Não é fácil viver a vida tal qual a projetamos. Zeca Pagodinho, depois de variar de marca de cerveja, que lhe valeu uns cifrões a mais, usa como lema o “deixa a vida me levar”, porém, na prática, levar a vida na boa maré não é tão simples como se reunir numa rodada de pagode nas manhãs de domingo, regada a cerveja e feijoada à carioca, sendo servida por mulatas bem fornidas de coxas e de bundas. Os percalços são muitos e variados, sem se falar naqueles que nos surpreendem de supetão e que nos deixam atônitos, em completo ataranto e rodando feito barata tonta.
Viver a vida em toda sua plenitude talvez seja uma obra-prima que ainda não foi pintada ou escrita, haja vista ser uma condição não pertinente à vontade humana, perdida no desenredo de nossos anseios e contradições, sujeita às influências das nossas marés de março e das ressacas interiores que transbordam em calamidades devastadoras da nossa vontade. Sei que os poetas navegantes acharão o contraditório e, em bonitas palavras recheadas de rimas ricas, discorrerão sobre o achado em versos melosos e melódicos que deixarão seus leitores embalados pela quimera de ser o amanhã um porvir risonho, e que o Destino de cada um caberá a ele próprio pegar em suas mãos e traçar seu rumo, independente dos transtornos que entram em rota de colisão com os seus planos astrais.
Há mais dificuldades entre nosso itinerário terrestre e as estrelas do que sonha a nossa filosofia. Seria bom, se não ótimo, se pudéssemos acordar numa manhã tumultuada por raios e trovões e disséssemos que o nosso dia seria maravilhoso e que assim o fosse. Os problemas começam cedo, desde o momento que se coloca os pés no chão e não se acha o chinelo. Depois o gás que acaba, a empregada que não aparece e nem dar satisfação, o filho que fica enrolando para não ir à escola, a sogra que liga para dizer que vai passar o dia em sua casa, o trânsito congestionado, a chegada atrasada ao trabalho e a bronca do chefe, a traição de um amigo, a sacanagem de um colega, as fofocas cotidianas, as férias que você pede para descansar, viajar, relaxar e depois descobre que o dinheiro só deu para pagar a fatura do cartão de crédito e que, nas férias, você se cansa mais do que quando está trabalhando.
Seria bom se pudéssemos viver a vida como gostaríamos de viver, sem os encostos, atrapalhações e desvios do caminho previamente traçados. Deixar a vida nos levar é pura impessoalidade impossível de acontecer, pois somos movidos a sentimentos sujeitos às intempéries que deságuam em nossa vida desde quando abrimos os olhos em uma manhã de Primavera e sentimos o cheiro da angústia e do desfavor nos envolver em um terno abraço e a nossa boca sentir o gosto amargo de fel, expelido pela nossa incapacidade humana de cuspir para longe nossos augúrios e vaticínios.
Portanto, viver a vida do jeito que ela é, é entrar numa nau sem rumo e viver alheio ao mundo, virar um eremita e perder o contato com o que existe de mais belo e fascinante na existência humana: a sociabilidade e o caráter fraterno que temos em nos deixar seduzir pelos problemas alheios e da capacidade que criamos para driblar nossas angústias e medos e ficarmos o mais próximo possível de viver a vida do jeito que planejamos e queremos.
Foi durante uma das famosas reuniões de amigos no Buteco do Jisus, em Botafogo, um bar que não existe mais e que ficava no Rio de Janeiro Sem Bala Perdida – uma cidade que também já não existe. Lá para as tantas, o papo desandou para o lado das quatro estações. Pedro Garganta, um dos mais falantes e quase nunca convincente, fez a introdução, no bom sentido:
– A mim agrada, por demais (sacaram o estilo?!), o clima outonal. O frescor das folhas, o sol ameno, os dias são mais radiantes.
Rocha, conhecido nas mesas e arredores como “O Cacique da Bambina”, completou:
– A cerveja fica mais gelada. As mulheres são mais cheirosas e mais macias.
Foi solicitada a opinião de uma representante do grupo feminino:
– Prefiro o verão – disse Nina, uma morena que encostou na mesa um dia para pedir fósforos e nunca mais abandonou a turma. – Aumenta o calor na formosinha, né, preta? – bombardeou o intrépido Yonzinho Cantareira, que todas as noites atravessava a Baía de Guanabara para beber em Botafogo, e arrastava uma asa caída para o lado da amiga.
Gargalhadas. Beijinho de reencontro nos copos. Mordidinhas na moela. Bilau Baixinho, que pecava pelo apelido e hoje seria chamado de “verticalmente prejudicado”, retomou o fio da meada:
– Sou mais o inverno. Ventinho frio, roupinhas quentes, a gente aproveita para dormir abraçadinhos. – Dorme abraçadinho quem tem mulher em casa, ou na casa dos outros, ou mesmo na zona – completou um que estava meio calado. – Também encontro vantagens na estação do frio – pontificou Pedro Garganta. O inverno tenciona os músculos e enrijece os doces lábios. Nina engasgou com uma rodela de salaminho. Yonzinho partiu em socorro: – Mastiga devagar, boneca. O salame é um tira-gosto roliço e traiçoeiro. Era assim que a banda tocava. Havia poesia em tudo. Rocha da Bambina interrompeu a conversa, levantando-se de braços abertos: – Oi! Chega até aqui! – gritou, na direção de uma linda mulher que se aproximava. Olharam todos, ao mesmo tempo. Aquela emoção: – Oh!!! – gemeram todos. Nina, inclusive. – Vem cá, prima. Vem conhecer os meus amigos – disse Rocha, sorridente. – Prazer, pessoal – falou a moça.
O primo puxou a cadeira para a visitante:
– Pessoal, esta aqui é minha prima Vera.
Primavera! Era a estação que estava faltando. Garganta deu a volta em torno da mesa e se aproximou, derretido.
– Conheço você, não sei de onde. – Conhece Juiz de Fora? Sou de lá. – Claro – disse Pedro, os braços de polvo varrendo copos e os ombros da moça. – Vou a Juiz de Fora pelo menos uma vez por mês. Fico no Plazza. Você mora onde lá? – Moro na pensão de Dona Fulô.
O clima pesou um pouco. Nina evitou o salaminho. Mas Garganta não perdeu a viagem:
– Sou representante de uma empresa de tubos e conexões, por isto viajo muito. E você, Vera, mexe com o quê?
O humor presente em carne e osso, muito mais carne do que osso. Vera não perdia a timidez nem a inocência primaveril:
– Mexo com os quadris.
Resolveram falar das últimas cachorradas políticas. Bobagem ficar perdendo tempo com as estações do ano.
1969. A pretexto de combater os terroristas, a ditadura recrudescia. Prisões, mortes, desaparecimentos. A censura, como o big brother (o do Orwel), adivinhava até os pensamentos mais recônditos. Ásperos tempos. Justo naquele momento, resolvi criar um grupo de teatro: Teatro Popular do Piauí. Na verdade, uma trupe mambembe sem maior experiência e sem qualquer veleidade profissional. Integravam-na: Lázaro, Moacir, Chico Viana, Sólis, Terezinha e um garoto, cujo nome já não me lembro. Cada um de nós tinha de se desdobrar para fazer quase tudo. As funções se misturavam. Por falta de textos disponíveis, eu e Chico Viana engendramos uma peça – “Uma noite entre miseráveis” – pastiche ordinário de “Dois perdidos numa noite suja”, de Plínio Marcos, e “Morte e vida Severina”, de João Cabral. Por obra e graça do Espírito Santo, permitiram-nos ensaiar a peça no auditório do Colégio Diocesano, “território livre” da ingerência dos esbirros. Não havia cenário, iluminação, nada. Estávamos inaugurando, na Chapada, o teatro nu e cru.
Onde montar a peça? Em Teresina, nem pensar. Foi aí que Chico Viana e Moacir tiveram a ideia de levar a peça a Bacabal (MA), onde o prefeito era boa praça e o Moacir tinha uma namorada. Acertou-se o dia da apresentação, fizemos meia dúzia de ensaios e embarcamos num dos “expressos” da Líder. Lá pelas tantas, olhei para o Viana e perguntei: - E se, avisada pelo capitão Astrogildo, a PF estiver no esperando em Bacabal? O Viana sorriu e desconversou. Pura paranoia: a Polícia Federal não tomara conhecimento das nossas estripulias.
Chegamos a Bacabal e, numa deferência especial, o prefeito se dignou a nos receber em seu gabinete. Era um cidadão corpulento, alegre, bonachão, com um sorriso confiável. Ao lado dele, um homem cinzento com cara de quem já morreu e ainda não foi comunicado. De repente, adentra o gabinete um cidadão baixo, chapéu Panamá, trajando um conjunto cinza, com olhar de ave de rapina, o perfeito estereótipo do policial civil. Tirou o chapéu e, alto e bom som, declarou: - Peço licença a Vossa Excelência para, em nome da revolução prender este indivíduo! Disse isso sem apontar para o tal “indivíduo” que, por supuesto, como dizem los hermanos argentinos, só poderia ser eu. Por alguns segundos perdi a noção do tempo, minha respiração tornou-se pesada, a saliva, travosa e a visão embaçada. Naquele momento, descobri que o medo tem cheiro, gosto e cor. Foram segundos que duraram uma eternidade. Tão aparvalhado estava, que nem percebi que tudo não passava de uma brincadeira do coletor estadual com o vice-prefeito, o homem cinzento. Todos riram da patuscada, menos eu que, em estado deplorável, limitei-me a perguntar: - Por favor, onde fica o banheiro?
Naquela manhã, percebi que não tinha cujones para tornar-me um “subversivo”. À noite, apresentamos a peça, a plateia generosa nos aplaudiu, o prefeito nos deu trezentos cruzeiros e o Teatro Popular do Piauí desapareceu sem deixar saudades. Ufa!
Junho Dia 16, às 10 horas: 10ª. Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, SP Seminário de Leitura e Literatura Infantil e Juvenil Local: Biblioteca Padre Euclides
Julho Dias 6, 13, 20 e 27, das 19 às 21 horas: Casa do Saber do Rio de Janeiro (Lagoa), conforme a programação abaixo.
Ritmos do Jazz em Prosa & Imagens Oficina Literária em torno do conto O perseguidor, de Júlio Cortázar, ao som de Charlie Parker e imagens dos filmes Bird, de Clint Eastwood, e Round Midnight, de Bertrand Tavernier.
Antônio Torres .4 aulas *
Na sua juventude, em Buenos Aires, Júlio Cortázar adorava ouvir no rádio Duke Ellington, Louis Armstrong e os velhos cantores de blues, para desespero de seus pais, que estranhavam aquela música de negros. Na idade adulta, já consagrado como um dos mais brilhantes escritores do século XX, quando ficava horas a fio falando do pianista Thelonious Monk, ele viria a escrever um conto dedicado à memória de Charlie Parker, tendo como personagem um saxofonista genial, mas perseguidor do impossível.
A partir da leitura, em 4 partes, desse longo conto, considerado universalmente a obra-prima de Cortázar, esta nova oficina do escritor Antônio Torres na Casa do Saber será mais do que um mergulho num texto que vai fundo na esquizofrenia de um artista de gênio, a apostar corrida contra a loucura e a morte. Oferecerá uma viagem em torno dos ritmos em prosa & verso, ilustrada por fascinantes imagens cinematográficas de uma nova era do jazz em Nova York e Paris, e das origens e desenvolvimento do conto como gênero literário, que teve em Cortázar um dos seus mais instigantes cultores. E, como sempre, com espaço para leitura e análise dos textos criados pelos participantes. Tudo para o seu prazer de ler, ouvir, e escrever. Com liberdade para improvisações, como numa jam session.
Terças-feiras, das 19 às 21 h.
1. 06 JUL – O conto, Cortázar, e a influência do jazz Introdução à história do conto e seu desenvolvimento, para o qual Júlio Cortázar contribuiu com algumas das mais surpreendentes criações do gênero, de que O perseguidor é um caso exemplar. A relação do jazz com a literatura, segundo Cortázar. E a do ritmo com a escrita, segundo o poeta Octavio Paz. Leitura em sala de 14 páginas de O perseguidor. Na sequência, exibição de um trecho do filme Bird, para uma mais completa caracterização do personagem da história que se começou a ler. Impressões do grupo sobre a prosa de Cortázar, o jazz e as imagens de Clint Eastwood. Espaço para leitura dos textos dos participantes.
2. 13 JUL – A relação da frase musical com a escrita Continuação da leitura de O perseguidor (mais 14 páginas). Na sequência, exibição de um trecho do filme Round about Midnight, que, como no conto de Cortázar, conta a história de um saxofonista norte-americano em Paris. O título do filme é o mesmo de uma música de Thelonious Monk, uma das mais gravadas no mundo por todo tipo de instrumentista, inclusive o nosso Baden Powell. Outro tema de TM, Blue Monk, servirá de mote para a relação da frase musical com a escrita. Espaço para leitura dos textos dos participantes. Avaliação dos trabalhos apresentados.
3. 20 JUL – O jazz como equivalente ao surrealismo nas letras Leitura da terceira parte de O perseguidor, seguida da exibição de outro trecho do filme Bird. Na sequência, o que no jazz encantava Cortázar: o fenômeno maravilhoso que constitui a sua essência – a improvisação. O jazz como equivalente ao surrealismo nas letras. O swing que é capaz de dar ritmo a uma frase e pode entrar no leitor por via subliminar. Espaço para leitura dos textos dos participantes. Análise dos trabalhos apresentados.
4. 27 JUL – Letras & jazz: outras inspirações Para Cortázar, um conto tem de terminar como termina uma sinfonia de Mozart ou um improviso de jazz. A leitura do final de O perseguidor, e a exibição de outro trecho do filme Round midnight servirão de mote para uma explanação sobre o processo criativo literário a partir de temas musicais, com espaço para a narração de experiências dos participantes, sejam quais tenham sido suas fontes de inspiração, assim como para a leitura de seus textos.
Setembro Dia 4, às 14 horas: Festa Literária de Marechal Deodoro, Alagoas. Palestra/recital: “Para gostar de ler e ouvir em sala de aula”.
Novembro Dia 8, às 11 horas: III Encontro de Leitura e Literatura da Uneb – Universidade Estadual da Bahia, campus de Salvador. Diálogo com Escritores/ com a participação de Luis Alberto Mendes e a mediação da profa. Márcia Rios da Silva.
Do amigo Luiz Andrioli, hoje publicarei sua vídeo-crônica para a Rede Record de Televisão sobre Dalton Trevisan, tema da sua dissertação de mestrado.Vale a pena ver e ouvir.
Leiam no link abaixo a entrevista completa do jornalista e escritor Audálio Dantas para o jornal espanhol "El Mundo", sobre o seu livro "O Menino Lula", que estou lendo e recomendo.
De tanto ser tentando pelo vizinho, ex-companheiro de copo, da sinuca e da porrinha, capitulou. Iria à sessão de trezentos-e-não-sei-quantos pastores na quarta-feira para ver como é que era. Se gostasse, freqüentaria; caso contrário, o vizinho que lhe perdoasse, mas continuaria a adorar o deus Baco.
No dia acertado, foi um dos primeiros a chegar para melhor sondar o ambiente. Apesar de ser, até então, um católico, apostólico, romano, nunca fora chegado à igreja, muito menos a templos evangélicos. Achava padres e pastores mercadores da alma e da fé dos incautos e por eles nutria uma tremenda ojeriza. Os pastores principalmente, pois, estes, faziam verdadeira lavagem cerebral no infeliz que chegava ao ponto de adorar o seu líder espiritual acima de qualquer coisa.
Nesse dia os trezentos-e-não-sei-quantos pastores iriam promover uma faxina em regra para tirar o Diabo do corpo dos possuídos, prova irrefutável de seus poderes e da fragilidade espiritual dos fiéis. Já havia muita gente no recinto e por isso demorou a achar um lugar onde tivesse ampla visão do púlpito e ao mesmo tempo pudesse ser visto pelo amigo.
Sessão iniciada, viu os pastores suar a camisa em exercício de invocação do Divino e ficou impressionado com as exigências que faziam de Jota Cristo, como se fossem seus superiores hierárquicos ou se Cristo lhes devesse obediência por qualquer outro motivo. E, de tanto exigirem providências, um demônio se manifestou no corpo de um sujeito magricela, que pulou agitado no meio do corredor, espumando, gritando palavras incompreensíveis e ameaçando agredir as pessoas próximas a ele. Uma legião de seguranças, saída do invisível, segurou o manifestado e o levou para o local onde se daria o exorcismo. Dez minutos depois o magricela se acalmou e voltou tranqüilo para o seu lugar, sorrindo e pedindo desculpas àqueles ameaçados por ele.
Os trezentos-e-não-sei-quantos pastores continuaram a sessão do bota-fora de capetas, dizendo que fora captadas ondas extra-sensoriais dando conta de mais demônios no recinto e que todos deveriam orar com mais fé e aumentar o dízimo. Era o amor ao vil metal que tornava o homem escravo de Satanás. “Desfaçam-se do canal de atração do Capeta! Esvaziem o bolso!” e o povo obedecia, enchendo as sacolas de dinheiro. Gente que, mais tarde, não teria como comprar pão para os filhos. Mas Deus daria um jeito de matar a fome, garantiam os trezentos-e-não-sei-quantos enviados do Divino.
No meio do alvoroço formado pelo esvaziamento de bolso, o candidato a evangélico notou um cidadão ao seu lado em estado de transe. Nada demais se o dito cujo não tivesse para mais de dois metros de altura por outro tanto de largura. A Bíblia, aberta, repousava sem a menor dificuldade na palma da mão do mastodonte, de tão grande que era. Lembrou-se do estrago que o magricela promoveu e temeu pela sua integridade física caso os tremores no corpo daquele cidadão fosse, de fato, o Capeta se manifestando. Dava sinais de alucinado. Haveria seguranças suficientes para dominá-lo? Não quereria o Capeta se aproveitar daquelas mãos gigantes para esgoelar uns quatro a cinco ali ao seu lado? Quem seria a primeira vítima senão ele, um descrente de tudo? Olhou ao redor em busca de outro lugar onde pudesse ficar e não viu nenhum. O templo estava lotado e ele mal podia se mexer. As pessoas oravam cada vez mais alto, respondendo ao comando dos pastores. Só havia uma saída: vigiar os movimentos do cidadão atentamente, à espera de algum gesto violento. O Inimigo é traiçoeiro e ele não iria abrir a guarda, apesar do aparente estado de pânico.
O cidadão pronunciava palavras desconexas, aumentando de volume todas as vezes que os trezentos-e-não-sei-quantos pastores exigiam de Jota Cristo que expulsasse os demônios presentes no corpo de alguns. Começou um autoflagelo, usando a Bíblia como chicote e não mais palavras se ouviam, mas grunhidos e estremecimento corporal, como se fosse ter um ataque de epilepsia a qualquer instante.
“Por que fui me deixar convencer por aquele sacrista, filho duma figa!?” pensou apavorado o ex-futuro evangélico, sem conseguir tirar os olhos das mãos do Possuído, que, àquelas alturas, pareciam mãos gigantescas. Sentiu um líquido quente escorrer pelas suas trêmulas pernas e os dentes começaram a ranger. O povo todo parecia uma multidão de alucinados e se imaginou sendo trucidado pelo “guarda-roupa” ao lado. Não. Não se deixaria abater por um endemoniado qualquer. Reagiria, lutaria e talvez desse tempo dos seguranças chegar.
Quando os enxota-diabos tornaram fortes seus apelos exorcísticos, o rebanho entrou em histeria coletiva. O possesso parrudo teve um forte estremecimento, largou a Bíblia no chão, levou as mãos à cabeça e, com cara de poucos amigos, virou-se para o lado do aterrorizado estreante na irmandade evangélica, que, sem encontrar um corredor de fuga, deu um salto felino sobre o banco traseiro, depois para o outro, pisando nas pessoas, e assim sucessivamente, até alcançar a saída do templo e sair em desembalada carreira rua afora, perseguido por uma multidão incentivada por trezentos-e-não-sei-quantos pastores incitantes:
– Peguem ele! Não deixem ele fugir! Ele está possuído de Lúcifer, o rei dos demônios! Agarrem o possuído!
“Nunca vi meu pai de camisa esporte.” Assim Ricardo Ramos começou um conto intitulado Herança. Está no seu livro Circuito fechado, publicado nos anos 70. Aplaudido pela crítica àquela época, nunca mais o vi nas livrarias. Digamos logo: esse deus (ou diabo) chamado mercado não permite que você hoje possa oferecê-lo (ou recebê-lo) como um presente, com toda certeza não tão vistoso quanto uma gravata, e menos palatável do que uma garrafa de uísque, porém de valor incomensurável.
Já na primeira frase da sua história, o filho de Graciliano Ramos nos leva a confirmar a fama de que o seu pai era um homem pouco chegado a informalidades.
A trama envolve um encontro com a sua mãe viúva, a fazer-lhe comparações com o marido, que sempre fora mais firme nas respostas às suas dúvidas. Já adulto e bem-sucedido no mundo dos negócios, e com algum reconhecimento também no meio literário, Ricardo Ramos fez neste conto o que se pode considerar uma superação de traumas da infância, graças a um processo de elaboração da poderosa memória paterna. Um caso exemplar. Sobretudo para quem teve (ou tem) um pai famoso.
Nos meus anos mais vulneráveis e juvenis, vi o Ricardo Ramos de longe. Ele havia acabado de adentrar a redação do jornal Última Hora, em São Paulo, no qual escrevia uma coluna literária semanal. Parou diante de uma mesa para pegar a correspondência que lhe era endereçada pelos leitores. E lá ficou, de pé, abrindo os envelopes. Aí alguém me disse (deve ter sido o até hoje meu amigo Ignácio de Loyola Brandão):
– Aquele ali é filho do Graciliano! – Não me lembro se o invejei pela paternidade ou pela elegância. De estatura acima da mediana, ele tinha um corpo esbelto e vestia-se como que saído de uma loja da Rua Augusta. O Loyola, então um escritor em processo, levou-me para perto dele, que me cumprimentou com amabilidade. Tempos depois, em outras circunstâncias, nos reencontramos. Saí do Rio para um evento naquela mesma São Paulo onde eu o havia visto de raspão um dia, e lá fui recebido por ele no saguão do Hotel Hilton, na Avenida Ipiranga, beirando a esquina da Consolação. Eram oito horas da noite.
Conversamos até as três da manhã. Mas não tive coragem de perguntar nada sobre as suas relações com o seu pai. Coisas assim: se o velho Graça era tão rígido quanto demonstrava em seus textos, a ponto de quando um filho o chateava, bater-lhe na cabeça com um facão, conforme se contava. E se sentia as mãos do mestre agarrando as suas, quando escrevia. Ou se o fato de ser filho de quem era atrapalhava-lhe a carreira literária, sempre sujeita a uma comparação incômoda. Nada disso. Falamos de outras coisas.
Ricardo Ramos encerrou aquela memorável noite dizendo-me que Graciliano, mesmo tendo tido em vida o seu valor reconhecido, enquanto viveu não viu nenhum dos livros que escreveu vender sequer 3 mil exemplares. Nem o Vidas secas, imagine, que hoje vende horrores. Se o seu tempo lhe foi padrasto, em compensação a posteridade lhe tem sido uma boa mãe.
Era eu mais o cabo Chico, na empreitada. O cabo era responsável pela diligência, por conta da patente, só mesmo pela patente. Apesar de soldado raso, sempre fui mais destemido do que ele, é bom que se diga.
Não que Chico fosse frouxo, não era bem assim. E não digo isto pelo fato de ele ser meu superior, pois não sou de me curvar a formalidades nem me presto ao ofício de puxa-saco. Mas a verdade é que se tratava de homem de costumes muito jeitosos e delicadeza de alma inaceitáveis para quem tinha que lidar com indivíduos de má índole, salafrários, gatunos e até assassinos.
Muitas vezes, na sala de interrogatório – melhor lugar para se destrinchar uma questão e se ler a natureza de um sujeito bom ou mau –, vi o cabo Chico demonstrar moleza incompatível com a farda, dispensar a verdadeiros facínoras tratamento que deve ser dispensado só a homens de bem. Coração mole. Maior tolice que um homem pode fazer é dar ouvidos e coração a quem não deve.
Eu dizendo gente ruim é gente ruim, cabo, não perca seu tempo, meu amigo. Ele respondendo soldado, deixe disso, soldado, não julgue um filho de Deus pela aparência nem acuse ninguém de ter feito um malfeito só porque disseram que o malfeito foi feito. O infeliz se aproveitando dos bons sentimentos do coitado e repetindo é isso, cabo, pois é isso, meu cabo, é o que tenho dito aqui desde o dia em que cheguei. Mas esse soldadinho aí não me escuta e só quer saber de bater e bater, como se estivesse lidando com um jegue empacado.
E o inocente do Chico me condenando, não quero saber de valentia aqui dentro, rapaz, interrogue sem apelar para a maldade, não faça isto, pois não aceito violência aqui, soldado, como se eu fosse o meliante e o outro o bonzinho. Já se viu?
Não que às vezes o sangue não ferva, a mão não fique pesada e eu não perca a cabeça. Acontece. Mas não tinha acontecido ainda com aquele peste sem vergonha, e isto foi o que mais me doeu. Eu dizendo não encostei a mão nesse traste, cabo, e o cabo gritando não minta, não minta, soldado, que o homem está com o olho roxo, a testa aberta, o beiço inchado. Tão desgraçado o desgraçado, que até se feriu no prego da porta para dizer que fui eu quem o machucou, e depois sair da Delegacia rindo e debochando da autoridade.
Mas a justiça não falha e o miserável apareceu morto em um buraco escuro, dias depois de sumir da minha frente. O cabo Chico pensa que fui eu o providenciador do desaparecimento e fez de tudo para me enquadrar numa penca de processos, até administrativos, para que eu perdesse o ganha-pão e ainda fosse preso. Só não conseguiu por falta de provas. Pois provas não são encontradas em qualquer esquina.
No dia da diligência, marcada com quase uma semana de antecedência, nós deixamos a Delegacia em Riachão bem cedo, seguindo o rastro de um sujeito com cara de perigoso, que estava escondido e acoitado lá para os lados do Moquém, em uma tocaia que já durava bom tempo, à espera de algum inocente para roubar ou matar. Ou roubar e matar, que gente ruim não economiza na hora do mau serviço.
Não tínhamos sequer um retrato do malfeitor para nos orientar nas buscas, para mostrar a um passante e perguntar se viu um cabra assim e assado que nem esse, mas fomos em frente, tendo como base o retrato falado que era só falado mesmo, pois nem eu nem o cabo sabia desenhar para transformar o retrato falado em desenhado.
Acabou se tornando um retrato gravado na mente, tanto que os autores da queixa descreveram o homem, de queixo comprido, dentes para fora, bigode grosso, nariz fino, olho sei lá como, testa não sei de que jeito. Também sabíamos que o mal encarado tinha umas costeletas fora de moda que desciam do cabelo pela curva da barba, até o meio da cara. Quer dizer, devia ser feio como o diabo.
Enchemos os alforjes de carne seca, preá e frango assados, rapadura e farinha. Enganchamos no lombo do burro também, preso na cela, um vasilhame grande cheio de água fresca. Prontos para a guerra, para a guerra partimos.
A pesquisa junto aos moradores do vilarejo começou na manhã do dia seguinte. A gente ia perguntando se viu passar hoje, ontem ou qualquer dia um sujeito assim, de queixo comprido, dentes para fora, bigode grosso, nariz fino, olho sei lá como, testa não sei de que jeito e amplas costeletas. Eu perguntava, oferecia a descrição, o povo ia dizendo não e não, não vi, nunca vi, e o cabo Chico só agradecendo, obrigado, muito obrigado, gentil que só uma freira, sequer se dando conta de que aqueles nãos todos não passavam de desfaçatez, os matutos estavam era protegendo o endiabrado.
A minha preocupação era só encontrar o rastro do sujeito, para levá-lo são e salvo às barras do Tribunal e fazê-lo pagar pelo crime cometido. O delegado me amofinando, estamos perto do homem, soldado, vamos pegá-lo, você terá que se comportar como autoridade policial e não como torturador. O senhor não vai me triscar um dedo no preso, soldado, é uma ordem, não é um pedido. Parecia que falava de um santo e não de um monstro, agora vejam.
Era ele, só podia ser aquele, não tinha como ser outro o indivíduo que encontramos na terceira ou quarta manhã de buscas, deitado em uma esteira, à sombra do umbuzeiro florido e forrado de umbus, uns verdes e outros amarelos. O cabo fez o gesto com a mão para que eu me contivesse e passou à minha frente, como a mostrar quem carregava a maior patente e era o responsável pela missão, grande bosta.
Perguntou se podia fazer umas perguntas e o suspeito respondeu que sim, sem demonstrar qualquer susto ou apreensão. Nem um pouco preocupado com a presença da lei, cínico que só ele. Olhei bem nos olhos do sonso e fui dizendo muito bonita essa sua costeleta, seu fulano, há quanto tempo o senhor a usa? O cabo me mandou calar a boca, calar a boca, e se dirigiu ao queixo fino como se estivesse se dirigindo a um príncipe: já andou por tal lugar assim, assim? Conheceu fulano de tal? Envolveu-se em briga não sei quando, que resultou em morte? É fugitivo? Porta arma de fogo ou faca, punhal, peixeira? E o descarado não, não, não, não, não senhor, não fiz, não andei, não briguei, não uso arma, não sou eu, não, não, não, meu sangue subindo pelas veias do pescoço, pois via a mentira nos olhos do cabra ruim, e o cabo nada de agir.
Até que eu disse cabo, preste atenção, cabo, ora, ora, cabo, ao menos reviste o homem, não adianta perguntas e só perguntas por que esse demônio vai negar e mentir até não agüentar mais. O cabo disse se acalme, não me acalmei. Agarrei o costeleta pelos colarinhos, sacudi para um lado e para o outro, para cima e para baixo, porque se tivesse qualquer arma de fogo ou de lâmina escondida no corpo ia cair. E caiu.
Caiu o canivete que o suspeito carregava no bolso da bunda, enquanto eu gritava está aí a prova, a prova aí está, a arma com a qual o bigode grosso perpetrou o crime. Foi então que o cabo me empurrou para trás, tomou o homem de minhas mãos e o levou para detrás de uma cerca que passava rente ao umbuzeiro. Dando ordens para que eu me acalmasse, ficasse onde estava, não desse um passo à frente, pois ia interrogar o suspeito a sós, imaginem.
Eu fiquei para morrer, com vontade de enforcar o cabrão e também o cabo conivente, e logo, logo o bestalhão saiu de trás da cerca, ordenando vamos embora, soldado, vamos embora que o homem é inocente.
Eu disse cabo, pelo amor de Deus, cabo, ponha a mão na consciência, eu não acredito que o senhor acredite na inocência desse meliante. O homem é inocente, ele repetia, inocente, esse aí nunca matou nem uma mosca. Eu já estava com os nervos querendo sair todos pela boca quando perguntei e o canivete, cabo, o senhor não viu o canivete? Ele respondeu com a serenidade de um anjo e não com a firmeza de um policial:
– O canivete ele usa para descascar laranja.
E ainda repetiu, nas minhas barbas, diante dos meus olhos arregalados, dos olhos arregalados do burro de carga que nos esperava para fazer o caminho de volta:
Era eu mais o cabo Chico, na empreitada. O cabo era responsável pela diligência, por conta da patente, só mesmo pela patente. Apesar de soldado raso, sempre fui mais destemido do que ele, é bom que se diga.
Não que Chico fosse frouxo, não era bem assim. E não digo isto pelo fato de ele ser meu superior, pois não sou de me curvar a formalidades nem me presto ao ofício de puxa-saco. Mas a verdade é que se tratava de homem de costumes muito jeitosos e delicadeza de alma inaceitáveis para quem tinha que lidar com indivíduos de má índole, salafrários, gatunos e até assassinos.
Muitas vezes, na sala de interrogatório – melhor lugar para se destrinchar uma questão e se ler a natureza de um sujeito bom ou mau –, vi o cabo Chico demonstrar moleza incompatível com a farda, dispensar a verdadeiros facínoras tratamento que deve ser dispensado só a homens de bem. Coração mole. Maior tolice que um homem pode fazer é dar ouvidos e coração a quem não deve.
Eu dizendo gente ruim é gente ruim, cabo, não perca seu tempo, meu amigo. Ele respondendo soldado, deixe disso, soldado, não julgue um filho de Deus pela aparência nem acuse ninguém de ter feito um malfeito só porque disseram que o malfeito foi feito. O infeliz se aproveitando dos bons sentimentos do coitado e repetindo é isso, cabo, pois é isso, meu cabo, é o que tenho dito aqui desde o dia em que cheguei. Mas esse soldadinho aí não me escuta e só quer saber de bater e bater, como se estivesse lidando com um jegue empacado.
E o inocente do Chico me condenando, não quero saber de valentia aqui dentro, rapaz, interrogue sem apelar para a maldade, não faça isto, pois não aceito violência aqui, soldado, como se eu fosse o meliante e o outro o bonzinho. Já se viu?
Não que às vezes o sangue não ferva, a mão não fique pesada e eu não perca a cabeça. Acontece. Mas não tinha acontecido ainda com aquele peste sem vergonha, e isto foi o que mais me doeu. Eu dizendo não encostei a mão nesse traste, cabo, e o cabo gritando não minta, não minta, soldado, que o homem está com o olho roxo, a testa aberta, o beiço inchado. Tão desgraçado o desgraçado, que até se feriu no prego da porta para dizer que fui eu quem o machucou, e depois sair da Delegacia rindo e debochando da autoridade.
Mas a justiça não falha e o miserável apareceu morto em um buraco escuro, dias depois de sumir da minha frente. O cabo Chico pensa que fui eu o providenciador do desaparecimento e fez de tudo para me enquadrar numa penca de processos, até administrativos, para que eu perdesse o ganha-pão e ainda fosse preso. Só não conseguiu por falta de provas. Pois provas não são encontradas em qualquer esquina.
No dia da diligência, marcada com quase uma semana de antecedência, nós deixamos a Delegacia em Riachão bem cedo, seguindo o rastro de um sujeito com cara de perigoso, que estava escondido e acoitado lá para os lados do Moquém, em uma tocaia que já durava bom tempo, à espera de algum inocente para roubar ou matar. Ou roubar e matar, que gente ruim não economiza na hora do mau serviço.
Não tínhamos sequer um retrato do malfeitor para nos orientar nas buscas, para mostrar a um passante e perguntar se viu um cabra assim e assado que nem esse, mas fomos em frente, tendo como base o retrato falado que era só falado mesmo, pois nem eu nem o cabo sabia desenhar para transformar o retrato falado em desenhado.
Acabou se tornando um retrato gravado na mente, tanto que os autores da queixa descreveram o homem, de queixo comprido, dentes para fora, bigode grosso, nariz fino, olho sei lá como, testa não sei de que jeito. Também sabíamos que o mal encarado tinha umas costeletas fora de moda que desciam do cabelo pela curva da barba, até o meio da cara. Quer dizer, devia ser feio como o diabo.
Enchemos os alforjes de carne seca, preá e frango assados, rapadura e farinha. Enganchamos no lombo do burro também, preso na cela, um vasilhame grande cheio de água fresca. Prontos para a guerra, para a guerra partimos.
A pesquisa junto aos moradores do vilarejo começou na manhã do dia seguinte. A gente ia perguntando se viu passar hoje, ontem ou qualquer dia um sujeito assim, de queixo comprido, dentes para fora, bigode grosso, nariz fino, olho sei lá como, testa não sei de que jeito e amplas costeletas. Eu perguntava, oferecia a descrição, o povo ia dizendo não e não, não vi, nunca vi, e o cabo Chico só agradecendo, obrigado, muito obrigado, gentil que só uma freira, sequer se dando conta de que aqueles nãos todos não passavam de desfaçatez, os matutos estavam era protegendo o endiabrado.
A minha preocupação era só encontrar o rastro do sujeito, para levá-lo são e salvo às barras do Tribunal e fazê-lo pagar pelo crime cometido. O delegado me amofinando, estamos perto do homem, soldado, vamos pegá-lo, você terá que se comportar como autoridade policial e não como torturador. O senhor não vai me triscar um dedo no preso, soldado, é uma ordem, não é um pedido. Parecia que falava de um santo e não de um monstro, agora vejam.
Era ele, só podia ser aquele, não tinha como ser outro o indivíduo que encontramos na terceira ou quarta manhã de buscas, deitado em uma esteira, à sombra do umbuzeiro florido e forrado de umbus, uns verdes e outros amarelos. O cabo fez o gesto com a mão para que eu me contivesse e passou à minha frente, como a mostrar quem carregava a maior patente e era o responsável pela missão, grande bosta.
Perguntou se podia fazer umas perguntas e o suspeito respondeu que sim, sem demonstrar qualquer susto ou apreensão. Nem um pouco preocupado com a presença da lei, cínico que só ele. Olhei bem nos olhos do sonso e fui dizendo muito bonita essa sua costeleta, seu fulano, há quanto tempo o senhor a usa? O cabo me mandou calar a boca, calar a boca, e se dirigiu ao queixo fino como se estivesse se dirigindo a um príncipe: já andou por tal lugar assim, assim? Conheceu fulano de tal? Envolveu-se em briga não sei quando, que resultou em morte? É fugitivo? Porta arma de fogo ou faca, punhal, peixeira? E o descarado não, não, não, não, não senhor, não fiz, não andei, não briguei, não uso arma, não sou eu, não, não, não, meu sangue subindo pelas veias do pescoço, pois via a mentira nos olhos do cabra ruim, e o cabo nada de agir.
Até que eu disse cabo, preste atenção, cabo, ora, ora, cabo, ao menos reviste o homem, não adianta perguntas e só perguntas por que esse demônio vai negar e mentir até não agüentar mais. O cabo disse se acalme, não me acalmei. Agarrei o costeleta pelos colarinhos, sacudi para um lado e para o outro, para cima e para baixo, porque se tivesse qualquer arma de fogo ou de lâmina escondida no corpo ia cair. E caiu.
Caiu o canivete que o suspeito carregava no bolso da bunda, enquanto eu gritava está aí a prova, a prova aí está, a arma com a qual o bigode grosso perpetrou o crime. Foi então que o cabo me empurrou para trás, tomou o homem de minhas mãos e o levou para detrás de uma cerca que passava rente ao umbuzeiro. Dando ordens para que eu me acalmasse, ficasse onde estava, não desse um passo à frente, pois ia interrogar o suspeito a sós, imaginem.
Eu fiquei para morrer, com vontade de enforcar o cabrão e também o cabo conivente, e logo, logo o bestalhão saiu de trás da cerca, ordenando vamos embora, soldado, vamos embora que o homem é inocente.
Eu disse cabo, pelo amor de Deus, cabo, ponha a mão na consciência, eu não acredito que o senhor acredite na inocência desse meliante. O homem é inocente, ele repetia, inocente, esse aí nunca matou nem uma mosca. Eu já estava com os nervos querendo sair todos pela boca quando perguntei e o canivete, cabo, o senhor não viu o canivete? Ele respondeu com a serenidade de um anjo e não com a firmeza de um policial:
– O canivete ele usa para descascar laranja.
E ainda repetiu, nas minhas barbas, diante dos meus olhos arregalados, dos olhos arregalados do burro de carga que nos esperava para fazer o caminho de volta:
– Para descascar laranja.
Na remota década de 60, todos os dias, no final da tarde, uma cambada de moleques entanguidos plantava-se à porta da casa de dona Purcina, no bairro Aldeia, à espera da ração de bola. Éramos quase todos do mesmo tope e todos da mesma cor: marrom-descaso. Integravam a cabroeira: Cleto, Valdemar, Paredão, Tonico, Berto, Zé do Jaburu, Orlando da Bela, Nivaldo, Walter do Candinho, Pedro e Solimar. Eventualmente, apareciam no terreiro: Marcelo Castro e Antônio Macedo, os dois únicos bem-nascidos do bando. Os outros eram xerém. À época, bola era produto raro e caro. Muitas vezes disputamos rachas animadíssimos com prosaicas bexigas de boi ou bolinhas de meia. No dia em que comprei minha primeira bola de borracha, uma autêntica “casco-de-peba”, não consegui me concentrar na aula: meu pensamente não se desgrudava dela.
Parafraseando Bandeira, aquela bolinha foi minha primeira amante. E como o porquinho-da-índia do Poeta, ela não fazia o menor caso dos meus acenos e carinhos: preferia os chutes certeiros de Paredão e Solimar, o que me deixava roído de ciúmes...
Perdidos naquela aldeia remota, onde o rádio era um luxo só permitido a dois ou três ricaços, tínhamos uma verdadeira veneração pelo único time que conhecíamos: o do Pelé. Qualquer um de nós sabia de cor e salteado a escalação daquela máquina de destroçar adversários: Gilmar, Mauro, Dalmo, Lima, Zito, Melgálvio, Calvet, Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe. À época, o time da Vila não tinha o menor pejo em pegar quatro gols numa partida; Pelé, Coutinho e Pepe, faziam cinco ou seis, dependendo do humor de cada um. Houve um dia, porém (14 de novembro de 63), em que o Milan cruzou o caminho do Santos para tirar-lhe o título de bi-campeão Interclubes. Para desbancar a equipe da Vila, o time italiano contava com a cumplicidade e a competência de dois brasileiros: Mazola e Amarildo, também conhecido como “o possesso”. Para os mais jovens, um lembrete: Amarildo fora o substituto de Pelé na copa de 62 da qual saiu consagrado. Era um centroavante rompedor e perigoso. Não bastasse isso, o Santos, naquele dia, não podia contar com Pelé, Zito e Calvet. 130 mil torcedores, no Maracanã, assistiram, consternados, a um primeiro tempo em que o Santos levou dois gols e não fez nenhum. Nos mais antigos, bateu a síndrome de macaranaço, medo de que se repetisse ali o que ocorrera em 1950, quando perdemos a copa do mundo para o Uruguai. Ledo engano. Se os italianos tinham um “possesso”, o Santos tinha um “alucinado”, Almir Pernambuquinho que, literalmente, comandou a reação e a virada sensacional. Vencemos por 4X2. Um dia para não ser esquecido.
Por que me lembrei disso agora? É escusado explicar. Com a mesma angústia vivida há 47 anos, vi o time dos “Meninos da Vila”, com três jogadores a menos, segurar a fúria do Santo André, na tarde do dia 2 de maio. Neymar, Robinho e Ganso fizeram a diferença. Finda a peleja, só me faltou a companhia dos moleques da minha aldeia, notadamente do Paredão, para que a alegria fosse completa. Um dia para ser lembrado, mesmo por um flamenguista juramentado como eu.
Flávio Cavalcanti fez história na televisão com o seu programa “A Grande Chance”, nas noites de, salvo engano, quartas-feiras. Foi nesse programa que um menino de nome Armando Macedo assombrou o Brasil com a sua perícia no bandolim. Foi aclamado o grande vencedor, Sérgio Bittencourt não se conteve em elogios e o sisudo Fernando Lobo (pai do Edu) deu nota dez, acho que a única em sua vida de jurado, e o Armando Macedo teve sua apresentação gravada em compacto duplo, e fez muito sucesso na Bahia, principalmente em cima do trio elétrico do pai, o famoso Trio Dodô e Osmar.
No início dos anos oitenta, Flávio Cavalcanti reapareceu com um programa de variedades, mas não conseguiu reeditar o sucesso do programa anterior. Mesmo assim havia uma grande audiência e, entre os telespectadores, se encontrava a minha sogra.
O programa se chamava “Boa noite, Brasil”, na TV Bandeirante, e havia um quadro em que o apresentador ligava para a casa de alguém, cujo telefone era escolhido aleatoriamente na lista telefônica, e, quando atendiam do outro lado e falavam “alô”, Flávio respondia:
– Não diga alô. Diga “Boa noite, Brasil” e ganhe prêmios! – e listava os prêmios que o cidadão ou a cidadã deixara de ganhar.
Uma noite em que a minha sogra assistia ao programa, o telefone tocou. Ela atendeu:
– Alô! – Não diga alô! Diga Transbrasil e ganhe uma passagem de ida! – anunciou uma voz do outro lado.
Ela desligou o telefone e voltou ao programa. Quinze minutos depois uma nova chamada:
– Alô! – Não diga alô; diga Transbrasil e ganhe uma passagem de ida! A senhora perdeu uma segunda chance!
Ela ficou calada e voltou ao posto de telespectadora. Em menos de dez minutos o telefone tocou. Ela deu um pulo do sofá, tirou o fone do gancho antes que outra pessoa atendesse, e falou ofegante, porém triunfal:
– Transbrasil! – Muito bem! A senhora acaba de ganhar uma passagem de ida para a puta que lhe pariu!
Não me canso de dizer o quanto gente me surpreende, me encanta. Ainda mais quando é alguém que amamos e que é, verdadeiramente, um pedaço de nós.
Sempre soube que seria mãe e sempre me senti especial por isso. Quando adolescente pensava na maravilha que devia ser gerar uma vida, cuidar dela, ser responsável até que pudesse fazer suas escolhas, seguir seu caminho.
Pensava também nas mulheres que queriam ser mãe e não conseguiam e nas que não sendo mães biológicas eram maravilhosas mães-adotivas, mães-tias, mães-avós, mães-irmãs, mães madrinhas, mãe-drastas, mães- amigas, mães-anjos de guarda.
A aventura de gerar uma vida e dela ser parte é, no meu entender, um divisor de águas. Avalio a minha vida como AV e DV (Antes de Vinícius, Depois de Vinícius).Temos nossos códigos, nossos pequenos segredos de mãe e filho e brincadeiras especiais entre nós.
Ele sempre me pede para contar histórias das brincadeiras de quando era bebê. Gosto de várias, mas há uma em especial que é como a gente brincava em minha cama até ele dormir e eu o carregava até seu berço, depois cama, no quarto de teto cheio de naves espaciais, planetas, cometas e até bruxinhas voadoras, brilhantes no escuro.
Sempre lia, ou “cantava” pequenas historias e ele ria muito das caras e bocas que eu fazia. O “Cravo brigou com a rosa”, “Terezinha de Jesus”, a” história do jacaré” "A lenda do Pégaso”, “ Os Saltimbancos”, são exemplos de cantigas interativas, divertidas que fazia questão de cantarolar até que dormisse.
Neste dia em especial - Vinícius devia ter pouco mais de um aninho - já havia gasto meu “repertório” de cantigas interativas, quando me lembrei de uma comercial de TV de uma caderneta de poupança que contava uma história de três sacis e uma onça que os perseguia. Os sacis, cansados de fugir, construíam uma casa no alto de uma arvore e passavam a troçar da “Dona Onça”.
Cantarolei como sempre fazia com as demais cantigas e ele me olhava, fascinado. Sempre que acabava ele dizia “mais, mais”, porém dessa vez, desabou num choro que me deu trabalho consolar.
Fiquei intrigada com o que teria causado aquele choro e alguns meses depois, enquanto lhe contava fábulas, contei a tal história da onça e dos sacis, mas atenta para não fazer caras e bocas, nem mudar a voz. Ao termino, me olhou desconsolado e, mais uma vez, chorou.
Prometi nunca mais contar aquela história, embora me intrigasse o motivo do choro. Mas, aos seis anos, aproveitando que me pedia para contar algo de quando era bebê, contei-lhe os episódios do choro e disse: - Filho, eu nunca entendi porque você chorou a cada vez que lhe contei essa história! Ele pensou um pouco e me respondeu como se voltasse no tempo: - Eu chorava com pena da onça, mamãe.
Essa é minha semente. Bem humorado, curioso, mas sensível às dores do mundo. A cada dia, agradeço a Deus a alegria de ter a oportunidade de ensinar e aprender na aventura maravilhosa que é ser sua mãe.
A minha mãe e a todas as mulheres mães biológicas, do afeto ou mesmo as nulíparas, que a aventura da maternidade nos anime na caminhada de, não só lutar por um mundo melhor, mas criar filhos melhores para este mundo.
Se você ainda não leu o conto Viagem aos seios de Duília, de Aníbal Machado, leia-o: é a mais patética, digo, a mais humana de todas as narrativas que já li. Para não lhe furtar o prazer da leitura, direi apenas que é a história de um cidadão, José Maria que, adolescente, num dia de festa religiosa, teve a felicidade ou a desdita de ver os seios de uma bela jovem, Duília, num povoado (Pouso Triste) perdido nos cafundós de Minas. A cena durou apenas uma fração de segundo, tempo suficiente para marcar-lhe a existência. Uns 40 anos depois, José Maria, aposentado, resolve voltar ao local da mágica visão, na vã tentativa de reencontrar Duília...
Por que me lembrei desse conto agora? Honestamente, não sei. Sei apenas que, ao acordar na manhã de ontem, lembrei-me de Evanilde, uma menina baiana que parecia feita de porcelana e sonho. Parafraseando o poeta, quando olhada de face, era uma boneca de louça; quanto vista de perfil, a haste de um lírio, prestes a partir-se. Tudo nela reclamava cuidados especiais. Era muito branca, dissimulada e gaga. Falava aos trancos. Às vezes, na tentativa de pronunciar uma palavra, fechava os olhos como se o gesto pudesse livrá-la da gaguice. Aos olhos do menino, era encantadora. Seu passatempo preferido era provocar-me. Sagazmente, aproximava-se de mim, sem jamais me permitir tocá-la. Era um jogo de sedução sofisticado demais para uma garota tão jovem, de aparência angelical.
Uma noite, saímos para acompanhar o Reisado do Manuel Antônio, no bairro Aldeia. Éramos um bando de meninos e meninas do mesmo tope. Lá pelas tantas, ela afastou-se das meninas e, sorrateiramente, aproximou-se de mim. Como peças imantadas, nossas mãos se atraíram e entrelaçaram-se. A cena deve ter durado apenas alguns segundos, mas me fez acreditar na existência de um paraíso terreno... Naquela noite, sepultei de vez o sonho de dona Purcina de me fazer padre. No dia seguinte, ela se comportou como se nada tivesse acontecido, o que me deixou profundamente magoado. Aquele jogo pendular que lhe dava tanto prazer me exasperava.
O tempo e os contratempos nos separaram. Poucos dias depois, numa manhã de sábado, com a leveza de um felino, ela veio até mim e, sem aviso prévio, beijou-me o rosto. Aparvalhado, nem percebi que aquele beijo inusitado se fazia acompanhar um doloroso ADEUS. Como naquela canção do Chico, “agora eu era um louco a perguntar/ o que é que a vida vai fazer de mim?”. Nunca mais a vi. Se bem me lembro, foi a primeira vez que morri de amor. Mas o tempo tudo cura. Com Quintana, aprendi que é tão bom morrer de amor e continuar respirando...
Na Ladeira de Bidô havia uma forja e um ferreiro. Havia também muitas crianças brincando de patinete e um papagaio muito falador. O ferro na bigorna e o martelo a cantar: “téin! téin! téin!”, em extremo gozo tirano do vencedor sobre o vencido, o escárnio do forte sobre o fraco, o supremo júbilo da subjugação do aço aos seus caprichos.
– Téin, téin, téin! – repetia o papagaio, que não mais dizia “hu! tabaréu!”, desorientado que estava com tanto martelar. Era um desassossego só, mal o sol raiava e o martelo cantava em estridência ritmada, acordando o povo para mais um dia de labuta, nas roças, ou nas repartições públicas, que nessa época, se resumiam a apenas duas. Acordava também o papagaio, para mais uma lição musical.
“Téin, téin, téin”, era a canção mais ouvida, cobrindo um raio de dois quilômetros, silenciando apenas quando o ferreiro Bidô parava para tomar uma caneca de café ou então para ralhar com o seu neto Renan, que gostava de jogar pedra nos meninos. O papagaio, por puro instinto de papagaio, rompia o curto descanso do martelo em metálicos e melódicos chalreios: “téin, téin, téin”.
Por causa disso, o povo passou a chamar o louro de “papagaio Téin” e ele ficou muito famoso e atraiu muitas crianças que queriam ouvi-lo cantar “téin, téin, téin”, nos intervalos em que o ferreiro Bidô usava para ralhar com o seu neto Renan ou para tomar uma caneca de café, conforme foi dito acima.
Um dia, o papagaio Téin se cansou da melodia, se abusou da gritaria da molecada e do martelo que só sabia uma música e resolveu procurar outras plagas, onde houvesse diversidade musical e os meninos fossem mais educados e menos barulhentos. Aproveitando uma noite de lua cheia, em que o povo se encontrava sentado na calçada da igreja fazendo serenata, o papagaio Téin arrumou as malas e partiu, sem deixar nenhum bilhete de despedida nem rastro de sua fuga. No outro dia, mais ou menos no horário em que o ferreiro Bidô ralhava com Renan, o povo se preparou para ouvir o papagaio e... nada. “Que é de Téin?”, perguntava-se aflito o povo. “Será que foi comido pelos gatos?”, especulava-se. Desencadeou-se então uma verdadeira onda de vingança pela cidade, sendo colocada a prêmio a cabeça dos gatos, não ficando nenhum felino vadio para contar a história. As crianças choravam a rodo. As aulas foram suspensas e o ferreiro Bidô deu uma surra no neto Renan, desconfiado de que o mesmo estivesse por trás do sumiço do papagaio. A oposição colocou a culpa no prefeito que, para mostrar serviço, decretou luto oficial de três dias e enviou projeto à câmara de vereadores dando o nome do papagaio a uma rua que ia ser inaugurada.
Os anos se passaram e quando o povo começava a se conformar com o sumiço do papagaio, eis que, no meio de uma missa, um garoto irrompe igreja adentro, gritando feito um alucinado, interrompendo o sermão do padre:
– Eu vi Téin! Eu vi Téin! O papagaio! Vi Téin na televisão! Ele tá cantando numa banda de pagode! O papagaio! Vi Téin!