sexta-feira, 14 de maio de 2010

A Diligência - Luís Pimentel

De Retrato falado





Era eu mais o cabo Chico, na empreitada. O cabo era responsável pela diligência, por conta da patente, só mesmo pela patente. Apesar de soldado raso, sempre fui mais destemido do que ele, é bom que se diga.

Não que Chico fosse frouxo, não era bem assim. E não digo isto pelo fato de ele ser meu superior, pois não sou de me curvar a formalidades nem me presto ao ofício de puxa-saco. Mas a verdade é que se tratava de homem de costumes muito jeitosos e delicadeza de alma inaceitáveis para quem tinha que lidar com indivíduos de má índole, salafrários, gatunos e até assassinos.

Muitas vezes, na sala de interrogatório – melhor lugar para se destrinchar uma questão e se ler a natureza de um sujeito bom ou mau –, vi o cabo Chico demonstrar moleza incompatível com a farda, dispensar a verdadeiros facínoras tratamento que deve ser dispensado só a homens de bem. Coração mole. Maior tolice que um homem pode fazer é dar ouvidos e coração a quem não deve.

Eu dizendo gente ruim é gente ruim, cabo, não perca seu tempo, meu amigo. Ele respondendo soldado, deixe disso, soldado, não julgue um filho de Deus pela aparência nem acuse ninguém de ter feito um malfeito só porque disseram que o malfeito foi feito. O infeliz se aproveitando dos bons sentimentos do coitado e repetindo é isso, cabo, pois é isso, meu cabo, é o que tenho dito aqui desde o dia em que cheguei. Mas esse soldadinho aí não me escuta e só quer saber de bater e bater, como se estivesse lidando com um jegue empacado.

E o inocente do Chico me condenando, não quero saber de valentia aqui dentro, rapaz, interrogue sem apelar para a maldade, não faça isto, pois não aceito violência aqui, soldado, como se eu fosse o meliante e o outro o bonzinho. Já se viu?

Não que às vezes o sangue não ferva, a mão não fique pesada e eu não perca a cabeça. Acontece. Mas não tinha acontecido ainda com aquele peste sem vergonha, e isto foi o que mais me doeu. Eu dizendo não encostei a mão nesse traste, cabo, e o cabo gritando não minta, não minta, soldado, que o homem está com o olho roxo, a testa aberta, o beiço inchado. Tão desgraçado o desgraçado, que até se feriu no prego da porta para dizer que fui eu quem o machucou, e depois sair da Delegacia rindo e debochando da autoridade.

Mas a justiça não falha e o miserável apareceu morto em um buraco escuro, dias depois de sumir da minha frente. O cabo Chico pensa que fui eu o providenciador do desaparecimento e fez de tudo para me enquadrar numa penca de processos, até administrativos, para que eu perdesse o ganha-pão e ainda fosse preso. Só não conseguiu por falta de provas. Pois provas não são encontradas em qualquer esquina.

No dia da diligência, marcada com quase uma semana de antecedência, nós deixamos a Delegacia em Riachão bem cedo, seguindo o rastro de um sujeito com cara de perigoso, que estava escondido e acoitado lá para os lados do Moquém, em uma tocaia que já durava bom tempo, à espera de algum inocente para roubar ou matar. Ou roubar e matar, que gente ruim não economiza na hora do mau serviço.

Não tínhamos sequer um retrato do malfeitor para nos orientar nas buscas, para mostrar a um passante e perguntar se viu um cabra assim e assado que nem esse, mas fomos em frente, tendo como base o retrato falado que era só falado mesmo, pois nem eu nem o cabo sabia desenhar para transformar o retrato falado em desenhado.

Acabou se tornando um retrato gravado na mente, tanto que os autores da queixa descreveram o homem, de queixo comprido, dentes para fora, bigode grosso, nariz fino, olho sei lá como, testa não sei de que jeito. Também sabíamos que o mal encarado tinha umas costeletas fora de moda que desciam do cabelo pela curva da barba, até o meio da cara. Quer dizer, devia ser feio como o diabo.

Enchemos os alforjes de carne seca, preá e frango assados, rapadura e farinha. Enganchamos no lombo do burro também, preso na cela, um vasilhame grande cheio de água fresca. Prontos para a guerra, para a guerra partimos.

A pesquisa junto aos moradores do vilarejo começou na manhã do dia seguinte. A gente ia perguntando se viu passar hoje, ontem ou qualquer dia um sujeito assim, de queixo comprido, dentes para fora, bigode grosso, nariz fino, olho sei lá como, testa não sei de que jeito e amplas costeletas. Eu perguntava, oferecia a descrição, o povo ia dizendo não e não, não vi, nunca vi, e o cabo Chico só agradecendo, obrigado, muito obrigado, gentil que só uma freira, sequer se dando conta de que aqueles nãos todos não passavam de desfaçatez, os matutos estavam era protegendo o endiabrado.

A minha preocupação era só encontrar o rastro do sujeito, para levá-lo são e salvo às barras do Tribunal e fazê-lo pagar pelo crime cometido. O delegado me amofinando, estamos perto do homem, soldado, vamos pegá-lo, você terá que se comportar como autoridade policial e não como torturador. O senhor não vai me triscar um dedo no preso, soldado, é uma ordem, não é um pedido. Parecia que falava de um santo e não de um monstro, agora vejam.

Era ele, só podia ser aquele, não tinha como ser outro o indivíduo que encontramos na terceira ou quarta manhã de buscas, deitado em uma esteira, à sombra do umbuzeiro florido e forrado de umbus, uns verdes e outros amarelos. O cabo fez o gesto com a mão para que eu me contivesse e passou à minha frente, como a mostrar quem carregava a maior patente e era o responsável pela missão, grande bosta.

Perguntou se podia fazer umas perguntas e o suspeito respondeu que sim, sem demonstrar qualquer susto ou apreensão. Nem um pouco preocupado com a presença da lei, cínico que só ele. Olhei bem nos olhos do sonso e fui dizendo muito bonita essa sua costeleta, seu fulano, há quanto tempo o senhor a usa? O cabo me mandou calar a boca, calar a boca, e se dirigiu ao queixo fino como se estivesse se dirigindo a um príncipe: já andou por tal lugar assim, assim? Conheceu fulano de tal? Envolveu-se em briga não sei quando, que resultou em morte? É fugitivo? Porta arma de fogo ou faca, punhal, peixeira?
E o descarado não, não, não, não, não senhor, não fiz, não andei, não briguei, não uso arma, não sou eu, não, não, não, meu sangue subindo pelas veias do pescoço, pois via a mentira nos olhos do cabra ruim, e o cabo nada de agir.

Até que eu disse cabo, preste atenção, cabo, ora, ora, cabo, ao menos reviste o homem, não adianta perguntas e só perguntas por que esse demônio vai negar e mentir até não agüentar mais. O cabo disse se acalme, não me acalmei. Agarrei o costeleta pelos colarinhos, sacudi para um lado e para o outro, para cima e para baixo, porque se tivesse qualquer arma de fogo ou de lâmina escondida no corpo ia cair. E caiu.

Caiu o canivete que o suspeito carregava no bolso da bunda, enquanto eu gritava está aí a prova, a prova aí está, a arma com a qual o bigode grosso perpetrou o crime. Foi então que o cabo me empurrou para trás, tomou o homem de minhas mãos e o levou para detrás de uma cerca que passava rente ao umbuzeiro. Dando ordens para que eu me acalmasse, ficasse onde estava, não desse um passo à frente, pois ia interrogar o suspeito a sós, imaginem.

Eu fiquei para morrer, com vontade de enforcar o cabrão e também o cabo conivente, e logo, logo o bestalhão saiu de trás da cerca, ordenando vamos embora, soldado, vamos embora que o homem é inocente.

Eu disse cabo, pelo amor de Deus, cabo, ponha a mão na consciência, eu não acredito que o senhor acredite na inocência desse meliante. O homem é inocente, ele repetia, inocente, esse aí nunca matou nem uma mosca. Eu já estava com os nervos querendo sair todos pela boca quando perguntei e o canivete, cabo, o senhor não viu o canivete? Ele respondeu com a serenidade de um anjo e não com a firmeza de um policial:

– O canivete ele usa para descascar laranja.

E ainda repetiu, nas minhas barbas, diante dos meus olhos arregalados, dos olhos arregalados do burro de carga que nos esperava para fazer o caminho de volta:

– Para descascar laranja.

Das Coisas Que Não se Esquecem - 2 - Cineas Santos

Era eu mais o cabo Chico, na empreitada. O cabo era responsável pela diligência, por conta da patente, só mesmo pela patente. Apesar de soldado raso, sempre fui mais destemido do que ele, é bom que se diga.

Não que Chico fosse frouxo, não era bem assim. E não digo isto pelo fato de ele ser meu superior, pois não sou de me curvar a formalidades nem me presto ao ofício de puxa-saco. Mas a verdade é que se tratava de homem de costumes muito jeitosos e delicadeza de alma inaceitáveis para quem tinha que lidar com indivíduos de má índole, salafrários, gatunos e até assassinos.

Muitas vezes, na sala de interrogatório – melhor lugar para se destrinchar uma questão e se ler a natureza de um sujeito bom ou mau –, vi o cabo Chico demonstrar moleza incompatível com a farda, dispensar a verdadeiros facínoras tratamento que deve ser dispensado só a homens de bem. Coração mole. Maior tolice que um homem pode fazer é dar ouvidos e coração a quem não deve.

Eu dizendo gente ruim é gente ruim, cabo, não perca seu tempo, meu amigo. Ele respondendo soldado, deixe disso, soldado, não julgue um filho de Deus pela aparência nem acuse ninguém de ter feito um malfeito só porque disseram que o malfeito foi feito. O infeliz se aproveitando dos bons sentimentos do coitado e repetindo é isso, cabo, pois é isso, meu cabo, é o que tenho dito aqui desde o dia em que cheguei. Mas esse soldadinho aí não me escuta e só quer saber de bater e bater, como se estivesse lidando com um jegue empacado.

E o inocente do Chico me condenando, não quero saber de valentia aqui dentro, rapaz, interrogue sem apelar para a maldade, não faça isto, pois não aceito violência aqui, soldado, como se eu fosse o meliante e o outro o bonzinho. Já se viu?

Não que às vezes o sangue não ferva, a mão não fique pesada e eu não perca a cabeça. Acontece. Mas não tinha acontecido ainda com aquele peste sem vergonha, e isto foi o que mais me doeu. Eu dizendo não encostei a mão nesse traste, cabo, e o cabo gritando não minta, não minta, soldado, que o homem está com o olho roxo, a testa aberta, o beiço inchado. Tão desgraçado o desgraçado, que até se feriu no prego da porta para dizer que fui eu quem o machucou, e depois sair da Delegacia rindo e debochando da autoridade.

Mas a justiça não falha e o miserável apareceu morto em um buraco escuro, dias depois de sumir da minha frente. O cabo Chico pensa que fui eu o providenciador do desaparecimento e fez de tudo para me enquadrar numa penca de processos, até administrativos, para que eu perdesse o ganha-pão e ainda fosse preso. Só não conseguiu por falta de provas. Pois provas não são encontradas em qualquer esquina.

No dia da diligência, marcada com quase uma semana de antecedência, nós deixamos a Delegacia em Riachão bem cedo, seguindo o rastro de um sujeito com cara de perigoso, que estava escondido e acoitado lá para os lados do Moquém, em uma tocaia que já durava bom tempo, à espera de algum inocente para roubar ou matar. Ou roubar e matar, que gente ruim não economiza na hora do mau serviço.

Não tínhamos sequer um retrato do malfeitor para nos orientar nas buscas, para mostrar a um passante e perguntar se viu um cabra assim e assado que nem esse, mas fomos em frente, tendo como base o retrato falado que era só falado mesmo, pois nem eu nem o cabo sabia desenhar para transformar o retrato falado em desenhado.

Acabou se tornando um retrato gravado na mente, tanto que os autores da queixa descreveram o homem, de queixo comprido, dentes para fora, bigode grosso, nariz fino, olho sei lá como, testa não sei de que jeito. Também sabíamos que o mal encarado tinha umas costeletas fora de moda que desciam do cabelo pela curva da barba, até o meio da cara. Quer dizer, devia ser feio como o diabo.

Enchemos os alforjes de carne seca, preá e frango assados, rapadura e farinha. Enganchamos no lombo do burro também, preso na cela, um vasilhame grande cheio de água fresca. Prontos para a guerra, para a guerra partimos.

A pesquisa junto aos moradores do vilarejo começou na manhã do dia seguinte. A gente ia perguntando se viu passar hoje, ontem ou qualquer dia um sujeito assim, de queixo comprido, dentes para fora, bigode grosso, nariz fino, olho sei lá como, testa não sei de que jeito e amplas costeletas. Eu perguntava, oferecia a descrição, o povo ia dizendo não e não, não vi, nunca vi, e o cabo Chico só agradecendo, obrigado, muito obrigado, gentil que só uma freira, sequer se dando conta de que aqueles nãos todos não passavam de desfaçatez, os matutos estavam era protegendo o endiabrado.

A minha preocupação era só encontrar o rastro do sujeito, para levá-lo são e salvo às barras do Tribunal e fazê-lo pagar pelo crime cometido. O delegado me amofinando, estamos perto do homem, soldado, vamos pegá-lo, você terá que se comportar como autoridade policial e não como torturador. O senhor não vai me triscar um dedo no preso, soldado, é uma ordem, não é um pedido. Parecia que falava de um santo e não de um monstro, agora vejam.

Era ele, só podia ser aquele, não tinha como ser outro o indivíduo que encontramos na terceira ou quarta manhã de buscas, deitado em uma esteira, à sombra do umbuzeiro florido e forrado de umbus, uns verdes e outros amarelos. O cabo fez o gesto com a mão para que eu me contivesse e passou à minha frente, como a mostrar quem carregava a maior patente e era o responsável pela missão, grande bosta.

Perguntou se podia fazer umas perguntas e o suspeito respondeu que sim, sem demonstrar qualquer susto ou apreensão. Nem um pouco preocupado com a presença da lei, cínico que só ele. Olhei bem nos olhos do sonso e fui dizendo muito bonita essa sua costeleta, seu fulano, há quanto tempo o senhor a usa? O cabo me mandou calar a boca, calar a boca, e se dirigiu ao queixo fino como se estivesse se dirigindo a um príncipe: já andou por tal lugar assim, assim? Conheceu fulano de tal? Envolveu-se em briga não sei quando, que resultou em morte? É fugitivo? Porta arma de fogo ou faca, punhal, peixeira?
E o descarado não, não, não, não, não senhor, não fiz, não andei, não briguei, não uso arma, não sou eu, não, não, não, meu sangue subindo pelas veias do pescoço, pois via a mentira nos olhos do cabra ruim, e o cabo nada de agir.

Até que eu disse cabo, preste atenção, cabo, ora, ora, cabo, ao menos reviste o homem, não adianta perguntas e só perguntas por que esse demônio vai negar e mentir até não agüentar mais. O cabo disse se acalme, não me acalmei. Agarrei o costeleta pelos colarinhos, sacudi para um lado e para o outro, para cima e para baixo, porque se tivesse qualquer arma de fogo ou de lâmina escondida no corpo ia cair. E caiu.

Caiu o canivete que o suspeito carregava no bolso da bunda, enquanto eu gritava está aí a prova, a prova aí está, a arma com a qual o bigode grosso perpetrou o crime. Foi então que o cabo me empurrou para trás, tomou o homem de minhas mãos e o levou para detrás de uma cerca que passava rente ao umbuzeiro. Dando ordens para que eu me acalmasse, ficasse onde estava, não desse um passo à frente, pois ia interrogar o suspeito a sós, imaginem.

Eu fiquei para morrer, com vontade de enforcar o cabrão e também o cabo conivente, e logo, logo o bestalhão saiu de trás da cerca, ordenando vamos embora, soldado, vamos embora que o homem é inocente.

Eu disse cabo, pelo amor de Deus, cabo, ponha a mão na consciência, eu não acredito que o senhor acredite na inocência desse meliante. O homem é inocente, ele repetia, inocente, esse aí nunca matou nem uma mosca. Eu já estava com os nervos querendo sair todos pela boca quando perguntei e o canivete, cabo, o senhor não viu o canivete? Ele respondeu com a serenidade de um anjo e não com a firmeza de um policial:

– O canivete ele usa para descascar laranja.

E ainda repetiu, nas minhas barbas, diante dos meus olhos arregalados, dos olhos arregalados do burro de carga que nos esperava para fazer o caminho de volta:

– Para descascar laranja.











Na remota década de 60, todos os dias, no final da tarde, uma cambada de moleques entanguidos plantava-se à porta da casa de dona Purcina, no bairro Aldeia, à espera da ração de bola. Éramos quase todos do mesmo tope e todos da mesma cor: marrom-descaso. Integravam a cabroeira: Cleto, Valdemar, Paredão, Tonico, Berto, Zé do Jaburu, Orlando da Bela, Nivaldo, Walter do Candinho, Pedro e Solimar. Eventualmente, apareciam no terreiro: Marcelo Castro e Antônio Macedo, os dois únicos bem-nascidos do bando. Os outros eram xerém. À época, bola era produto raro e caro. Muitas vezes disputamos rachas animadíssimos com prosaicas bexigas de boi ou bolinhas de meia. No dia em que comprei minha primeira bola de borracha, uma autêntica “casco-de-peba”, não consegui me concentrar na aula: meu pensamente não se desgrudava dela.

Parafraseando Bandeira, aquela bolinha foi minha primeira amante. E como o porquinho-da-índia do Poeta, ela não fazia o menor caso dos meus acenos e carinhos: preferia os chutes certeiros de Paredão e Solimar, o que me deixava roído de ciúmes...

Perdidos naquela aldeia remota, onde o rádio era um luxo só permitido a dois ou três ricaços, tínhamos uma verdadeira veneração pelo único time que conhecíamos: o do Pelé. Qualquer um de nós sabia de cor e salteado a escalação daquela máquina de destroçar adversários: Gilmar, Mauro, Dalmo, Lima, Zito, Melgálvio, Calvet, Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe. À época, o time da Vila não tinha o menor pejo em pegar quatro gols numa partida; Pelé, Coutinho e Pepe, faziam cinco ou seis, dependendo do humor de cada um. Houve um dia, porém (14 de novembro de 63), em que o Milan cruzou o caminho do Santos para tirar-lhe o título de bi-campeão Interclubes. Para desbancar a equipe da Vila, o time italiano contava com a cumplicidade e a competência de dois brasileiros: Mazola e Amarildo, também conhecido como “o possesso”. Para os mais jovens, um lembrete: Amarildo fora o substituto de Pelé na copa de 62 da qual saiu consagrado. Era um centroavante rompedor e perigoso. Não bastasse isso, o Santos, naquele dia, não podia contar com Pelé, Zito e Calvet. 130 mil torcedores, no Maracanã, assistiram, consternados, a um primeiro tempo em que o Santos levou dois gols e não fez nenhum. Nos mais antigos, bateu a síndrome de macaranaço, medo de que se repetisse ali o que ocorrera em 1950, quando perdemos a copa do mundo para o Uruguai. Ledo engano. Se os italianos tinham um “possesso”, o Santos tinha um “alucinado”, Almir Pernambuquinho que, literalmente, comandou a reação e a virada sensacional. Vencemos por 4X2. Um dia para não ser esquecido.

Por que me lembrei disso agora? É escusado explicar. Com a mesma angústia vivida há 47 anos, vi o time dos “Meninos da Vila”, com três jogadores a menos, segurar a fúria do Santo André, na tarde do dia 2 de maio. Neymar, Robinho e Ganso fizeram a diferença. Finda a peleja, só me faltou a companhia dos moleques da minha aldeia, notadamente do Paredão, para que a alegria fosse completa. Um dia para ser lembrado, mesmo por um flamenguista juramentado como eu.

terça-feira, 11 de maio de 2010

FLAGRANTES DA VIDA REAL




Flávio Cavalcanti fez história na televisão com o seu programa “A Grande Chance”, nas noites de, salvo engano, quartas-feiras. Foi nesse programa que um menino de nome Armando Macedo assombrou o Brasil com a sua perícia no bandolim. Foi aclamado o grande vencedor, Sérgio Bittencourt não se conteve em elogios e o sisudo Fernando Lobo (pai do Edu) deu nota dez, acho que a única em sua vida de jurado, e o Armando Macedo teve sua apresentação gravada em compacto duplo, e fez muito sucesso na Bahia, principalmente em cima do trio elétrico do pai, o famoso Trio Dodô e Osmar.

No início dos anos oitenta, Flávio Cavalcanti reapareceu com um programa de variedades, mas não conseguiu reeditar o sucesso do programa anterior. Mesmo assim havia uma grande audiência e, entre os telespectadores, se encontrava a minha sogra.

O programa se chamava “Boa noite, Brasil”, na TV Bandeirante, e havia um quadro em que o apresentador ligava para a casa de alguém, cujo telefone era escolhido aleatoriamente na lista telefônica, e, quando atendiam do outro lado e falavam “alô”, Flávio respondia:

– Não diga alô. Diga “Boa noite, Brasil” e ganhe prêmios! – e listava os prêmios que o cidadão ou a cidadã deixara de ganhar.

Uma noite em que a minha sogra assistia ao programa, o telefone tocou. Ela atendeu:

– Alô!
– Não diga alô! Diga Transbrasil e ganhe uma passagem de ida! – anunciou uma voz do outro lado.

Ela desligou o telefone e voltou ao programa. Quinze minutos depois uma nova chamada:

– Alô!
– Não diga alô; diga Transbrasil e ganhe uma passagem de ida! A senhora perdeu uma segunda chance!

Ela ficou calada e voltou ao posto de telespectadora. Em menos de dez minutos o telefone tocou. Ela deu um pulo do sofá, tirou o fone do gancho antes que outra pessoa atendesse, e falou ofegante, porém triunfal:

– Transbrasil!
– Muito bem! A senhora acaba de ganhar uma passagem de ida para a puta que lhe pariu!


domingo, 9 de maio de 2010

Minha Semente - Edna Lopes


Por Edna Lopes

De Dia das mamães



Não me canso de dizer o quanto gente me surpreende, me encanta. Ainda mais quando é alguém que amamos e que é, verdadeiramente, um pedaço de nós.

Sempre soube que seria mãe e sempre me senti especial por isso. Quando adolescente pensava na maravilha que devia ser gerar uma vida, cuidar dela, ser responsável até que pudesse fazer suas escolhas, seguir seu caminho.

Pensava também nas mulheres que queriam ser mãe e não conseguiam e nas que não sendo mães biológicas eram maravilhosas mães-adotivas, mães-tias, mães-avós, mães-irmãs, mães madrinhas, mãe-drastas, mães- amigas, mães-anjos de guarda.

A aventura de gerar uma vida e dela ser parte é, no meu entender, um divisor de águas. Avalio a minha vida como AV e DV (Antes de Vinícius, Depois de Vinícius).Temos nossos códigos, nossos pequenos segredos de mãe e filho e brincadeiras especiais entre nós.

Ele sempre me pede para contar histórias das brincadeiras de quando era bebê. Gosto de várias, mas há uma em especial que é como a gente brincava em minha cama até ele dormir e eu o carregava até seu berço, depois cama, no quarto de teto cheio de naves espaciais, planetas, cometas e até bruxinhas voadoras, brilhantes no escuro.

Sempre lia, ou “cantava” pequenas historias e ele ria muito das caras e bocas que eu fazia. O “Cravo brigou com a rosa”, “Terezinha de Jesus”, a” história do jacaré” "A lenda do Pégaso”, “ Os Saltimbancos”, são exemplos de cantigas interativas, divertidas que fazia questão de cantarolar até que dormisse.

Neste dia em especial - Vinícius devia ter pouco mais de um aninho - já havia gasto meu “repertório” de cantigas interativas, quando me lembrei de uma comercial de TV de uma caderneta de poupança que contava uma história de três sacis e uma onça que os perseguia. Os sacis, cansados de fugir, construíam uma casa no alto de uma arvore e passavam a troçar da “Dona Onça”.

Cantarolei como sempre fazia com as demais cantigas e ele me olhava, fascinado. Sempre que acabava ele dizia “mais, mais”, porém dessa vez, desabou num choro que me deu trabalho consolar.

Fiquei intrigada com o que teria causado aquele choro e alguns meses depois, enquanto lhe contava fábulas, contei a tal história da onça e dos sacis, mas atenta para não fazer caras e bocas, nem mudar a voz. Ao termino, me olhou desconsolado e, mais uma vez, chorou.

Prometi nunca mais contar aquela história, embora me intrigasse o motivo do choro. Mas, aos seis anos, aproveitando que me pedia para contar algo de quando era bebê, contei-lhe os episódios do choro e disse:
- Filho, eu nunca entendi porque você chorou a cada vez que lhe contei essa história!
Ele pensou um pouco e me respondeu como se voltasse no tempo:
- Eu chorava com pena da onça, mamãe.

Essa é minha semente. Bem humorado, curioso, mas sensível às dores do mundo. A cada dia, agradeço a Deus a alegria de ter a oportunidade de ensinar e aprender na aventura maravilhosa que é ser sua mãe.

A minha mãe e a todas as mulheres mães biológicas, do afeto ou mesmo as nulíparas, que a aventura da maternidade nos anime na caminhada de, não só lutar por um mundo melhor, mas criar filhos melhores para este mundo.





sábado, 8 de maio de 2010

Das coisas que não se esquecem - Cineas Santos

De O beijo



Se você ainda não leu o conto Viagem aos seios de Duília, de Aníbal Machado, leia-o: é a mais patética, digo, a mais humana de todas as narrativas que já li. Para não lhe furtar o prazer da leitura, direi apenas que é a história de um cidadão, José Maria que, adolescente, num dia de festa religiosa, teve a felicidade ou a desdita de ver os seios de uma bela jovem, Duília, num povoado (Pouso Triste) perdido nos cafundós de Minas. A cena durou apenas uma fração de segundo, tempo suficiente para marcar-lhe a existência. Uns 40 anos depois, José Maria, aposentado, resolve voltar ao local da mágica visão, na vã tentativa de reencontrar Duília...

Por que me lembrei desse conto agora? Honestamente, não sei. Sei apenas que, ao acordar na manhã de ontem, lembrei-me de Evanilde, uma menina baiana que parecia feita de porcelana e sonho. Parafraseando o poeta, quando olhada de face, era uma boneca de louça; quanto vista de perfil, a haste de um lírio, prestes a partir-se. Tudo nela reclamava cuidados especiais. Era muito branca, dissimulada e gaga. Falava aos trancos. Às vezes, na tentativa de pronunciar uma palavra, fechava os olhos como se o gesto pudesse livrá-la da gaguice. Aos olhos do menino, era encantadora. Seu passatempo preferido era provocar-me. Sagazmente, aproximava-se de mim, sem jamais me permitir tocá-la. Era um jogo de sedução sofisticado demais para uma garota tão jovem, de aparência angelical.

Uma noite, saímos para acompanhar o Reisado do Manuel Antônio, no bairro Aldeia. Éramos um bando de meninos e meninas do mesmo tope. Lá pelas tantas, ela afastou-se das meninas e, sorrateiramente, aproximou-se de mim. Como peças imantadas, nossas mãos se atraíram e entrelaçaram-se. A cena deve ter durado apenas alguns segundos, mas me fez acreditar na existência de um paraíso terreno... Naquela noite, sepultei de vez o sonho de dona Purcina de me fazer padre. No dia seguinte, ela se comportou como se nada tivesse acontecido, o que me deixou profundamente magoado. Aquele jogo pendular que lhe dava tanto prazer me exasperava.

O tempo e os contratempos nos separaram. Poucos dias depois, numa manhã de sábado, com a leveza de um felino, ela veio até mim e, sem aviso prévio, beijou-me o rosto. Aparvalhado, nem percebi que aquele beijo inusitado se fazia acompanhar um doloroso ADEUS. Como naquela canção do Chico, “agora eu era um louco a perguntar/ o que é que a vida vai fazer de mim?”. Nunca mais a vi. Se bem me lembro, foi a primeira vez que morri de amor. Mas o tempo tudo cura. Com Quintana, aprendi que é tão bom morrer de amor e continuar respirando...

quinta-feira, 6 de maio de 2010

SOBRE A ORIGEM DO NOME PAPAGAIO VINTÉM

Ou: Um Conto de Especulação

NA - O conto abaixo em nada tem a ver com a choparia paulista, mas com um restaurante no pé da Ladeira de Bidô, no arraial do Junco, com esse nome.


De Papagaio


Na Ladeira de Bidô havia uma forja e um ferreiro. Havia também muitas crianças brincando de patinete e um papagaio muito falador. O ferro na bigorna e o martelo a cantar: “téin! téin! téin!”, em extremo gozo tirano do vencedor sobre o vencido, o escárnio do forte sobre o fraco, o supremo júbilo da subjugação do aço aos seus caprichos.

– Téin, téin, téin! – repetia o papagaio, que não mais dizia “hu! tabaréu!”, desorientado que estava com tanto martelar. Era um desassossego só, mal o sol raiava e o martelo cantava em estridência ritmada, acordando o povo para mais um dia de labuta, nas roças, ou nas repartições públicas, que nessa época, se resumiam a apenas duas. Acordava também o papagaio, para mais uma lição musical.

“Téin, téin, téin”, era a canção mais ouvida, cobrindo um raio de dois quilômetros, silenciando apenas quando o ferreiro Bidô parava para tomar uma caneca de café ou então para ralhar com o seu neto Renan, que gostava de jogar pedra nos meninos. O papagaio, por puro instinto de papagaio, rompia o curto descanso do martelo em metálicos e melódicos chalreios: “téin, téin, téin”.

Por causa disso, o povo passou a chamar o louro de “papagaio Téin” e ele ficou muito famoso e atraiu muitas crianças que queriam ouvi-lo cantar “téin, téin, téin”, nos intervalos em que o ferreiro Bidô usava para ralhar com o seu neto Renan ou para tomar uma caneca de café, conforme foi dito acima.

Um dia, o papagaio Téin se cansou da melodia, se abusou da gritaria da molecada e do martelo que só sabia uma música e resolveu procurar outras plagas, onde houvesse diversidade musical e os meninos fossem mais educados e menos barulhentos. Aproveitando uma noite de lua cheia, em que o povo se encontrava sentado na calçada da igreja fazendo serenata, o papagaio Téin arrumou as malas e partiu, sem deixar nenhum bilhete de despedida nem rastro de sua fuga. No outro dia, mais ou menos no horário em que o ferreiro Bidô ralhava com Renan, o povo se preparou para ouvir o papagaio e... nada. “Que é de Téin?”, perguntava-se aflito o povo. “Será que foi comido pelos gatos?”, especulava-se. Desencadeou-se então uma verdadeira onda de vingança pela cidade, sendo colocada a prêmio a cabeça dos gatos, não ficando nenhum felino vadio para contar a história. As crianças choravam a rodo. As aulas foram suspensas e o ferreiro Bidô deu uma surra no neto Renan, desconfiado de que o mesmo estivesse por trás do sumiço do papagaio. A oposição colocou a culpa no prefeito que, para mostrar serviço, decretou luto oficial de três dias e enviou projeto à câmara de vereadores dando o nome do papagaio a uma rua que ia ser inaugurada.

Os anos se passaram e quando o povo começava a se conformar com o sumiço do papagaio, eis que, no meio de uma missa, um garoto irrompe igreja adentro, gritando feito um alucinado, interrompendo o sermão do padre:

– Eu vi Téin! Eu vi Téin! O papagaio! Vi Téin na televisão! Ele tá cantando numa banda de pagode! O papagaio! Vi Téin!

terça-feira, 4 de maio de 2010

Até qualquer dia, amigo - Edna Lopes



A arte de viver

É simplesmente a arte de conviver...

Simplesmente, disse eu?

Mas como é difícil!

Mário Quintana

Durante quase toda esta semana, estive fora de casa e não sei se por cansaço ou mesmo por impaciência, foi uma semana de insônia, de inquietação. Estar fora de minha vida por vezes me põe irritada, desassossegada.

Acordei no meio de uma dessas madrugadas sobressaltada. No meu sonho, meu filho chorava e eu não conseguia consolá-lo. Passei uma manhã terrível, angustiada.Tentei controlar minha ansiedade pois se algo de ruim houvesse acontecido a ele, já teriam me ligado. Esperei o horário de almoço para ligar e ouvir a voz de meu filho.

No telefone, aliviada em saber que ele estava em casa e bem, ouvi de meu companheiro a notícia da morte de um amigo muito querido. Desabei, pois por mais que entendamos que esse é o movimento da vida, a partida de pessoas caras sempre nos causa tristeza, nos emociona.

Esse amigo tinha um coração proporcional ao seu um metro e noventa. Quando tive Vinícius estava concluindo uma das especializações e ele aceitou ser meu orientador mesmo não sendo o tema de minha monografia seu campo de estudo. Aceitou para me facilitar a vida, já que estava amamentando, de licença maternidade e não me agradava sair muito de casa, ir á Universidade para acertar outro/a orientador/a.

Todos nós tínhamos um carinho muito especial por ele, por sua alma leve e boemia, por seu jeitão de menino grande, sempre pronto para uma boa conversa, uma farra. Dia desses meu filho e eu estávamos relembrando de algumas brincadeiras entre eles: pegava a cabeça de Vinícius entre suas mãos enormes e suspendia até o teto. Vini morria de rir e pedia sempre mais. Outra brincadeira era dependurar-se no pescoço dele e entrar no mar bravo, para mergulhar, pegar onda... Vini segurava-se em seus cabelos a La Sidney Magal e se divertia muito.

Uma saudade imensa em todos nós, seus amigos e amigas. Claudio Canuto, o nosso Magal foi um exemplo de doçura e gentileza e certamente estará sempre nas boas lembranças de nossa família, em nossos corações.

Da despedida, uma certeza: viver é um milagre, amar uma benção, ter amigos um privilégio. Agradeço a Deus cada minuto que me é dado o merecimento de poder usufruir da presença de seres tão especiais em minha vida, que me fazem aprender tanto, exercitar os sentimentos da paciência, da solidariedade, do convívio fraterno. Agradeço a quem me oportuniza ser mais gente a cada novo dia.

Até qualquer dia, amigo. Certeza que ainda a gente vai se encontrar...




segunda-feira, 3 de maio de 2010

A Manha do Barão - Luís Pimentel

De Aparício Torelli



O Barão de Itararé – o jornalista, humorista, frasista, poeta, político e sacana inveterado, que um dia autoproclamou-se herói de um batalha inexistente, “pelos relevantes serviços prestados no front” – nasceu em 1895, em São Leopoldo (RS), e foi batizado com o pomposo nome de Fernando Aparício Brinkerhoff Torelly. Era filho de uma índia charrua que sentiu as contrações durante uma viagem de carroça pelo interior do estado.

“De repente, a carroça quebrou e eu resolvi botar a cabeça para fora pra ver o que estava acontecendo.”

Foi sua primeira gracinha. Fez alguns períodos na Faculdade de Medicina e, depois de publicar alguns poemas cínicos e satíricos nos jornais e revistas de Porto Alegre, reunindo-os em seguida no livro Pontas de Cigarro, arrumou as malas e se mandou para o Rio de Janeiro, onde desembarcou aos 21 anos de idade e com o endereço do jornal O Globo no bolso. Procurou o diretor, Irineu Marinho, e avisou que era o profissional que o jornal estava precisando.

– O que o senhor sabe fazer? – perguntou Irineu.
– Tudo. Desde varrer a redação até dirigir o jornal. Mesmo porque, não há muita
diferença entre uma atividade e outra.

Em 1926 o inquieto humorista lançou seu próprio jornal semanal, A Manha, pequena sacanagem em cima do matutino A Manhã. A redação ficava na Rua 13 de Maio, onde tempos depois de prisões e pescoções, o Barão de Itararé afixou uma placa destinada aos policiais que freqüentemente visitavam a redação e seu responsável:

ENTRE SEM BATER!

Não adiantou. Entraram, bateram muito e ainda carregaram o Barão para o presídio da Ilha Grande, onde puxou um ano e meio de cadeia. Lá conheceu Graciliano Ramos, vindo a tornar-se depois personagem do antológico Memórias do Cárcere.

A Manha resistiu com vida até o começo da década de 1930. O Barão, que depois assinou colaborações em vários jornais, resistiu até 1971. Foi um dos maiores.

Nota do blog:

Luís Pimentel é jornalista e escritor e, a partir de hoje, é o mais novo colaborador do blog. Ministrou oficinas de contos na Estação das Letras, no Armazém Digital, no Centro Cultural da Light e em feiras de literatura. É autor de mais de 20 livros, entre eles os volumes de contos Um cometa cravado em tua coxa (Record) e Grande homem mais ou menos (Bertrand Brasil), vencedor do Prêmio Nacional Cruz e Souza.

domingo, 2 de maio de 2010

Quase Candango - Cineas Santos



De Brasília



Em mais de uma oportunidade, afirmei: seu Liberato não tocava viola, não fazia versos, não contava vantagens. Era um sertanejo morigerado, com vocação para pedra. Só grudado ao chão da caatinga, sentia-se em casa. Perfeitamente integrado ao seu habitat, não estendia suas aspirações além dos limites de suas roças. Ao longo da vida, empreendeu apenas três viagens. Em nenhuma delas fez boa colheita. Acontece que, em 1958, as chuvas se negaram a cair no sertão do Caracol. Levas e levas de catingueiros deixavam para trás roças, mulheres e filhos e rumavam para o imenso canteiro de obras no Planalto Central onde um presidente visionário pretendia plantar a capital do País. Magoado com a sovinice dos céus, seu Liberato, aos 55 anos de idade, encarapitado num pau-de-arara, foi tentar a sorte naqueles ermos onde sobrava trabalho e faltavam mulheres.

Dona Purcina, com sua alma cigana, vislumbrou naquele gesto desesperado do marido a possibilidade de levar os filhos para uma terra onde “corria dinheiro e tinha escola”. Para aquela camponesa semi-analfabeta, educar os filhos não era apenas aspiração; era obsessão. Enquanto seu Liberato cavava valas na terra vermelha do cerrado, dona Purcina urdia planos. Pensou tudo: abriria uma pensão familiar para fornecer boia aos candangos, construiria uma casinha para a família, o mais próximo possível de uma escola. O mais viria com o tempo.

O que ela não poderia imaginar é que o velho Liba, embora estivesse fisicamente no Planalto, seu espírito catingueiro jamais se ausentou do Campo Formoso, sua gleba, seu reino, seu mundo. Assim, o exílio doloroso durou pouco mais de oito meses. Ao saber que chovia no Piauí, juntou seus teréns e voltou correndo para o sertão. Por pouco, por muito pouco, dona Purcina não o expulsou de casa. Morria ali o sonho de construir “um futuro melhor” para os filhos. À época, eu não fazia a menor ideia do que fosse morar numa cidade grande. Na verdade, aquela aventura não me tentava. A exemplo do meu pai, eu começava a fincar raízes fundas na terra árida do sertão. Tenho (como meu velho) uma indeclinável vocação para pedra.

Plantada por mãos calejadas e regada com o suor dos candangos, Brasília nasceu acanhada. Mas, com o adubo do dinheiro e o fascínio do poder, cresceu rapidamente. Em pouco tempo, tornou-se uma espécie de Las Vegas do cerrado. Para lá migraram arrivistas, falsários e apostadores de todas as procedências. Gente que só aposta com o dinheiro alheio e nunca perde.

Brasília, “ninho de tédios” e de escândalos, faz 50 anos de existência e tem pouco a comemorar. De minha parte, não me canso de agradecer a seu Liberato por ter voltado para o sertão do Caracol. Como o canto das sereias, o poder vicia, inebria e alucina...



sábado, 1 de maio de 2010

Cláudio Canuto, o amigo de fé

De Cláudio Canuto



Acordou cedo, levantou-se da cama, foi ao banheiro, deitou-se no sofá da sala e entrou em sono profundo, esquecido, talvez, que tínhamos um encontro marcado.

Uma semana antes passara aqui em casa com uma fotografia para colocar no blog. Propunha-se a ser colaborar efetivo, tal qual o Cineas Santos e Antonio Torres. Aproveitou para filar a bóia do almoço e ainda passamos um pedaço da tarde conversando amenidades e fazendo planos literários para o futuro. Estava feliz porque seu penúltimo artigo “Democracia em farrapos, almas arruinadas” (sua primeira publicação neste blog) estava fazendo sucesso em sala de aula, levado pelo Professor de Direito Marcílio Barenco, que nas horas vagas é o temível (pelos meliantes) Delegado Barenco, o Diretor Geral da Polícia Civil das Alagoas. Aproveitou o descanso do almoço para concluir seu texto “Prometeu” e em seguida publicamos no blog.

Conheci-o em meados de 1995, quando ele retornou do doutorado na França e veio a ser meu vizinho. E, de vizinhos a amigos foi um passo. Depois viramos companheiros de farra, de saraus literários e de confissões confidenciais. Era um irmão achado no meio desse povo arredio das Alagoas. Alegre, cordial, companheiro em qualquer situação, jamais esquentou a cabeça com alguma coisa, nem mesmo com a doença que carimbou seu passaporte eterno: a hepatite. Era duma simplicidade ímpar, e assim resumiu sua desdita no nosso último encontro:

- A hepatite levou vinte anos para danificar trinta por cento do meu fígado. Continuando nesse ritmo, devo viver mais uns trinta anos sem preocupação.

Fiquei impressionado com a singeleza quase inocente da sua lógica, mas como não sou médico nem Deus, não ousei contestar. Falar o contrário seria tecer maldades. Seu apego à vida era evidente. Fazia planos para o futuro como um adolescente a sonhar. Levou três livros emprestados da trilogia de Antonio Torres para escrever um artigo, com a promessa de devolvê-los em quinze dias.

No dia que Vinícius, meu filho, estava programado para nascer, ele passou o dia comigo na maternidade e só arredou pé quando pôde pegar o rebento nos braços. Quando fui ao Cartório providenciar a Certidão de Nascimento, ele me acompanhou para assinar como testemunha. Ele o viu nascer, portanto, era testemunha de fé.

Nos últimos tempos se refugiou na tranquilidade da praia de Riacho Doce, aquele mesmo vilarejo do livro de José Lins do Rego. E foi de lá que ele partiu, na manhã de quarta-feira, 28 de abril, sem nos dizer adeus, deixando o vazio e a frustração de uma obra inacabada.

Boa viagem, velho camarada!




sexta-feira, 30 de abril de 2010

Oficina de Contos




O Oficina Literária (Contos) visa a boa formação sobre a literatura brasileira e estrangeira – especialmente sobre os nossos contistas – e os seus principais representantes.


Cabe ao orientador elaborar guias de leitura, gerais e específicos (de acordo com a vocação literária de cada oficinando), além de sugerir exercícios temáticos para o desenvolvimento da criação da narrativa curta e do texto de cada um.


Aos oficinandos cabe a feitura de um texto em prosa (conto, projeto de conto, desenvolvimento de uma idéia) a cada semana, a partir de tema livre ou sugerido pelo coordenador, para leitura, discussão e comentários em grupo.


Público alvo:


Escritores iniciantes, candidatos a escritores e interessados na prática literária.


Duração:


O tempo ideal de duração para a Oficina é, na primeira fase, de três meses, com encontros semanais de 2 horas. Havendo interesse do grupo, pode-se realizar, em seguida, a segunda fase da Oficina (avançada), de igual período de duração, mas com prática e currículo diferenciados.


Mini-currículo (Luís Pimentel)


Luís Pimentel é jornalista e escritor. Ministrou oficinas de contos na Estação das Letras, no Armazém Digital, no Centro Cultural da Light e em feiras de literatura. É autor de mais de 20 livros, entre eles os volumes de contos Um cometa cravado em tua coxa (Record) e Grande homem mais ou menos (Bertrand Brasil), vencedor do Prêmio Nacional Cruz e Souza.


Valor:

R$180,00 por mês


Desconto de 10% para pagamentos efetuados até uma semana antes do início do curso, à vista, em espécie, cheque ou cartão de débito.


Onde acontece: Espaço Telezoom (Rua General Dionisio, 11, Botafogo - Rio de Janeiro - RJ) www.telezoom.com.br.