quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Cineas Santos - Previsões provisórias de um falastrão

       Desde muito pequeno, sofro de uma enfermidade bastante grave: incontinência verbal. Falo muito além do necessário e, como qualquer falastrão, acabo dizendo bobagens. Acidentalmente, digo coisas que deveriam ser levadas a sério, mas quem daria crédito a um boquirroto?  Um exemplo: há uns 30 anos, numa aula de redação, conversávamos sobre a má distribuição da renda no Brasil. Lá pelas tantas, afirmei: as elites brasileiras (a expressão estava na ordem do dia) têm sido bastante competentes na defesa dos seus interesses. Desde a época das capitanias hereditárias, governam o país como se estivéssemos na Idade Média. Aos bem-nascidos, tudo; aos outros, as sobras gerais. A despeito disso, também cometem erros graves. No meu entender, estão subestimando o poder dos meios de comunicação de massa, notadamente o rádio e a TV. (à época, não existiam as redes sociais). Em curto espaço de tempo, os desvalidos não se contentarão com as migalhas atiradas da mesa da casa grande. Se essa gente se insurgir contra a “ordem estabelecida”, as coisas poderão complicar-se. A insurgência, por uma série de razões, começará no Rio de Janeiro. Por oportuno, uma observação: um ex-aluno, que assistira àquela aula, publicou o que estou afirmando no jornal Diário do Povo.

          Pouco tempo depois, li uma entrevista com o sociólogo Marcos Alvito, autor de “As cores do Acari”, na qual ele afirmava que os filhos dos favelados, ao contrário dos pais, já não se contentam com o rádio, a televisão, a geladeiras e outras pequenas “conquistas”. Querem mais, muito mais.   

          Infelizmente, os dois estávamos certos. A moçada da periferia resolveu demonstrar que os Titãs tinham razão: “A gente não quer só comida/a gente quer comida/diversão e arte”. De repente, como uma torrente incontrolável, resolveu ocupar todos os espaços: praias, ruas, praças e, agora, “o espaço seguro” dos shoppings. Com a utilização das redes sociais, mobilizam-se e derrubam a última muralha a separar os bem-nascidos da ralé.  Os “rolezinhos” estão tirando o sono de muita gente: comerciantes, industriais, governantes. A classe média está em polvorosa. Quando questionada, a molecada recorre à Constituição que garante a todos o direito de ir e vir. Não há como impedi-la de circular livremente sem o uso da força.

          Não quero bancar o profeta do apocalipse, mas podem apostar que este ano o bicho vai pegar: a combinação copa do mundo + eleições é nitroglicerina pura, como afirmava aquele ministro que (como direi?) papava a colega de ministério. Não fosse ano de eleição, a polícia desceria o porrete sem pena nem dó. Mas, à cata de votos, que candidato vai querer assumir o papel de truculento? Por falta de coisa melhor, deixo aqui a sugestão para o título de um documentário: a hora e a vez dos que nunca tiveram voz nem vez. Quem sobreviver, verá.
         


domingo, 26 de janeiro de 2014

2 As Lendas de Aruanda - Teogonia e as religiões tradicionais aficanas



AS RELIGIÕES TRADICIONAIS AFRICANAS

Em tempos longínquos, quando o homem engatinhava e vivia em harmonia com a Natureza por não existir diferenças notáveis, nem estresse, nem vírus ou doenças como as existentes hoje, os seres espirituais habitantes da Terra, encarnados ou não, adquiriram os segredos estruturais dos elementos da Natureza e, através da encarnação, alcançaram percepção e sensibilidade astrais que as conduziriam de volta às suas origens no plano astral superior.

Seres espirituais de outros sistemas planetários mais evoluídos vieram até a Terra e se encarregaram de transmitir suas experiências aos seres menos evoluídos e ensinar tudo sobre a divindade suprema, os seres espirituais, o espaço cósmico, a criação e as leis que regiam a evolução do Universo. A esse conhecimento foi chamado de Aumbandhã, que no passar do tempo se tornou um mantra na iniciação hindu.

Aumbandhã é uma palavra sânscrita, formada pelo prefixo Aum, de alta significação espiritual, sagrada, a sonorização da Trindade Universal, Espírito, Energia e Matéria, e pelo sufixo Bandhã, cujo significado místico é a força emanada do Criador sobre as criaturas para o despertar cósmico. Assim, a síntese lexical de modo simplificado, Aumbandhã que dizer o finito do infinito, o limite do ilimitado, ou simplesmente o humano no divino.

O planeta Terra ganhou fama esotérica e seres vindos de outras regiões siderais, doentes da alma e do espírito, procuravam a cura nos aprendizes dos tubaguaçus (grandes condutores da raça), porém nem todos os aprendizes conseguiram absorver os ensinamentos do dom da cura e acabaram se contaminando com a doença que deviam curar. Esses aprendizes contaminados transmitiram seus males às gerações futuras e suas sequelas perduram até os dias de hoje. São as doenças primitivas as responsáveis por todas as doenças do mundo, conhecidas ou não, e atendem pelo exótico nome de “Os Sete Pecados Capitais” e o considerado o maior mal de todos os males: o Egoísmo.


RELIGIÃO TRADICIONAL AFRICANA

Para se compreender a religiosidade africana, primeiro precisamos voltar os olhos para a África através de sua dimensão continental e não apenas vê-la erroneamente como um país. Quando falamos de outros povos, simplesmente tratamos pelo seu gentílico, confinados nas fronteiras físicas que delimitam seus países. Assim, dizemos, os “portugueses”, os “espanhóis”, os “franceses”, os “norte-americanos”, mas nunca dizemos “os sul-africanos”, “os congoleses”, “os angolanos”, mas apenas colocamos todos na vala comum do gentílico continental, tratando os africanos como uma nação única e igual.

As religiões tradicionais africanas, também chamadas de “religiões indígenas africanas”, aquelas que ainda não se deixaram contaminar pelo islamismo, judaísmo, catolicismo, e outros “ismos”, são religiões definidas, em sua maioria, por linhagens étnicas e tribais e engloba uma grande variedade de crenças e mitos, se distinguindo em dois aspectos fundamentais: o visível e o invisível. A matéria e o espírito. Estima-se que cerca de cem milhões de africanos praticam a religião tradicional e mesmo aquelas que se tornaram sincréticas com outras religiões ainda mantém alguns ritos da religião africana.

Apesar da amplidão continental e dessa multiplicidade religiosa, há vários pontos em comum na religiosidade tribal que envolve ensinamentos, práticas e rituais em busca da compreensão do divino. Reconhecem um Deus Supremo, criador do Universo, e chamam-no de Olodumaré (Senhor Supremo) e Olorum (Senhor do Céu), seus nomes mais conhecidos. Olodumaré vive em outra dimensão paralela à nossa, conhecida como Òrun, o Céu dos cristãos.

Segundo a religião tradicional africana, foi Olodumaré quem criou o Universo e tudo que nele está. Explica a lenda teogônica que Olodumaré aproveitou as forças sobrenaturais encontradas em Òrun para criar os orixás, cuja principal missão seria a de auxiliá-lo na criação e ordenação do novo mundo material que ele iria criar. Os orixás, depois, associaram-se às forças da natureza e dos seus elementos e só por elas podem se manifestar.

No princípio original existiam dois mundos: Òrun, onde habitavam os orixás, e o Aiyê, onde só existia água. Um dia Olodumaré resolveu criar um espaço para a humanidade que ele criaria. Incumbiu Orixanilá, nome mais sagrado de Oxalá, o primeiro orixá criado por ele, de pôr a termo a sua vontade. Entregou-lhe uma cabaça contendo terra escura, galinha de cinco dedos, uma pomba e um camaleão. A terra deveria ser lançada sobre as águas, a galinha espalharia a terra, a pomba voaria e criaria o ar e o camaleão retornaria por terra para colocar Olodumaré a par da tarefa atribuída a Orixanilá.

E partiu Orixanilá em direção de Aiyê para dar cabo de sua incumbência, levando seu cajado, o opaxorô, e a cabaça da Criação. Era costume em Òrun    se fazer sacrifícios à divindade Bará, mas Orixanilá era muito orgulhoso e se recusou a fazer tal oferenda. Então Bará, ressentido, fez o primogênito de Olodumaré sentir muita sede no caminho de Aiyê. Sem alternativa, Orixanilá pegou seu cajado e furou o tronco de uma palmeira e dele escorreu um delicioso vinho de palma. Orixanilá encheu a cara e dormiu o sono dos orixás. 

Olodumaré enviou o irmão caçula dos orixás, Oduduá, para saber o que havia acontecido com Orixanilá. Ao retornar com a cabaça da criação, Oduduá pediu ao pai que o deixasse cumprir aquela tarefa de suma importância. E assim, enquanto Orixanilá dormia, Oduduá criava o mundo e as coisas vivas, exceto o homem. Mostrando-se arrependido ao acordar e ver o mundo criado pelo seu irmão caçula, Olodumaré resolveu dar uma nova tarefa de extrema importância a Orixanilá: a criação do homem que habitaria Aiyê.

Então Oxalá moldou vários bonecos de argila e água e Olodumaré soprou nas suas narinas fazendo surgir a vida humana na face da Terra.  

domingo, 19 de janeiro de 2014

Domingo de Futebol

Eu não matei Joana d’Arc. Nem poderia. Na hora do óbito eu estava no Estádio Rei Pelé vendo o Esquadrão de Aço levar uma lapada de um time de várzea. Não direi o placar que é muito vergonhoso, mas a surra foi merecida.

Teria matado Joana d’Arc se ela já não tivesse morrido depois do jogo. A vingança é um prato que se come frio. Gelado. Congelado. A minha sorte foi ter ido de carona e ainda ter ganhado o ingresso, cortesia da Pitú, via Categoria, o dono de bar mais simpático de Maceió. Se assim não fosse, teria morrido de raiva. Morte matada. O culpado: Esporte Clube Bahia.

Joana d’Arc morreu sem que se saiba sua causa mortis. A polícia descartou homicídio, apesar das sete facadas e dois tiros no peito. É bem provável que ela tentou o suicídio, disse o delegado.

Na entrada do estádio encontrei um amigo coronel da PM e entramos conversando. Além de não ser revistado, o soldado ainda bateu continência para mim. E me permitiram ver o jogo no meio da torcida do CSA, único lugar que fazia sombra. Meu telefone não parava de tocar e eu sem poder atender. É que o display do aparelho é um escudo do Bahia. Se tiro do bolso, ia fazer companhia a Joana d’Arc.

Certa vez uma moça muito linda me perguntou:

- Você sabe de que morreu Ana Neri, Tom?
- E Ana Neri não é a patrona das enfermeiras?
- É.
- E tu não é enfermeira?
- Sou.
- E não sabe e pergunta logo a um ignorante que não sabe nem pra que serve a água oxigenada?
- É que você sabe de um bocado de coisas.

Dizem que a curiosidade matou o burro. Fui pesquisar. Vasculhei a internet, subi dez mil escadas de bibliotecas, varei noites vadias debruçado em enciclopédias e não consegui saber de nada. Como não podia deixar sem resposta uma moça linda que me achava inteligente, liguei para ela:

- Olha, você não vai acreditar, mas Ana Neri morreu de morte natural.
- Tem certeza?
- Absoluta. Morrer é coisa natural. Viver eternamente é que é coisa do outro mundo.
- Puxa. Bem que eu sabia que você não ia me deixar sem resposta. Você é tão inteligente, sabe de tanta coisa...

Sou não, baby. Se fosse, não teria deixado o meu sossego duma tarde de domingo para ir ver o meu time levar uma surra de um time peladeiro.

E foi como dizia o meu pai depois que eu levava uma surra da minha mãe:

- Se apanhou é porque mereceu.

1 AS LENDAS DE ARUANDA - O INÍCIO DE TUDO

O INÍCIO DE TUDO
      
“Nem o Não-Ser existia então. Nem o Ser.
Não existia espaço, nem o firmamento além dele.
Quem se movia então? E onde? Sob a guarda de quem?
Seria a água insondavelmente profunda?
Não existia a morte. Nem a não-morte.
Não havia nenhum sinal separando a noite e o dia.
Só o Uno respirava sua própria força,
Sem que houvesse Sopro.
Fora disso, nada havia.
Nada, nada.
No começo as trevas estavam escondidas pelas trevas,
Este universo era somente onda indistinta...”
(A Origem Rigveda – 1º milênio a/C - Índia)

No início era o Verbo. O Verbo e todo o Universo que ocupava um espaço do tamanho da cabeça de um alfinete. E Deus olhou ao redor e só viu o vazio soberano e o maciço da escuridão. Não havia o abaixo nem o acima. Nem o lado esquerdo, nem o lado direito. Era a desolação em sua total plenitude. O Princípio Original, sem começo, meio e fim. Não existia o Tempo. Não havia ontem nem amanhã. Passado, presente e futuro eram um só tempo. E Deus se sentiu o mais solitário dos imortais. A solidão era a solidez do vazio. A luz não existia porque não existia o amanhecer e a insônia era eterna. Então Deus, consciente da sua imensurável força e do seu poder infinito, disse: “Faça-se o Tempo!” e o estopim do Universo foi aceso, irradiando uma colossal energia, criando as galáxias, os astros e as estrelas, vagando em harmonia etérea em volta de sua magnífica solitude, moldando um espelho da Sua paranormalidade existencial, refletindo a grandeza diáfana de Sua Consciência Cósmica.  O Tempo passou a existir e todas as coisas criadas por Ele se tornaram evanescentes sob o seu domínio, tendo início, meio e fim, sendo que esta seria uma Lei Universal, plena e irrevogável. Somente o Tempo seria infinito e Ele, o criador do Universo, era o próprio Tempo, transcendente no tempo e espaço, imutável e eterno, senhor absoluto sobre todas as coisas.

Deus nasceu no exato instante em que o homem passou a andar sobre duas pernas, tomou consciência de sua existência na Terra e viu o Sol surgir no horizonte para afugentar as trevas. Compreendeu, com indubitável clareza, o poder supremo da luz sobre a escuridão.

Deus tomou forma incognoscível e metafísica quando o homem olhou para o céu tentando interpretar o arcano do Universo e admirou o resplendor de milhões de estrelas cintilantes e cometas errantes bailando no vasto infinito. Então ele sentiu que não estava sozinho e que uma força invisível e superior ordenava e harmonizava as galáxias em torno de um eixo transcendente.

Finalmente, o homem orou a Deus quando veio a noite e ele acreditou no sobrenatural, sentiu medo da sombra projetada pelo clarão da lua, temeu os raios e as tempestades e carregou a morte em seus braços, o que seria a irrefutável prova da sua fragilidade material. Instintivamente recuou apavorado e clamou por um deus onipresente, onisciente e desmaterializado, que se tornasse dono do seu corpo e de sua mente e se fizesse à sua imagem e semelhança.  

A partir daquele instante estava criada a religião. A Natureza e o Cosmo manifestaram-se como realidades sagradas (hierofanias) e o homem então, desde esse momento primitivo, em qualquer parte da Terra, usando os mais diversos nomes, imagens e crenças, procura, na religião em si, a verdadeira face de Deus, por acreditar piamente ser esta a resposta para a sua própria eternidade.

          Podemos definir a religião, hoje, como um canal metafísico para se atingir o Sagrado e a Realidade, não importando qual caminho devamos seguir, pois o Sagrado é a espiritualidade que reina dentro de cada um de nós e a Realidade manifesta-se no grito assustado da criança em contato com a água batismal, na queima de incenso e nas oferendas à imagem do Buda nos mosteiros monásticos, na leitura do Torá nas sinagogas, no peregrinar em penitência à cidade de Meca e no jogo de búzios e passes espirituais nos terreiros. Cada povo com sua deidade, cada deidade com sua religião, cada religião com o seu deus e os homens, tomados pela vaidade de serem Sua imagem e semelhança, desdenham do livre arbítrio e digladiam em nome do mesmo deus, que, onipresente, a tudo assiste entristecido com a soberbia intolerante de Sua criação.  

N.A. - Etimologicamente ainda é indefinida a origem da palavra “religião”, havendo várias propostas históricas, sendo que a primeira definição ocorreu na obra de Cícero, “De natura deorum”, (45 a.C.) e a última por Macróbio, no século V, d.C.      




segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Nem todo fim é the end




– Não há nada mais a se dizer, a não ser adeus! Aqui nossos caminhos se separam e, para a nossa felicidade, é bom que não voltem a se cruzar.

Assim sentenciou Carmesita, sem emoção nem compaixão. Inflexível e seca, sem chances para recursos ou apelação.  Impessoal, como se falasse ao vento.

Não era um rompimento qualquer, de paixões platônicas ou amores transitórios. Havia uma história, com início, meio e, agora, o fim. O desenredo de um relacionamento apaixonado, vibrante, cujo “adeus” nunca fora cogitado. Mas nada dura para sempre, nem mesmo os amores eternos.

– Eterna é a areia porque não padece de sentimentos – falou um amigo quando ele desafogava o peito numa mesa de bar – As mulheres são assim mesmo: imprevisíveis. Hoje nos amam como se fôssemos o único; amanhã nos desprezam na mesma intensidade, sem rancores nem pudores. Isso quando não depenam nossa conta bancária. Ah! As mulheres...
– São umas vacas, sem sentimentos! Fingem-se boazinhas até nos envolver até o pescoço nas teias sinistras da paixão e depois vão embora como se nada tivesse acontecido. Vacas!
– Garçom, mais uma rodada de cachaça! Meu amigo aqui precisa afogar suas mágoas num copo de aguardente. Vou de carona, solidário. Aproveita e traz duas lingüiças fritas.
– Foram três anos juntos. Falávamos por telepatia, de tão envolvido que estávamos. Ela dizia me amar para sempre, que nem a morte nos separaria, pois morreria também caso eu fosse primeiro pra terra dos pés juntos. Prometia ressuscitar Shakespeare numa tragédia tupiniquim.
– De certa forma ela cumpriu a promessa...
– Como assim?
– “Há mais mistérios entre as mulheres do que sonha a nossa vã filosofia”.
– Nada. As vagabundas são previsíveis. Eu é que não soube ler nas entrelinhas do nosso dia a dia. Deixei me enrolar na conversa mole, carinha de santa, jeitinho de anjo e eis o resultado: estou aos frangalhos por dentro, à beira de um colapso emocional. Como dissolver essa sensação de perda moral e espiritual? Como encarar a cama sem o ronco daquela ingrata?
– Dê tempo ao tempo. Lembra-se daquele presidente que corria com a camisa escrita “O Tempo é o Senhor da Razão”?  Então, tudo se ajeita com o passar do tempo, menos a morte, claro. Por falar nisso, nada de fazer besteira, viu? Nenhuma mulher vale a vida de um homem.
– Me lembrei de Serafim. Coitado de Serafim! A esta altura até seus ossos já serviram de banquete aos vermes.
– “In pulverem reverteria”.
– Como?
– “Ao pó voltarás”. Latim. Está escrito na entrada do cemitério da minha cidade. E é o que resta de Serafim: pó. Não pensei que ele fosse tão fraco de espírito. Bastou a mulher ameaçar se separar, pra meter um tiro na cabeça, como se isso resolvesse alguma coisa. Queria o quê? Só vivia na esbórnia, passeando com as vagabundas pra cima e pra baixo enquanto a mulher ralava o dia todo. Mais dia, menos dia, ela iria ficar sabendo da sua vida de putanheiro.  
– E ainda deixou duas vagabundas grávidas pra dividir a herança.
– Acho que essa parte chocou mais a viúva do que o suicídio em si.
– Os suicidas vão pro Céu?
– Como é que vou saber? Nunca me suicidei. Mas aposto que a mulher do Serafim reza todo dia pra ele não ir. Ela quer que ele fique vagando por aí, vendo-a dar o troco, saindo com um e com outro todos os dias. Era tão recatada e virtuosa e agora liberou geral. Como diz o provérbio francês: “A quelque chose malheur est bon”.
– Traduza.
– “A desgraça serve para alguma coisa”. É o nosso “há males que vêm pra bem”.
– Ou: “morre o cavalo a bem do urubu”. Garçom, outra rodada! Vamos deixar os mortos de lado que continuamos vivos. Quero dizer: você. Eu ainda estou na dúvida, posto que a chama que mantinha acesa a minha vontade de viver se apagou quando a ingrata me disse adeus.
– Para com isso, cara! Mulher é como ônibus: você perde um, logo vem outro.
– Ou como alça de caixão: um larga e outro põe a mão. Por falar em caixão: quanto custa o enterro de um indigente?
– Temos que perguntar ao prefeito... Mas por que você quer saber?
– Por nada. Só curiosidade. Os ricos gastam tanto em enterros pomposos e no fim, ricos e pobres, se encontram no mesmo buraco. Está com dinheiro aí pra pagar a conta? Estou a zero.
– Fique frio. Vamos pro puteiro? As putas amam melhor quando pegam um cara mal resolvido sentimentalmente. Nesse amar transitório, elas querem garantia de estabilidade. Ou seja: se aproveitam das nossas carências afetivas pra nos engabelar emocionalmente. Assim nos enredam e acabamos nos casando por puro arranjo sentimental. Mas há uma grande vantagem nesse tipo de casamento: elas podem não nos amar, mas são fiéis para sempre.
– Se eu fosse corno ia pra um pagode. Mas acho que não é o meu caso. Tenho um tio, bem situado na vida, que se casou sete vezes. Sete. Das sete mulheres, seis eram da vida, putonas mesmo. O mais incrível é que a única que botou chifre nele foi justamente a que não era puta e se passava por santa, comendo hóstia toda semana.
– Isso é comum. Desses meus trinta anos, quinze vivi perdido nos bregas da vida. E a única doença venérea que peguei foi da namorada, uma mocinha de família quase perfeita. Garçom, mais duas doses de aguardente!  E a conta!   
– Vou tirar a água do joelho.

Levantou-se cambaleante. O álcool subiu à cabeça, mas não com intensidade suficiente para ofuscar seu sentimento de perda, sua sensação de abandono. Carmesita foi tudo na sua vida e, sem ela, não sabia como recomeçar. Pensou em seu amigo Serafim e então compreendeu suas razões em pôr a termo a própria vida. Seria ele também um suicida em potencial? Olhou para o prédio em frente e imaginou se atirando do último andar. A cena seguinte: o corpo estendido no chão, um monte de curiosos atrapalhando a polícia técnica e o trânsito congestionado. As manchetes sensacionalistas no outro dia: “Bêbado pensou que podia voar”. Ao lado da notícia, a foto do morto com um jornal cobrindo seu rosto. Ao fundo, um vendedor de churrasquinho de gato cantando João Bosco: “Tá lá um corpo estendido no chão...”.

Carmesita não saberia que o morto era ele. Não pela foto dos jornais. Mesmo assim exclamaria indignada: “O miserável ainda teve a petulância de atrapalhar o trânsito! Esses suicidas deviam ser presos e enforcados! Morte aos suicidas!”

Saiu do banheiro e tornou a olhar o prédio em frente. Contou os andares: dez. Quanto tempo levaria em queda livre até chegar ao solo? Seria o suficiente para sentir o gosto de voar? Descoberta inútil essa: não teria o prazer de contar a mais ninguém.

Dirigiu-se à porta de saída do bar e parou na calçada, vacilante. O sol estava a pino, próprio pra se cometer suicídio. Teria coragem? Acenou para o amigo, antes de atravessar a rua.

– Vamos, porra! As putas não podem esperar!