sábado, 22 de dezembro de 2018

Então é Natal


Não gosto de Papai Noel. Nem do jingolbéu. Os sinos da minha infância faziam ding-dong. Ding era o repique, dizia o sineiro aos meninos amarelos de pés descalços. Na véspera do Natal o galo cantava e o sino fazia bléim, bléim e o padre chegava na porta da igreja e anunciava:

- Cristo nasceu!
- Aonde?
- Em Belém.
- E onde fica isso?
- No Pará.
- E onde fica o Pará?
- No cu da sua mãe!
- No seu! E perdeu o dízimo!

E o povo seguia em procissão para ver a lapinha de tia Pureza, tão pura quanto o nome, e a todos recebia com um largo sorriso no rosto. Era a única lapinha que merecia ser visitada. Não porque as outras não prestassem, não era nada disso. É porque não havia outras. O povo não era chegado a certas tradições consumistas. O Natal era só um motivo para se ir à missa do galo. Enquanto isso, os solteiros se divertiam na paquera num parque mambembe que sempre aparecia.

Quando o sino tocava três vezes era hora de se ir à missa. O padre aproveitava o momento fraterno para contar o nascimento de Jesus numa manjedoura e a matança que Herodes promoveu. O povo chorava penalizado das criancinhas passadas a facão, mas logo esquecia quando os Reis Magos chegavam com presentes. Presente é presente, mesmo não servindo para nada, como era o caso da mirra e do incenso.  Essa era a parte que o padre mais gostava de contar porque comovia os fiéis e eles não mediam sacrifícios na hora de colaborar com o enxoval do menino santo. E foi num momento assim que o padre se empolgou e revelou um dos mistérios de Deus:

- Imaginem que castigo para uma criança ter que nascer num coxo de se colocar comida pra cavalo.
- Coxo?
- Sim. Coxo. Manjedoura é coxo.
- Que padre mentiroso da gota serena! O rei dos reis ia nascer num coxo?! O senhor é um herege, um comunista! Quem nasceu num coxo foi a sua mãe! E me dê meu dinheiro de volta que não vou ficar num conluio com comunista numa noite de Natal!

Estava formada a confusão. O sacristão, que tinha a mesma cara do padre, não gostou da ofensa à mãe do sacerdote e meteu o castiçal na cabeça da ovelha rebelde, que caiu desacordada e jorrando sangue. O delegado, que estava na missa, deu voz de prisão ao sacristão, o padre não gostou e chamou o delegado de “chumbeta de Belzebu”. Sem alternativa, o delegado levou o padre também preso, por desacato à autoridade. A minha mãe, que a tudo assistia horrorizada, fez pelo-sinal, me pegou nos braços, me fez entrar na Rural da Prefeitura e me levou para a emergência médica antes que eu tivesse uma hemorragia.

sábado, 25 de agosto de 2018

Cristo já voltou

Jesus resolveu descer à Terra novamente e, aqui chegando, se disfarçou de médico. Vestiu branco, colocou avental e entrou no primeiro hospital que encontrou. Mandou o médico plantonista embora e chamou o primeiro paciente. Entrou um paralítico na cadeira de rodas. Jesus olhou para ele e ordenou:
- Levanta-te e vai embora!
O paralítico se levantou e saiu empurrando sua cadeira de rodas. Na sala, um curioso quis saber como era o novo médico:
- É igual aos outros. Nem me examinou. Assim que entrei me mandou levantar e ir embora. São todos uns enrolões!

sábado, 18 de agosto de 2018

A mulher perfeita

Ele vê uma mulher perfeita desfilando pela calçada; corpo escultural, sensualidade de ninfa e quando ela deixa cair o lenço dois passos adiante, ele diz:
- Ei... fofinha!
Ela se abaixa bruscamente, recolhe o lenço à bolsa, vira para trás e diz:
- Fofinha é a puta que lhe pariu!
E segue em frente com seu andar provocante em busca de uma alma que saiba a diferença entre um corpo de mulher e uma almofada.

A primeira vez a gente nunca esquece

Era a primeira vez que ia ao brega. Na parede, a tabela de preços:
"Sem sacanagem - R$ 30,00"
"Com sacanagem - R$ 100,00"
Conferiu a carteira e optou pelo último. Com sacanagem é melhor. Pagou e adentrou um corredor que lhe indicaram. Havia uma porta para outro corredor, e mais outra e quando abriu a terceira, viu que estava na rua. A porta fechou atrás dele. Um grito de revolta quebrou o silêncio da noite:
- Mas que sacanagem!!!

Em caminho de paca...

- Está em Campo Grande?
- Estou. E vim com meu namorado.
- Então dê cabeça de pacu a ele.
- Certo, tia.
...
- E aí, seu namorado gostou?
- De que, tia?
- Da cabeça de pacu.
- Xiiiii! E era pacu?! Entendi errado e dei outra coisa!

Dos nomes que a gente tem

Aqueles que nunca tiveram um apelido na infância, jamais terão uma boa história para contar. Se batizar João, se crismar João, se formar João e morrer João ou outro nome qualquer, que graça tem? Êta vida besta, meu Deus! A verdadeira felicidade consiste em se ter um nome para cada ocasião. Quem não tem, trate de inventar um.

Jorge Silva Pacoa, o dileto sobrinho de Maricas Coxeba, empacou ao ler um livro meu e descobrir que a sua tia, uma Guimarães de rocha, tinha esse apelido. Ao contrário do povo do Junco que todo mundo foi, é ou será Cruz e o que diferencia uns dos outros são só os apelidos, o povo de Inhambupe tem essa mania de grandeza com o nome e sobrenome, apesar de agora abundar os “dos Santos” e “da Silva”. Vou lhe processar! disse-me ele com todos os sinais gráficos do mundo. Desafiei-o: vamos ao Junco saber se lá existiu alguma Maria José Guimarães. Ele foi. Andamos de boteco em boteco entrevistando o povo, pagando cachaça a uns, tira-gosto a outros, e ninguém nunca ouvira falar nesse nome. Nem os mais velhos, nem os mais moços, nem os que ainda iam nascer. Mas quando a pergunta era sobre Maricas Coxeba, ah! todo mundo abria um largo sorriso: foi uma grande mulher! Até os fedelhos diziam que sabiam quem era. Ou melhor, quem foi.

Maricas Coxeba foi a mulher mais importante do Junco, depois da primeira-dama e da esposa de Zé do Padre, o motorista do ônibus que acordava o povo às cinco da manhã para conduzi-lo até Alagoinhas. Escrivã da terra, aquela que escrevia “é verdade e dou fé”, se se candidatasse a prefeita ganhava de lavagem. Mas como a política é machista, nunca lhe deram essa chance.

Devo a ela a minha sobrevivência. Sem ela, seria um moço mais triste do que sou hoje. Ou melhor, já teria morrido de tristeza. O que ela fez por mim é digno de entrar nos anais da história.

Era um dia de sol, como todos os dias eram, e o meu irmão mais velho, famoso no lugar por ser jornalista em São Paulo, chegou na surdina para tomar um copo de umbuzada, coisa que em São Paulo não tem, disse ele. Quer dizer, acho que disse, pois eu era pequeno e não me lembro bem. Foi uma festança. Meu pai mandou matar um carneiro e as mulheres da redondeza ocuparam o terreiro. Era mulher que não acabava mais, cada uma carregando uma cesta de umbu.
No auge da festa, ele prestou atenção em mim. Era a primeira vez que eu o via. Perguntou à minha mãe:


- Mamãe, como é o nome desse moleque?
- Moleque – respondeu ela, carinhosamente sentido asco.
- Não. Falo do nome de registro.
- Tonho de Lisboa.
- Tonho de Lisboa?! A senhora não sabe que isso não é nome de gente?
- Olhe pra ele: vê se isso é gente!
Ele me olhou penalizado, me deu um cascudo que afundou a minha moleira e retomou a conversa.
- A senhora não sabe que maltratar animal é crime?
- Mas ele não é um animal. É só um coisa. E Tonho de Lisboa é só um nome.
- A maioria dos Tonhos de Lisboa se suicida antes de completar os quinze anos.
- Sei disso. Foi por isso mesmo que dei esse nome a ele.
- E papai, o que diz?
- Toda vez que olha pro moleque, ele diz: “Se tivesse nascido mais feio podia matar que era monstro”. Satisfeito?
- Não. O moleque ainda tem jeito. Vou falar com Maricas Coxeba. 


Assim falou Zaratustra. Não sei o que ele fez para convencer a escrivã a mudar o meu nome, só sei que, graças a ela, consegui me livrar de ser um Tonho de Lisboa e transpor a adolescência sem a vontade de me matar.

domingo, 29 de julho de 2018

O dia que Maomé foi à montanha

No tempo dos faraós, Maomé subiu na montanha e admirou-se com a multidão lá embaixo parecendo um rebanho de ovelhas pastando. Encheu os pulmões de ar e iniciou o seu sermão tão esperado pelo povo escolhido de Allah (naquele tempo não havia evangélicos):

- Se algum de vocês aí embaixo disser que se eu não subir nessa montanha ela vai a mim, é um grandíssimo mentiroso e vai ferver no mármore do Inferno até virar torresmo numa bodega mineira! Essa montanha não vai a porra de lugar nenhum! 

Dito isso, desceu lentamente e cuidadoso para não escorregar, e caminhou na direção dos seus seguidores para sentir o efeito de suas palavras. Então, quando ele viu de perto aquela multidão que lá de cima da montanha parecia um rebanho de ovelhas pastando, percebeu que era, na verdade, um rebanho de ovelhas pastando.

Moral da história: Até Maomé precisa fazer exame de vista de vez em quando.

sexta-feira, 6 de julho de 2018

Linha do Horizonte

Eram tempos de sonhos, de se montar na cauda de um cometa e cavalgar pelo infinito em busca do pote de ouro no fim do arco-íris das galáxias.

1975, ano em que Josafá desmaiou de tanto caçar guerrilheiro no sol escaldante de céu límpido de abril nas ruas solitárias de Alagoinhas. Teve o azar de quebrar a coronha do fuzil na quina do meio fio e morreu de tanto apanhar para confessar quem era seu contato de Cuba que mandou destruir as armas do quartel. E quando cheguei em casa, atordoado com a notícia, a minha vizinha tocou essa música na sua radiola Taterka Linear estereofônica e automática, não sei se foi por sacanagem, mas a música foi repetida cinco vezes, e a cada vez ela aumentava o volume. Tirei a verde-oliva do corpo e fui para Zefão afogar as minhas angústias, porque os puteiros eram os melhores lugares para se sossegar um coração inquieto e uma alma em revolução. E lá, com certeza, não tocaria Azimuth.

Descansa em paz, Josafá!


quarta-feira, 9 de maio de 2018

A Gramática que estudei


Onde eu nasci, a Gramática desfilava no lombo de jegue. Eram meus bisavós que vieram importados de Portugal pelo Imperador Pedro II para elitizar o sertão. A elite falida portuguesa que tinha o sertão nordestino como opção para não apodrecer nas masmorras del-rey. Não trouxeram mulheres e, aqui chegando, se acasalaram com as índias, todas elas por livre e espontânea vontade do invasor.
Em tempos que não havia anticoncepcional, camisa de vênus e a Igreja não concebia o sexo com as índias um pecado carnal, a prole se tornou grande. Tão grande que faltou índia para os herdeiros e o cruzamento passou a ser entre primos, tios e sobrinhos.
Assim, se é que veio alguma gramática normativa com os aborígenes, essa perdeu-se no meio da caatinga onde brancos e índios conjugavam o Verbo Amar.
A comunidade cresceu. Virou arraial. Depois distrito. Abriram-se estradas e o povo descobriu outro povo além do horizonte. Um povo que lia livros, lia histórias, e mandava seus filhos para a escola. Sabia fazer conta de somar e dividir sem precisar usar pedrinhas ou os dedos. Seriam eles uns alienígenas?
Depois dessa descoberta a cidade nunca mais foi a mesma. Os filhos questionavam os pais, que questionavam o prefeito, que questionava a mulher e, esta, muito católica e devota de Nossa Senhora, perguntava ao padre, que ia lá de mês em mês rezar uma missa e extorquir os dízimos. “O que somos? de onde viemos? Para onde Vamos? E o padre respondia: “Há mais mistério entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”. E todos se ajoelhavam e diziam “amém!” Em seguida faziam fila para dar dinheiro ao padre e depois beijar suas mãos sagradas.
O meu avô, cujo pai exibia sua gramática normatiza num lombo de um jegue, era o chefe político do lugar e ficou matutando como resolver aquele dilema. Pensou dois anos e três meses e finalmente estalou uma ideia nos miolos: “Vou contratar um professor!”
Contratou um professor chamado Laudelino Mendonça, que ficou conhecido como “Professor Lau”, especialista em Gramática e doutor em tortura por palmatória. Sentia um prazer imenso ouvir os gritos de dor da molecada. E ai de quem gaguejasse na hora de conjugar o verbo sofrer!
Depois chegou a professora Tereza. Veio a Professora Serafina. Exigente feito o diabo, mas só usava a violência da palmatória como último recurso didático. E nos colocava pra ler. Ler, ler e ler. Aos seis anos de idade eu sabia Castro Alves de cor e salteado. Todas as fábulas de Esopo, Andersen, Irmãos Grimm e outros mais. Não nos ensinou Gramática normativa, mas lemos tanto que aprendemos a pôr os pontos nos is.
No ano seguinte nos mudamos para uma cidade maior. Estranhamento total. Parecia que o povo falava outra língua. Fui estudar em uma escola que ficava no fundo da igreja do bairro. Duas semanas depois a professora chamou a minha mãe para uma conversa muito séria:
- O que foi que esse moleque andou aprontando? – não esperou nem a resposta e já me deu um cachação.
- Calma, dona Durvalice, ele não fez nada! Chamei a senhora aqui porque seu filho está muito adiantado e vai ser transferido para outra escola.
A minha mãe me olhou penalizada, arrependida, e sussurrou carinhosamente no meu ouvido: “Se não fez nada desta vez, mais tarde fará. Me lembre pra descontar esse cachação”.
Fui estudar numa escola bem maior, mais bonita, e cheia de meninas de cabelos cacheados, arrumadinhas, e usavam perfume vagabundo. Foi amor à primeira vista. Nessa escola aprendi que Deus era substantivo abstrato e o que vinha depois era o verbo. Morfologia. Quem jia é sapo e a rã caminha. O que você disse? Vou mandar um bilhete pra sua mãe! Eu disse que estou sentindo falta do professor Lau.
Sintaticamente falando, eu era um sujeito simples perdido no meio de um mundo composto de bacanas. Se era táxi, por que não dizer “sintáxi”? Porque o nome dessa coisa é “sintache” e vou mandar outro bilhete para a sua mãe!
Nessa época os linguistas brasileiros ainda não eram nascidos e o que a professora dizia era lei. Quando a gente questionava alguma coisa, ela respondia “que era assim que estava na Gramática e vou mandar um bilhete pra sua mãe”. Ainda bem que não mandava pro meu pai.
Fui para o ginásio depois de passar por uma maratona de exames de admissão ao ginásio. No primeiro ano a professora de Português nos ensinou que o melhor caminho para se aprender o português era a leitura. Leiam! Leiam! Leiam!, dizia um tanto alucinada. “Leiam bula de remédio, leiam carteira de cigarro, leiam a Bíblia, leiam até o catecismo de Zéfiro!” Louca. O catecismo de Zéfiro era um gibi de sacanagem.
No quarto ano, pegamos um professor de Português rigoroso com a língua culta e bela, conforme Bilac. Pastor evangélico, não admitia um mas-mas. Errar a Gramática era o pior dos pecados. As provas que ele fazia eram sui generis. No quarto trimestre, depois de passarmos duas semanas suando a camisa no estudo dos verbos para fazermos a prova final, ele pegou o giz, foi ao quadro e escreveu: “Se você vê Ednilda, diga-lhe que enviei lembranças”. Em seguida falou: “Anotem essa oração, vão pra casa e amanhã vocês me dizem onde está o erro”.
Décadas depois, Dom Evaristo Arns soube desse caso e criou o movimento Tortura Nunca Mais. Escrever aqui que ninguém passou, é mera redundância. Todo mundo em recuperação. Ninguém, em tempo algum, ouviu alguém falar “se você vir”. E se falasse, seria chamado de burro, ignorante, metido a falar difícil sem saber. São as armadilhas da gramática normativa que nos põem em conflito com a sociedade falante que se acha dona dos saberes da linguagem, pois é ela quem gera e quem cria seus próprios caminhos de comunicação.
Passado esse dia fatídico, o professor nos deu uma semana para estudarmos todos os assuntos ministrados por ele no nosso quase um ano de convivência. Quem perdesse, iria fazer re-recuperação das quatro unidades. No dia aprazado, entramos na sala com o ânimo de quem se dá ao carrasco. O professor, que não passava de um metro e sessenta, nesse dia entrou na sala do tamanho de Golias. Nosso olhar era de terror e medo. Ele se acomodou na sua cadeira, nos mandou abrir o livro de leitura na página 131, e disse do jeito especial de quem tem o poder de mandar:
- Façam uma cópia desse texto! É a prova de hoje. Se errarem uma vírgula, um ponto, uma exclamação, uma cedilha, não esperem complacência de minha parte. Não há conserto para quem erra uma cópia.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

O Profeta

O povo da minha terra, religioso e temente a Deus, reuniu-se ao redor do forasteiro para ouvir sua pregação. A um sinal de silêncio, a multidão se calou. Então ele falou em tom profético para uma multidão de viventes que esperavam um milagre:
- Hoje eu vos darei a luz! Esta cidade, finalmente, sairá das trevas!
O povo chorou de emoção. Um jovem, com cara de fariseu, caminhou em sua direção e perguntou:
- Acaso és o Messias, senhor?
- Não. Sou o operador desse gerador de eletricidade que o prefeito comprou!

sábado, 31 de março de 2018

O Judas somos nós

Não malhemos o Judas no sábado de aleluia porque ele era o melhor amigo de Cristo. Foi traído pelas suas convicções, tais quais as nossas que nos levam a trair os ensinamentos Dele. Cristo era paz, era amor. Em nenhum momento Ele chamou Judas de traidor.

Judas viu a mulher grávida morrer de fome por causa dos romanos que levaram seus mantimentos como pagamento de tributo a Roma. Viveu pela vingança, acreditou em Cristo não como um rei metafísico, mas como o Messias que viria salvá-los conforme as profecias. Foi testemunha de todos os milagres de Cristo e acreditava que com umas simples palavras Ele destruiria Roma. Vendo Jesus se esquivar do confronto, forçou uma situação que levaria o filho do Todo Poderoso a reagir. O resultado todo mundo sabe.

Não houve o pagamento de trinta moedas. Isso foi invenção dos papas para vender Judas como traidor, do mesmo jeito que fizeram com Maria Madalena, transformando-a em prostituta. Os papas medievais tinham o dom de destruir reputações.

Ao defendermos a pena de morte ou a aniquilação daqueles que não comungam das nossas ideias, nós também estamos traindo Cristo em seus ensinamentos de perdão e paz.

domingo, 25 de março de 2018

Enquanto isso, numa prefeitura aí:


- Seu prefeito!
- Oi!
- Tô numa dúvida atróis.
- Desembuxe!
- Sabe, aquelas pracas de trânsito qui o sinhô mandou fazê...
- O qui é que tem?
- Num sei o qui escrevê.
- Coloca "Atenção, predestre".
- Mais num é quebra-mola?
- Adonde você vai colocar essas praca?
- Na roça.
- Passa carro?
- Não. Só carroça e carro di boi.
- Então vossuncê tá preocupado cum quê? Quem vai lê?

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Por onde andará a minha Amélia?

Ai, que saudade de Claudinha! Digo, de Paulinha. Aquela sim, é que era mulher de verdade. Passava fome e ainda achava bonito não ter o que comer. A Paulinha? Não. A Amélia. Amélia Cristina dos Anjos. Mas não era como a da música não. Só os poetas conseguem arranjar mulher assim. As tais musas. Deusas, rainhas, afrodites, ninfas. Nenhuma baranga. Carinhosas, gostosas, compreensivas e polidas. Mulheres sem TPM e crise existencial. Os mortais, como eu, têm que se contentar com marias e joanas, rainhas da impaciência, deusas da incompreensão, ásperas tal qual lixa grossa de raspar madeira, delicadas como elefante em loja de louça. A minha Amélia não era como a da música, mas era diferente dessas barangas de quinta categoria. Doce, alegre, sorridente, embora eu gostasse mais quando ela ficava de boca fechada. É que lhe faltavam três dentes na frente. Uma vez um candidato a vereador lhe prometeu uma dentadura postiça, ela ficou feliz, deu duro na campanha e depois de eleito, sumiu na buraqueira sem deixar rastro. E a nega ficou desdentada, expondo a boca de trave sem goleiro. Por isso que ela achava bonito não ter o que comer: não podia mastigar.

Um dia, achei que a sorte mudaria e apostei todos os meus vinténs na Amélia. Tudo. Um lance só. Vermelho, vinte e sete. Jogo no pano. Deu preto, dezessete, como no tango de Herivelto Martins e David Nasser. Amélia sorriu reconfortante e me perguntou a título de consolo: “Meu filho, que se há de fazer?” Em seguida deu-me um beijo delicado na ponta do nariz, virou as costas e desapareceu no breu da noite levando o crupiê à tiracolo.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

ONDE CANTA A ACAUÃ: OS OLHOS VERDES DE MARY

OS OLHOS VERDES DE MARY: De Olhos verdes Os olhos verdes de Mary suspiram por outro mundo além da Ladeira Grande. Seus pensamentos cavalgam sobre as nuvens br...

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

BRAZILINO VIEGAS: a escola dos meus encantos




A Escola Brazilino Viegas talvez não fosse a escola dos sonhos futuristas de muitos nos anos sessenta, mas foi a única que me permitiu sonhar sem medo de ser feliz. Vindo do sertão, onde fome rimava com precisão, a humanização e o acolhimento faziam parte do currículo dessa escola.


Disse-me um dos meus irmãos, que também estudou lá, que a diretora à época se chamava Perolina, porém não me lembro, pois não tínhamos contato com a parte administrativa. Minto: eu era useiro e vezeiro dos puxões de orelha na pequena sala da diretora.  Todavia, me lembro das professoras Dayse e Marilda, a primeira, minha professora, a segunda, do meu irmão. Também me lembro das notas: o meu irmão tirava dez; eu, nove vírgula nove.


“Dayse” foi o primeiro nome estrangeiro que aprendi, depois dos filhos de Dona Deusinha e Seu Totó, lá no Junco: Aimêe, Washington, Aidêe, e o último, Telmo de Totó. Este, brasileiro “ajuncado”, mas eu já não morava mais lá. 


A professora Dayse era um anjo encarnado. Doce criatura. Nunca mandou um bilhete para a minha mãe nos quatro anos em que fui seu aluno. Mas com a professora Marilda a história era outra. A minha mãe se alfabetizou lendo os bilhetes da professora. Faziam-me rasgados elogios, inesquecíveis para uma mãe zelosa como a minha: “Dona Durvalice, boa tarde. Seu filho é um capeta em forma de gente...” e desfilava dezenas de elogios que deixavam minha mãe emocionada, alegre ao extremo, feliz por poder exercitar o seu poder. Em apenas um mês que ela, a professora Marilda, substituiu a professora Dayse, a minha mãe fez calos na mão de tanto me bater. Sem falar das vezes que eu me reunia com os moleques da Cavada e tomava a correspondência que o meu irmão portava.


Os bilhetes foram de menos. Na Semana da Pátria a professora Marilda me promoveu a Duque de Caxias e fez questão de me recomendar: “Se gaguejar naquela famosa frase ‘Quem for brasileiro, siga-me!’, vai outro bilhete pra sua mãe”. E no dia da apresentação o nosso herói no Paraguai foi rebaixado a guarda noturno: o quepe do vigia da rua foi a única vestimenta a caráter que consegui para parecer um marechal do Imperador. O comandante do 4º Batalhão de Polícia Militar, convidado de honra da diretora, olhava para mim e sorria zombeteiro, mas a minha interpretação foi tão convincente que ele, no final, aplaudiu de pé.


Lembro-me dos olhos verdes da minha colega Iara, o boto vermelho das minhas paixões. O meu coração acelerava quando ela me pedia um lápis emprestado ou para lhe ensinar alguma coisa. Foi amor à primeira vista e durou até o dia que o colega Belchior arranjou trabalho de cobrador da Kombi que fazia linha Santa Terezinha – Centro, e a deixava viajar de graça. Então ela nunca mais me pediu para lhe dar pesca ou outra coisa qualquer. Iara, santa desilusão amorosa! Foi a minha primeira experiência com o capitalismo selvagem e então procurei um livro de Karl Marx na biblioteca da escola. Sentia-me o proletário do amor sendo massacrado pelo poder econômico. É certo que virei materialista de carteirinha, mas sentia uma falta danada do sorriso de Iara.


Tornei-me frequentador assíduo da biblioteca, que ficava no segundo andar. Era uma sala encantada, cheia de histórias de príncipes e princesas, de monstros marinhos e pavões misteriosos. Como não encontrei o livro de Marx – e não podia encontrar, vivíamos sob a proteção da Ditadura Militar – fiquei fascinado por Andersen, os Irmãos Grimm, e as fábulas de Esopo. E toda semana eu levava um livro para casa e me imaginava um príncipe encantado salvando a princesa Iara das masmorras sebentas e fedorentas onde ela vivia prisioneira.  


E assim, de conto em conto devorado, andei regurgitando as minhas fantasias em um mundo cuja realidade não nos permite mais a simbiose dos sonhos e cismas ideológicas. 


Meus parabéns à Escola Brazilino Viegas que neste ano está completando seu octogésimo aniversário.