quarta-feira, 16 de julho de 2014

Aconteceu naquele São João



Eu estava lá, nas brenhas das brenhas de uma serra de um lugar chamado Serra do Aporá, pulando a fogueira, bebendo licor de jenipapo e dançando forró ao som da sanfona, triângulo e zabumba.

Salão de chão batido, candeeiro pendurado no reboco da parede, sanfoneiro cochilando, poeira levantando e eu no meio da multidão dos dançarinos trocando passos entre o xote e o pau de porteira. De vez em quando alguém gritava “Viva São João!” e todo mundo respondia “Viva!”

No curto intervalo que o sanfoneiro fez para molhar a garganta, ousei satisfazer uma curiosidade com a parceira da contradança, uma mocinha da região:

- Diz-me uma coisa, meu bem, porque em todo homem que encosto sinto um negócio duro dentro da camisa?

- Ah! Isso é o cabo da peixeira!

Amarelei. O fole voltou a roncar, o zabumbeiro a zabumbar, pedi licença à moça e saí de fininho para o terreiro e fiquei olhando o crepitar da lenha na fogueira até a hora que um grito ecoou casa afora:

- Olha a faca!

A carreira foi tanta que ninguém retornou para ver se havia algum corpo estendido no chão.
  

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Cineas Santos - O jogo é jogado



               Reza a crença popular que só existe um pecado que Deus não perdoa: a soberba. Falta-me competência teológica,digamos, para negá-la. Particularmente, considero a inveja e a soberba  dois dos sentimentos mais torpes que o ser humano é capaz de agasalhar no coração. Mas vamos ao que importa: a seleção brasileira perdeu a Copa por  soberba e incompetência.  Pouco antes do início do torneio, Felipão, com a teimosia dos que quebram,mas não vergam, afirmou: “Ao Brasil só interessa ganhar a Copa”. Seus pupilos fizeram coro. A máxima era  “vencer ou vencer”. Ora, participar de um jogo – seja de lançamento de cuspe a distância ou porrinha  – é admitir a possibilidade de perder, por mais desagradável que isso possa ser. Em qualquer disputa, não se pode desprezar o poder do imponderável.

          A pior coisa que aconteceu à seleção brasileira foi vencer a Copa das confederações (2013). Ao derrotar México, Uruguai e Espanha, os “meninos de ouro” perderam a noção de chão, lugar onde, normalmente, se joga futebol.  A seleção mais cara do mundo entrou em campo para um passeio. Só se esqueceu de combinar com os adversários, como teria dito Mané Garrincha, antes de uma preleção, no Botafogo. Não bastasse a confiança excessiva, jogaríamos em casa, contando com a participação de milhões de brasileiros. Sob a inspiração de Neymar, a seleção escorraçaria, de uma vez por todas, o espetro do “maracanaço”(1950) que ainda ronda o Maracanã. O mais dispensa comentário.

          É lugar comum, entre os fazedores de palestrar motivacionais, a máxima: “aprende-se mais com as derrotas do que com as vitórias”. Pura balela. Só se aprende alguma coisa quando há efetiva disposição para fazê-lo. O que aquele grupo de meninos riquinhos, jogando nos clubes mais famosos do mundo, tinha a aprender sobre as artes e artimanhas de um esporte que já lhes deu grana, fama e louras?  Havia mais preocupação em exibir penteados exóticos do que em jogar futebol. Parafraseando Cazuza, Casagrande bradava pateticamente: “A gente não quer só ganhar...”      É escusado lembrar que a zaga mais cara do mundo tomou gol até da  prosaica seleção de Camarões. Convenhamos que é humilhante para quem contava como certa  a sexta  estrela.

           Depois do vexame dia 8, capaz de envergonhar até as menininhas que não sabem distinguir a bola dos jogadores, pode-se afirmar que só sobreviveram ao tsunami, Fuleco, que nem entrou em campo, e Neymar que, no papel de mártir, poderá reacender o mito de Dom Sebastião, o glorioso.

          Já circula na internet a informação de que a famosa camisa 7, que já foi honrada por craques do tope de Garrincha, Jairzinho e Bebeto, para citar apenas os mais famosos, será definitivamente banida da seleção canarinho. O governo, sempre sensível às questões importantes, estuda a possibilidade de retirar dos dicionários o verbo amarelar para não comprometer a virilidade das futuras gerações. O mais permanece. Brava gente!
         

domingo, 13 de julho de 2014

Das aranhas que não se deve ver



A minha mãe nasceu mais para conselheira do que para ouvidora. Quando alguma amiga dizia ter medo de aranha, ela aconselhava:

- Se não quiser ver uma aranha, não se desnude diante do espelho.

Como eu não tinha medo de aranha, tirei a roupa diante do espelho e o bicho que vi era outro. Corri assustado para a sala e interrompi as inconfidências femininas:

- Mamãe, tem uma pulga atrás da minha orelha!

Ela me atendeu com a devida presteza e solicitude de todas as mães e me disse carinhosamente que não era pulga; era piolho. Em seguida, após matar o piolho a unha, pediu licença às amigas e raspou a minha cabeça e depois me deu uma surra de chinelo de couro de boi que era para aprender a não andar nu dentro de casa, principalmente no dia que ela recebia visitas para o chá das cinco.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Susana Ventura - Até a lavagem dos cestos ainda é vidima



Estou triste. Perdemos de 7 a 1 para a Alemanha, escrevendo nova página inacreditável da história do futebol.

Ontem eu já tinha escolhido ver o jogo sozinha pela primeira vez nesta Copa. Trabalhei cedo, almocei na rua e voltei para casa, onde me preparei. Mandei o SMS do costume para um amigo torcedor que vive do outro lado do país e liguei a internet ruim que tenho em casa.

Dei uma volta ao mundo pela rede social, curti os amigos. Dois queridos se fotografaram juntos, ela esticava a bandeira e exibia o sorriso largo, ele ostentava óculos engraçados que cobriam seus olhos bonitos.  Outros dois, pai e filho, postaram a partir do estádio, felizes e encheram meu coração de alegria.

O jogo começou e não é preciso que eu seja cronista daquele primeiro tempo...

Mas o pior ainda estava por vir e, para mim, não veio daquele coliseu em que fomos desesperadoramente massacrados. Mesmo com o sinal vergonhoso de internet eu fui atingida por aquilo que teve o condão de me deixar ainda pior.

O que dizer diante da informação de que, bem perto da minha casa, um grupo queimava a bandeira do Brasil? E da comemoração imediata de vários dos que torciam ‘contra’  e que, naquele intervalo, postavam na rede social seu ‘alívio’ no estilo ‘que bom, agora o POVO vai cair na real e o país vai voltar ao normal...’

Muitas palavras em torno de ‘pão e circo’ celebravam a tragédia em andamento. A mesquinharia de negar o prazer ao outro, associando sempre a alegria à alienação me atingiam em cheio.

Segundo tempo e,  depois, ainda com o Brasil se retirando de campo, fui de volta para a internet.

A decepção ainda não havia terminado para mim: em tão curto espaço de tempo já se havia procurado e encontrado a quem atribuir a culpa: ‘A culpa é TODA de...’, já se havia buscado também por ancestrais alemães. Houve quem achasse um trisavô, de quem sequer sabia o nome e se afiliado a ele, reivindicando o DNA dos vitoriosos.

Começava a aparecer para mim a necessidade de ter razão e a de ganhar sempre, a qualquer custo.
 
Este amor não serve? Ok, vamos abandoná-lo e largar seu cadáver ainda insepulto. Comecei a ter medo, real, da gente que se recusava a sentir a dor que deveras deveria estar sentindo e se jogava desesperada em outras direções.

Os heróis absolutos até ali se tornavam ‘vagabundos’ que não honravam o salário recebido e mereciam o rancor. Aparecia exposto o desejo de que ficassem na miséria, que tivessem que andar pendurados nos ônibus ao final de jornada de trabalho exaustiva e mal paga!

Pior, parte daquela massa de gente abandonava o barco e corria para a rede social para falar da próxima paixão, da próxima vitória esperada: a política. Na mesma chave de interpretação dos que buscavam em si alguma genética que possibilitasse estar no lugar dos vencedores.

Saí, fui tomar ar e pelas ruas do meu bairro, feio como de hábito e ainda deserto na noite de ontem. Caminhei triste demais, me dando conta do medo que eu tenho de quem não goza quando está gozando e não sofre quando está sofrendo.

Aprendi há tempo que, na época em que temos a colheita da uva, em que estamos na lida e no processo, até a lavagem dos cestos ainda é vindima. O trabalho termina somente quando lavamos os cestos em que colocamos os cachos, os secamos e guardamos até o próximo período.

Não saímos no meio da colheita atrás vindimar as uvas doces de outro lugar largando a nossa casa, a nossa terra, a nossa parreira, os nossos parceiros. Não maldizemos a terra, a uva, as ferramentas, os adubos, o sol, a chuva, os vizinhos, pela colheita ruim ou pela uva amarga.

A Copa continua, continuamos na Copa, temos jogo no sábado para disputar o terceiro lugar, honroso sim. Ainda é tempo de vindima e, no entanto, onde estamos?

Susana Ventura é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, professora do Ensino Superior e autora de ficção, ensaios e obras para formação de professores.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Independência da Bahia - Procura-se um herói branco





Há quem diga que o corneteiro Lopes nunca existiu. Há quem diga que os mortos e heróis dessa guerra foram índios escravos, negros escravos ou caboclos escravos das necessidades. Há quem diga que tudo não passou de uma guerra particular entre os senhores de engenho do Recôncavo baiano e a elite portuguesa que residia na Cidade da Bahia e que era dona do porto de Salvador e queria cobrar preços exorbitantes para embarcar o açúcar. Há quem diga até que o baiano alforriado ficou mesmo foi no Mercado Modelo jogando porrinha e tomando umas e outras com caldo de lambreta na barraca do Xacrinha enquanto o couro comia no bairro de Pirajá. "De noite a gente vê no Beatevê o placar da guerra", diziam. Mas eis que vos digo: a Bahia é mais que o Mercado Modelo e o Pirajá. Ocupa quase um quarto do mapa do Brasil, tem mais de quatrocentos municípios, e - pasme! - na cidade de Simões Filho, vizinha a Pirajá, ninguém sabia que existia guerra. Nem em Alagoinhas, nem no Junco, nem em Cruz das Almas, nem em Ilhéus, Feira de Santana, nada, afora Salvador, Cachoeira e Santo Amaro, cidades envolvidas, ninguém sabia que a Bahia estava em guerra contra os portugueses. Até a promulgação da Constituição baiana, em 1989, o 2 de julho só era feriado em Salvador e nas cidades do Recôncavo. Os outros quatrocentos municípios continuavam sem saber que houve uma guerra. Mas, como a história é escrita pelos vencedores, fiquemos com a versão oficial, que vai logo abaixo.

Em sete de setembro de 1822 D. Pedro deu o Grito do Ipiranga e foi para um bordel tomar cachaça e fornicar com as putas. À sua sombra, soldados e bajuladores, pois isso não é coisa d’agora. Enquanto ele mostrava a sua espada para a Marquesa de Santos, o pau comia entre baianos e portugueses na província da Bahia. Por quase um ano o baiano lutou bravamente contra os homens d’el-rey para defender o então solo pátrio. Luta campal renhida e desigual, que ficou conhecida como a Batalha de Pirajá, por um acaso afortunado do destino os portugueses não levaram a melhor: vendo-se acossado, o comando em terra das forças baianas deu ordem ao soldado Lopes, corneteiro da tropa, para dar o toque de retirada e evitar mais mortes. O corneteiro se atrapalhou e, em vez do toque de retirada, mandou para o ar o toque de “avançar”. Os soldados índios, os soldados caboclos, os soldados negros escravos dos senhores de engenho do Recôncavo, aliados aos rotos soldados do Imperador, cresceram em coragem e fé e partiram com vontade para cima dos portugueses, que fugiram até o mar do Porto da Barra e lá entraram em suas naus e escafederam-se na Baía de Todos os Santos, perseguidos pelo almirante Lord Cochrane, contratado de última hora pelo Imperador para reforçar os bravos combatentes baianos na sua luta desigual.

O Sete de Setembro na Bahia é apenas um feriado a mais, sem muitas comemorações. A festa cívica dos baianos acontece na data de aniversário em que o corneteiro Lopes pôs os lusos para correr. Apesar de ser Inverno, o Sol abre alas para as escolas desfilarem em trajes de gala. Alegorias revivem a trajetória vitoriosa, do Pirajá ao Campo Grande, local da última batalha, cujos monumentos lembram os heróis da independência da Bahia. Um dos bairros mais chiques de Salvador, a Vitória, ganhou esse nome em homenagem à data Magna baiana, inclusive a sua principal rua chama-se “Corredor da Vitória”, onde a tropa lusa levou as últimas bordoadas antes de fugir pelo Porto da Barra.

Então, nesse histórico e inesquecível dia, 2 de Julho de 1823, teve início a Primavera do baiano, que lutou bravamente, não pelo seu Imperador, mas por uma pátria chamada Senhores de Engenho do Recôncavo.


Os heróis dessa guerra são três: Joana Angélica, a freira que peitou os soldados portugueses e representa o místico; Maria Quitéria, que se disfarçou de homem para poder se alistar no Exército e representa a transgressão; e o corneteiro Lopes, o soldado trapalhão que virou piada.