de batizar e casar. Se o padre cochila, ela diz até missa. Ou seja, na família já tem reza de sobra, de forma que pude ir cuidar de outras coisas.
E fiz isso com um grande aval.

Numa conversa de mesa de bar ouvi o velho senador Teotônio Vilela contar: “Meu irmão, o cardeal Dom Avelar, era o diabo quando menino. Depois resolveu seguir vida religiosa, de forma que pude continuar endiabrado, e fui cuidar de política.”

Os meus pecados são menores: cuido de literatura.
Bom, voltando à carolice da família, minha irmã segue o exemplo de uma tia, também afeita às práticas do catolicismo. Ouvir a conversa das duas faz de qualquer pecador um homem pio. Eu é que, ouvindo várias dessas conversas, não tomei jeito. Fazer o quê? Como elas mesmas asseveram, são os desígnios de Deus.

Numa dessas conversas minha tia contou, um tanto em êxtase, que encontrou Dom Hélder Câmara, por acaso, no centro do Recife. Naqueles dias, finais dos anos de 1970, o arcebispo circulava sozinho, na companhia de suas crenças, cumprimento e dando atenção a todos que lhe procuravam. Nunca lhe faltou uma palavra de carinho para deixar com quem quer que fosse, uma solidariedade cotidiana.

De minha parte, na cabeceira, deixava um exemplar de O Deserto é Fértil, uma reunião de crônicas que lia por prazer e desejo de conhecimento. Impressionava-me o texto corretor, seguro, prenhe de referências religiosas, mas sem imposições. Os exemplos, Dom Helder arrancava da vida, e ela, a vida, na sua conceituação de injustiças e contradições, era que devia ser mudada. Não interessava aquele homem frágil apenas o paraíso celeste, a terra também podia ser transformada num novo Jardim do Éden, um lugar de bonança, felicidade e harmonia para todos.

Minha tia não cansava de falar da tarde em que caminhou ombreada pelo sacerdote, o interrogando e ele, pacientemente, a lhe falar de Deus e dos homens. E eu ouvia seu relato apanhando os ensinamentos possíveis. Até ganhei fôlego para discutir com um amigo, dias depois, numa ocasião qualquer. Num tempo maniqueísta, onde a isenção se fazia impossível, o amigo, um tanto emprenhado pelo cântico do este-é-um-país-que-vai-prá-frente, disparou: “Dom Hélder foi integralista”.

Parti para a defesa. O integralismo, doutrina inspirada no fascismo, criado por Plínio Salgado, foi o retrato de uma época. Vivia-se um mundo dividido entre duas possibilidades de ditaduras, esquerda ou direita, deixando no meio a democracia americana com todas as suas ambições. O discurso arrebatador de Plínio na defesa de um Estado forte e orientador, definidor de políticas para o caminho do desenvolvimento, encantou verdadeiros gênios, como Câmara Cascudo e Érico Veríssimo, e gerou um clássico da ciência política, O Estado Nacional, escrito por Francisco Campos, um sábio da direita.

Cascudo, Érico e Dom Hélder, a exemplo de vários outros, reviram seus conceitos e passaram a defender a postura de que, mais que o Estado, o homem é que deveria ser fortalecido para defender com as próprias garras sua dignidade, sua vida. E escudado nesta crença o padre partiu para a prática. Admirávamos sua disposição de, ainda nos anos de 1950, como bispo auxiliar do Rio de Janeiro, criar a Cruzada São Sebastião e o Banco da Previdência. Acredito que pela primeira vez, fora dos padrões folclóricos do samba, se revelava o povo invisível da favela.

Essa mania de revelar o invisível, e que tanto desagradava os poderosos de plantão, no Recife, trouxe à tona o povo das pontes, toda uma comunidade que vivia encastelada nos vãos, entre o mangue e o concreto que, com a luz do dia, mendigava pelas ruas. Aquilo era um tapa nas ações eleitoreiras da Campanha Contra o Mocambo, de Agamenon Magalhães.

E minha tia caminhava com este homem de aparência frágil e voz suave a quem os poderosos não podiam afrontar. Agrediam sim, a igreja voltada para o combate à pobreza e a defesa dos direitos humanos. Vários de seus auxiliares mitigaram nos cárceres ou foram assassinados.

Dom Helder não temia. Seguia seu caminho. Tanto que perguntou para minha tia se ela estava de carro. Sim. “Você pode me dar uma carona? Estou indo para casa.” Ela, que morava para os lados do Espinheiros, maravilhada, guiou o próprio guia. E no caminho o indagou. “Dom Helder, o senhor não me conhece e entra em meu carro despreocupado. Não tem medo que eu o sequestre?” Passando a mão na cabeça, respondeu: “Minha filha, eu, quando adolescente, tinha uma cabeleira basta. Aos pouco Deus foi tirando meus cabelos. Assim é a vida, quando Deus quer, tira. E nós somente temos que fazer valer com dignidade o nosso tempo.”

Minha tia não sequestro Dom Helder. Chorou de emoção, apenas, e deixou o arcebispo em casa. E pelas ruas nós chorávamos de revolta a morte de padre Henrique e a prisão de Cajá, de certa forma, dois dos tantos sequestros de que Dom Helder foi vítima.