segunda-feira, 30 de julho de 2012

Cineas Santos - Encanto em dois tempos


                                              
         Decididamente, não gosto de viajar. Ainda assim, vez que outra, me surpreendo realizando viagens improváveis rumo ao nada. Foi o que aconteceu, por exemplo, no final da década de 80, em Boa Vista (RO), onde eu participava de um (como direi?) convescote literário. Se bem me lembro, um escritor da região gastou uns 40 minutos para provar que a pronúncia correta era Roraíma e não Roraima, mas isso já é outra história. O certo é que, à noite, um dos malucos presentes sugeriu um passeio a Santa Helena, na Venezuela, que fica a pouco mais de 100 km de Boa Vista. Como não havia coisa melhor a fazer, o grupo aceitou.

         Na manhã seguinte, sacolejávamos, numa caminhonete desconjuntada, um poeta encharcado de álcool e nicotina, um pintor surrealista, um vendedor de ilusões (palestras motivacionais) e eu. Estrada esburacada, lama, mosquitos e descampados a perder de vista. A paisagem de Roraima lembra Campo Maior, com uma diferença: em vez de carnaubais, são os buritizais que bordejam os igarapés. De repente, no meio do nada, o poeta, que sofria de enfisema pulmonar, começou a passar mal. Por sorte, encontramos um povoado onde o tempo se enroscara para dormir. Uma pasmaceira só. Paramos em frente a uma palhoça onde se vendiam coisinhas e comida. Ao ver o poeta arquejando, o dono da birosca foi taxativo: “O remédio está aqui“, e brandiu um frasco de Aguardente Alemã.

         Enquanto o “médico” cuidava do poeta, fomos cuidar do estômago. O vendedor de ilusões, com sua eloquência pegajosa, pediu “um café reforçado”. E põe reforçado nisso! Nunca vi nada parecido: cuscuz, beiju, paçoca, assado de paca, ovos estrelados, banana, café e leite... Como sou mais estética do que gula, esqueci a comilança e lancei os olhos na garçonete, uma indiazinha macuxi, linda como a claridade da hora. Sem levantar a vista, sem dizer uma palavra, a mocinha nos serviu e, a um olhar do patrão, desapareceu na manhã cinzenta. Com alguma indiscrição, pesquei-lhe o nome: Gardênia. Prometi a mim mesmo que, numa noite enluarada de setembro, voltaria àquele fim de mundo para raptá-la. Ainda não o fiz, mas o projeto permanece vivo em minha mente...

         Melhor seria: permanecia. Na semana passada, voltando de Coelho Neto, parei na beira da estrada para comprar frutas e apreciar umas redes multicoloridas que fisgam os passantes pelos olhos. A vendedora era uma indiazinha tão bonita quanto à outra, com algo mais: um sorriso Via Láctea. Falava o mínimo necessário, mas sorria fartamente. Pedi-lhe que me sugerisse uma rede. Sem hesitar, alargando o sorriso, indicou-me uma tangerina com varandas verdes-alga. Naturalmente, eu teria escolhido uma azul, mas como recusar a indicação? Por mais que eu insistisse, não me disse o nome. Chamei-a Smile. Como já não tenho idade para fazer projetos de raptar donzelas, acho que me contentarei com a rede. Assim, quando estiver acometido de banzo, doença comum aos da minha raça, armarei minha rede amanhecente e me deixarei embalar no sorriso luminoso da  moça anônima. Assim seja.

sábado, 28 de julho de 2012

Marinês, cadê você?

Saudades docê, menina! Dos velhos tempos das conversas no fundo do quintal, em Alagoinhas, nos intervalos do ensaio da Banda Som da Terra, onde você começou. No meio de quatro homens, ou melhor, quatro garotos que sonhavam conquistar o mundo, como o quarteto de Liverpool, você, ainda com voz tímida, mas afinada, recém-saída de um convento onde queriam lhe casar com Cristo, você fez a diferença. Chegaram a gravar um disco, a banda ganhou fama no interior baiano, e quando tudo parecia caminhar dentro do planejado, a fragilidade de alguns rompeu o elo que ligava os sonhos aos acontecimentos. 

Esteja onde estiver, amiga, não se esqueça de ser feliz. 

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Edna Lopes - A quem escreve*



"A poesia se embrenhou nos meus modos viventes.
Não é mais só minha matéria-prima, é minha matéria-imã,
minha matéria-irmã, minha matéria-mãe."
Elisa Lucinda

“Mas pode alguém
acusar-nos de ociosos?
Nós polimos as almas
com a lixa do verso.”(...)
Maiakovski

Ao escrever, deixa que a alma diga sua dor, sua alegria, seu amor, seu louvor, sua paixão, sua afeição. É preciso viver cada emoção, mesmo as que não são da tua vida, da ordem do teu dia. É preciso “aprender” ser do lugar do outro, do lugar do prazer ou do sofrer do personagem que escolhes.

Ao escrever, junta ao que escreves o teu baú de lembranças, a asa de anjo e a tesoura de jardineiro. Serão úteis para a construção do mundo da poesia, do sonho, da palavra como afirmação de vida. Lembra-te que és o arquiteto desse universo prenhe de vida.

Ao escrever, escreve na alma. O tempo e as intempéries destruirão o papel ou a madeira, transformarão a pedra em areia e pó, mas o texto que encanta, que emociona o coração e a alma de quem entra em contato com ele, é eterno.

(Edna Lopes in: Poesia viva, poesia vida!)

*Minha homenagem a quem que escreve alegrias no olhar, ternuras na alma e canções de amor nos corações de quem o lê. Meu agradecimento a quem escreve e partilha o pão do conhecimento, da sabedoria. Obrigada!! 


ABL: Exposição "Jorge Amado - 100 anos"


ABL INAUGURA EXPOSIÇÃO ‘JORGE AMADO – 100 ANOS’, EM COMEMORAÇÃO AO CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DO ACADÊMICO, E PROPÕE RELEITURA CRÍTICA DE SUA OBRA



A mostra será aberta na terça-feira, dia 31 de julho. Para a Presidente da ABL, Ana Maria Machado, “a obra de Jorge Amado vai além da mera fruição: propõe ideias e levanta discussões. A elas, pois”.


A Academia Brasileira de Letras (ABL) inaugura, no dia 31 de julho, terça-feira, às 16h30min, exposição em homenagem ao centenário de nascimento do Acadêmico e escritor Jorge Amado, que se completará no dia 10 de agosto de 2012. Trata-se de mais uma das comemorações programadas pela ABL para este ano em memória do escritor baiano. A mostra estará à disposição do público, de segunda  a sexta-feira, no 1º andar do Centro Cultural do Brasil, sede da ABL, na Avenida Presidente Wilson, 203, até o dia o dia 28 de setembro, das 10 às 18 horas.

 O público terá a oportunidade de conhecer, na mostra, as primeiras edições dos livros do escritor baiano, inclusive os editados na década de 30 do século passado, quando começou a ocupar espaço como autor. Toda a cronologia de sua história, desde seu nascimento na Fazendo Auricídia, então parte de Ilhéus, hoje município de Itajuípe, interior da Bahia. Paineis de fotos ao lado de personalidades brasileiras e estrangeiras. Reprodução de cartaz de propaganda de Jorge Amado para deputado pelo PCB. Painel com uma grande foto de Luiz Carlos Prestes. Entre essas e muitas outras peças que contam sua vida, estará também uma foto em que o escritor baiano é condecorado com o Prêmio Internacional Stálin, de 1951. Organizada pelo Acadêmico e cineasta Nelson Pedreira dos Santos, a exposição contará ainda  com a exibição de todos os filmes, novelas e séries de televisão que foram feitas com base em seus livros.

“Entendo que o centenário de Jorge Amado nos dá uma excelente oportunidade para fazer uma releitura de sua obra,  tendo em vista uma reconstrução crítica da mesma. Desde que começou a publicar seus livros nos anos 30, a recepção deles variou muito. Foram amados ou execrados, muitas vezes, por motivos extraliterários, pelo fato de o autor ter pertencido ao Partido Comunista por muito tempo. Esta exposição aponta alguns pontos de referência nesse caminho. Personagens inesquecíveis, cenários marcantes, situações emblemáticas povoam seus romances. Em seu conjunto, a obra de Jorge Amado vai além da mera fruição: propõe ideias e levanta discussões. A elas, pois. É o convite que a ABL deixa a todos. Vamos ler ou reler Jorge Amado. E entrar nesses debates, a partir do que ele  escreveu”, afirma a Presidente da ABL, escritora Ana Maria Machado.

Quinto ocupante da Cadeira 23 da ABL, eleito em 6 de abril de 1961, na sucessão de Otávio Mangabeira, Jorge Amado tomou posse em 17 de julho do mesmo ano. Jornalista, romancista e memorialista, tornou-se escritor profissional e viveu exclusivamente dos diretos autorais de seus livros. Estreou na Literatura em 1930, com a publicação da novela “Lenita”, escrita em colaboração com Dias da Costa e Édison Carneiro.

Seus livros, escritos ao longo de 36 anos (1941 a 1977) foram publicados em 52 países e traduzidos para 48 idiomas e dialetos. Muitos deles tiveram adaptação para o cinema, o rádio, a televisão, bem como para histórias em quadrinhos, não apenas no Brasil, mas também em Portugal, França, Argentina, Suécia, Alemanha, Polônia, Itália, Estados Unidos e Tchecoslováquia.

Autor de clássicos da Literatura brasileira, como Dona Flor e seus dois maridos, O país do carnaval, Capitães de areia, Gabriela, Cravo e Canela, Bahia de Todos os Santos, Tenda dos milagres, Teresa Batista cansada de guerra, entre muitos outros, Jorge Amado nasceu no dia 10 de agosto de 1912 e faleceu no dia 6 de agosto de 2001.

Serviço:

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
“Jorge Amado, 100 anos”
Exposição comemorativa do centenário de nascimento do Acadêmico e escritor.
Centro Cultural do Brasil, 1º andar, sede da ABL.
Avenida Presidente Wilson 203, Castelo, Rio de Janeiro.
Data da inauguração: 31/07/2012, terça-feira, às 16h30min

Visitação de segunda a sexta-feira, das 10 às 18 horas, até o dia 28 de setembro.

Entrada franca.

www.academia.org.br
Telefone: 3974-2500

sábado, 21 de julho de 2012

O Medalhista Olímpico



Aproximava-se a data dos jogos universitários e um dilema formara-se na delegação da UFAL: quem poderia defender com garra e entusiasmo a bandeira da natação? Havia de tudo na Universidade, menos, bons nadadores. Conversa daqui, briga dali, acusações mútuas de “porco chauvinista”, o jargão da época, quando uma luz milagrosa se acendeu:

- Por que não escolhemos o Juvenal? Ele nasceu e se criou comendo sururu na beira da Lagoa Mundaú, em Fernão Velho, deve ser um exímio nadador, um verdadeiro campeão.
- Isso, isso, isso! – pela primeira vez havia unanimidade nas diversas correntes ideológicas estudantis.

Juvenal topou a parada. Prometeu ser medalhista em Belo Horizonte, capital-sede dos jogos. No dia e hora da prova, a torcida da UFAL era toda do Juvenal. Era medalha de ouro na certa. Acostumado a atravessar a nado os mais de mil metros que separam o bairro de Fernão Velho da cidade de Coqueiro Seco, na outra margem da Lagoa Mundaú, não ia esfarrapar justamente quando mais se necessitava de suas braçadas.

Dado o tiro de largada, Juvenal pulou de cabeça na raia da piscina, afundou, emergiu, ficou em pé e retornou apavorado para a beirada. Uma vaia estrondosa ecoou no parque aquático. A mãe de Juvenal não saía da boca dos seus colegas. Enfiou a cabeça dentro d'água, achando que podia se esconder, mas faltou ar. Deu uma pirueta no ar, saiu da água e desapareceu no meio da multidão. Alguns alagoanos correram atrás, para tirar satisfação, mas só voltaram a encontrar o campeão na semana seguinte, na Universidade.  

Isolado dos colegas como se portador de doença contagiosa, acusado pelo Tribunal da Contra-Revolução de porco chauvinista traidor da pátria estudantil e entreguista militante da Direita a serviço do imperialismo americano, Juvenal ainda viveu um inferno astral para não ser jubilado a menos de um ano para colar grau: a UNE queria a sua cabeça numa bandeja, tal qual Salomé quis a de João Batista.

Muito tempo depois, já formado em Educação Física e fazendo bico como instrutor de natação, tomou um porre e desabafou a um colega que também fez parte daquela delegação:

- Naquele fatídico dia achei de vestir um short novo que havia comprado na Mesbla de Belo Horizonte, pois o meu estava com um buraco bem naquele lugar. Caí na besteira de vestir o short sem uma sunga por baixo e na hora que mergulhei ele foi arrastado pela água e, quando tentei dar a primeira braçada, senti que estava nu. Se eu continuasse, minha bunda ia aparecer e o short ia ficar pra trás. Por isso que saí daquele jeito, arrastando o short entre as pernas até a beira da piscina.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Cineas Santos - Em nome do pai


         Tenho um amigo humorista que, se necessário, abre mão da amizade, mas não perde a piada. Certa feita, afirmou: “Ou o Cineas não tem pai, ou não passa de um bom filho da mãe”. A tirada humorística tem sua razão de ser: ao longo da vida, escrevi dezenas de textos sobre dona Purcina e poucos, muito poucos, sobre seu Liberato. Mais que minha mãe, dona Purcina foi minha bússola por muito tempo. Mesmo quando saí da influência do seu raio de ação, procurei pautar minha conduta tendo como chão o que aprendi com ela. Não bastasse isso, minha velha era meio “espaçosa”, autoritária e exigente. Uma autêntica matriarca do sertão.

         Já seu Liberato era um sertanejo simples, ordeiro, contido. Se tivesse de defini-lo usando um único adjetivo, eu nem pestanejaria: exato. Nunca o vi eufórico nem colérico. Não caçava, não pescava, não maltratava os animais. Não fazia versos, não tocava viola, não contava vantagens. Em matéria de música, conhecia duas, mas raramente cantava. Quando o fazia, não desafinava. Um homem perfeitamente integrado ao seu hábitat. Suas aspirações não iam além dos limites de suas roçadas. Ao longo da vida, fez apenas três viagens: Juazeiro (BA), Brasília e São Paulo. Em nenhuma delas fez boa colheita. Fincou raízes fundas no Campo Formoso de onde só saiu quando perdeu  a visão.

         Nascido no povoado São Braz (hoje, município de São Braz do Piauí), estudou apenas três meses. A despeito disso, sabia ler, escrever e contar. Da terra, sabia quase tudo, tanto que trabalhou a vida inteira numa gleba de 100 hectares sem exauri-la. Ao contrário dos lavradores vizinhos, nunca fazia queimadas. Limpava a terra e a preparava para o plantio com o mesmo cuidado que dedicava aos animais. Sabia ler os sinais da chuva em tudo: na floração dos mandacarus, na agitação das formigas ou na posição da boca do ninho do João-bobo. Dormia cedo e acordava muito cedo: precisava fazer a “leitura” da barra do dia, um indicador da presença ou da ausência das chuvas.

         Tinha apenas duas mudas de roupa, ambas azuis. Quando estava entre os seus, contava causos engraçados, com aqueles volteios que caracterizam a prosa sertaneja, tão bem recriada por Guimarães Rosa.

         Não seria exagero afirmar que era um sertanejo atípico: não gritava, não corria, não tinha receio de se mostrar terno e delicado. No final do dia, ao regressar do roçado, sempre nos trazia alguma coisa: uma melancia temporã, um favo de enxu, uma flor de rabo-de-raposa, uma simples pedrinha lisa... Com ele, aprendi a campear nuvens, tomar café forte, honrar a palavra empenhada, apreciar chuvas brandas e gostar de mulheres formosas. Um pai melhor do que ele eu não fiz por merecer.