A Saga de Catende
Capítulo Três - Cotidiano Agreste
Capítulo Três - Cotidiano Agreste
O Oratório foi trocado por um quarto normal, dividido com as primas, não mais com santos enormes de olhos de vidro.
Construído sobre um barranco, o casarão de Catende tinha muitos aposentos nos seus altos e baixos, formado por duas partes unidas em uma escadaria. Na de cima ficavam os ateliês, onde as mulheres costuravam para a família e o sustento, com grandes máquinas de bordar em cairel.
Havia também uma enorme cozinha desativada e os chamados quartos dos mortos, trancados, com suas camas, colchões e fantasmas, onde ninguém podia entrar, visitados apenas pelo pó.
Mas o coração palpitante de tudo era a parte de baixo, ao redor do quarto de Dindinha dando para o enorme banheiro verde, com entrada também para a varanda. Nele, um imenso chuveiro de latão, verdadeira ducha caindo sobre um quadrado de tijolos, formava espécie de piscina tosca que as crianças adoravam. Os banhos eram sempre frios. No sertão de Catende fazia calor e o aquecimento se tornava luxo para doentes. Neste quarto de banhos havia uma privada normal, mas o banheiro auxiliar, ao lado da casa de cima, tinha apenas um buraco no chão, cercado por um estrado de madeira.
A menina Helena, acostumada com os confortáveris banheiros da Gávea, na Zona Sul do Rio, tinha pavor de usar este buraco, apontando para um poço interminável. Sorte que no casarão, como em todo interior nordestino, havia um urinol embaixo de todas as camas, usado nas necessidades noturnas e emergências. E também lindas escarradeiras de louça pintada.
Uma vez por semana, o avô Cordeiro, única pessoa a manifestar afeição pela neta, dava a ela dois tostões para comprar coisas na feira. Estas simples moedas eram seu maior tesouro, manifestação de sua individualidade, a possibilidade de algo verdadeiramente seu, não apenas herdado ou adquirido em lote para os agregados da família.
Na feira semanal, alem de alimentos, havia jóias rústicas de couro, artesanais, enfeites múltiplos e água de cheiro em grandes garrafas de vidro, que eram sua paixão. Com estes pequenos mimos sentia-se única, apesar dos vestidos simples, que foram substituindo as lindas roupas trazidas de casa, e das feias alpercatas pretas, iguais para todos. Por causa delas levara uma das reprimendas assustadoras de Dindinha ao acalcanhar a parte de trás que machucava o pé: “Na minha casa não entra mulher de chinelo!”
Nunca soube a razão da ojeriza da avó por eles. Talvez lembrasse um hábito das que viviam na rua proibida, onde ninguém da casa podia passear, personagens da escuridão e segredo das alcovas e dos cochichos infantis. Talvez significasse para aquela sertaneja forte, um símbolo de preguiça e acomodação, o arrastar ritmado de pés pela casa. Dindinha detestava fraqueza.
A água de cheiro era usada nas poucas festas e as idas ao cinema – uma sala no centro da cidade com apenas a tela e o piano. Na cidade grande já havia cinema falado, mas no interior, ele era mudo, mudissimo, as cenas acompanhadas por um instrumentista que mal sabia batucar as teclas. Foi ele que protagonizou uma das histórias mais curiosas de suas lembranças infantis.
Era sexta-feira da Paixão e, no religioso interior nordestino, o filme tinha que ser sobre a vida de Cristo.
Todos levaram suas cadeiras e se acomodaram para assistir compungidos e excitados, às cenas piedosas. Estavam neste clima de emoção diante dos sofrimentos de Jesus quando, ao chegar à parte mais importante e dolorosa do filme, a cena em que o Cristo era colocado na cruz, o pianista, já sem repertório e confuso sobre o que tocar para combinar, atacou da carnavalesca:.
...o tatu subiu no pau, é mentira de ocê...
Foi um susto e depois gargalhada geral. Mas o pobre continuou contratado.
Não devia ser fácil arrumar outro naquele distante sertão.
Capítulo Quatro – A cama e a mesa
Dindinha tinha muitos empregados no casarão, mas não dispensava o trabalho das crianças. Porque o “a preguiça é a mãe de todos os vícios” e “criança quieta está pensando besteira ou fazendo arte.” Então todos, democrática e igualmente, tinham que fazer sua parte no fervilhante microcosmo daquele mundo habitado, essencialmente, por mulheres. Os homens iam para a vida lá fora, o mistério que Helena ainda não tinha idade para entender completamente.
Eram elas, com seus teares, bastidores, pilões e tachos que sustentavam e mantinham a existência cotidiana.
No colégio interno alemão aprendera a cerzir meias, usando o mesmo ovo de madeira da casa da avó. Era a única coisa que sabia fazer de costura. Mas alguém estava sempre noivando entre as mais velhas, era preciso preparar o enxoval, que levaria anos para ser concluído e todos os dedos se faziam necessários.
Lençóis, fronhas e colchas, marcados com monogramas, toalhas de banho e de mesa, com rendas e delicados enfeites, bordados com matame nos ateliês de Tia Julia e Tia Iaiá.
Desajeitada e mal acostumada, ela se viu obrigada a preencher as letras desenhadas do primeiro nome dos noivos, que deveriam estar em todas as peças, guardadas depois nas malas ou baús que as moças levavam de enxoval. Seus esforços não tinham a delicadeza ou beleza das outras meninas, acostumadas desde criança ao oficio de bordadeiras, mas depois de passadas e engomadas as peças, ninguém notaria a letra mais torta ou o buraco menos delicado no miolo das flores.
A loura Anunciada, uma das primas mais velhas, noivou várias vezes e, a cada uma delas, monogramas foram bordados. Depois, tinha que ser apagada a letra masculina e mantido o A inicial. Com certeza, não por decisão dela - naqueles tempos agrestes, mulheres não desmanchavam noivados. Mas Helena nunca soube os motivos. Crianças não eram participadas de razões, apenas ouviam, atrás das portas entreabertas, os cochichos dos adultos ou trocavam confidências entre as costuras.
Uma vez tiveram a encomenda do enxoval de uma sobrinha de Dindinha. A noiva chegou para levar as peças bordadas, moça de posses de Bengala, no interior da Paraíba. Era linda. Mas quando sorriu, Helena teve um choque. Tinha implantado, bem na frente da boca, um dente de ouro, hábito que denotava bom gosto e dinheiro farto na região.
Quando não estavam ajudando nos ateliês, era na imensa cozinha, supervisionadas pelos empregados e pela própria Don’Ana.
Preparando lingüiças – as tripas dos porcos, depois de bem lavadas e limpas, eram viradas pelas crianças com o “pau de vira tripa” mais tarde designação de toda mulher muito magra. O pau era comprido e fino e elas iam puxando até que a enorme tripa ficasse toda virada ao contrário, quando seria outra vez muito bem lavada e preenchida com a carne temperada que lambuzava as mãos infantis de gordura – a sensação era desagradável, mas o odor delicioso.
À medida que iam enchendo as tripas, apertavam em locais determinados, até estufar e prendiam com barbante especial, formando as lingüiças. O rolo comprido era pendurado em cima do fogão onde ficava, milagrosamente sem se estragar, até a ocasião de ser frito e consumido pelos habitantes do casarão e seus convidados.
Ralavam o coco, pilavam café, debulhavam o milho e guardavam as folhas para fazer pamonha. Preparavam os roletes de cana e o melaço para os doces e as balas de alfenim.
O coco era ralado com um pedaço de madeira tosca, que tinha um gancho em forma de garra na ponta. A madeira ficava presa entre uma das coxas e o banco, enquanto esfregavam a metade cortada da fruta até acabar toda a polpa branca. O milho era cuidadosamente descascado porque as pamonhas eram feitas dentro das suas folhas, apertadas e presas, como as lingüiças.
Mas o que ela mais adorava era o café. Os grãos, torrados no fogão de lenha em enormes frigideiras untadas com açúcar e mexidos com grandes colheres de pau pelas cozinheiras, exalavam um perfume delicioso que inundava todo o casarão. Não o cheiro do café comum, da cidade grande, mas algo mágico, inesquecível que nunca mais sairia da sua lembrança olfativa. Depois de torrados, iam para o enorme pilão da altura de uma criança de cinco anos, onde eram amassados pelos adultos fortes. Pilavam o café, levado depois para a máquina de moer de ferro, onde viravam o pó que sustentava as noites, as madrugadas e as manhãs sertanejas.
Em Catende, da comida aos lençóis, o café e o leite, a linguiça e o pão, as pamonhas e os munguzás, as canjicas e as toalhas, era tudo fruto do trabalho feminino. E o cheiro que perfumava a casa era o das mulheres, no seu cotidiano e incansável jeito de conservar a vida.
Capítulo Cinco - Pecados e segredos
No casarão de Catende, sexo era coisa velada, cochichada pelos cantos e jamais conversada, especialmente na frente das crianças. Dindinha tinha uma rígida moral calvinista, herança talvez de seus genes holandeses e vigiava com olhos de águia os possíveis desvios de conduta familiar.
Foi assim que, muitos anos antes, acabou com o namoro ingênuo de tio Alfredo e tia Raquel, foi assim que fez Helena descobrir a maldade adulta. Tia Iaiá, viúva e com cinco filhos, era mãe de Manuel, belo rapagão de vinte anos, que arrumou emprego na Marinha Mercante, viajou pelo mundo e voltou doente do Rio de Janeiro. Colocado em um dos quartos, ficava dias sem ter o que fazer e se afeiçoou à menina enjeitada que via nele alguém que lhe dava atenção e visibilidade. Passou a visitar o quarto do primo apenas para conversar e passar o tempo.
Dindinha, com sua malícia de mulher vivida, proibiu estas visitas que “podiam não acabar bem”. Para a menina, criada em colégio de freiras, foi uma humilhação e uma sentença sem culpa. Quase tão grande como ouvir de alguma das mulheres da casa a afirmação acusadora: “esta menina não pode ir ao colégio com esta blusa. Os peitinhos estão crescendo. Tem que colocar sutiã ou combinação.” Ficou lívida de vergonha. Nem menstruação tinha ainda. Olhou seus nascentes seios femininos no espelho com desgosto. Por sorte, optaram pela combinação. Sutiã teria sido a suprema humilhação naquela idade.
No grande salão das refeições, que dava para o Oratório, a cozinha e o quarto de Dindinha, havia umas cadeiras de vime, perto da porta, onde a avó se sentava para conversar com os adultos e fumar seu cigarro de palha. Helena, há pouco tempo na casa, e ainda não habituada ao ostracismo a que eram relegadas as crianças, gostava de ficar horas perdidas, ouvindo aquelas conversas.
Um dia, tio Cordeirinho, com seu vozeirão de barítono, contou à mãe: Fulano deflorou a filha de Sicrano. A menina achou a palavra bonita, lembrava flor e perguntou do seu canto: o que é deflorar?
No mesmo instante, vários pares de olhos furiosos se dirigiram para ela e Dindinha perguntou: “o que esta pirralha está fazendo aqui, ouvindo conversa de adulto?”
Assustada, descoberta em flagrante delito de inconveniência e sem ter respondida sua pergunta, foi escorraçada para fora e se deu por feliz de não levar umas palmadas. Só anos depois entendeu o motivo. Mas aprendeu que criança, no casarão, não se manifestava, sem ser convidada.
A religião era importante e os padres muito considerados. Por isto a comunhão era um ritual levado a sério. Preocupada com as rígidas sanções para quem ousasse tocar com os lábios a hóstia sem fazer jejum, exagerou nas regras e foi para a missa sem comer, nem beber nada, desde o dia anterior – a idade, o calor e a falta de comida fizeram com que desmaiasse em plena Igreja. Outra vergonha. A inconveniência de se fazer notar.
A rigidez moralista fazia vítimas: uma das primas mais velhas e com vestibular para solteirona começar a ter crises misteriosas – um dia ficou cega. Por trás dos panos e das fofocas dos criados souberam que era crise nervosa “ falta de homem”... Vergonha absoluta, a pior de todas. Nunca esqueceu.
Mais tarde, ela casou. Com rapaz lindo. As primas não acreditavam naquela sorte. Nem bonita era, queixuda. Reforçou uma velha lenda: as mulheres da família não ficavam no caritó. Caritó era o lugar das galinhas velhas e designação pejorativa para aquelas infelizes que não conseguiam casamento, principal profissão feminina naquela época.
Mas nem tudo eram espinhos. Um dia, já com seus onze anos e acostumada com a vida em Catende, as amigas vieram contar que Carneirinho, um menino do colégio, estava apaixonado por ela. Foi uma surpresa. Ela, em quem ninguém reparava, a menina vestida e calçada de qualquer jeito, com seu cabelo liso e sua timidez medrosa?
No cinema, a família ficava atrás, nas cadeiras trazidas de casa. Carneirinho, sentado mais na frente, esquecia a tela e olhava a toda hora para trás. Helena aceitou esta corte gentil e quase inexistente com indiferença e pouca alegria. Felizmente, Dindinha não ia ao cinema, do contrário teria percebido, com seu olhar de águia, o namoro virtual que nunca passou de pequenos gestos e desejos escondidos. Anos depois, já casada, mãe e avó, soube que ele morrera muito infeliz, devido a grandes desgostos familiares. Pobre Carneirinho, o primeiro homem a descobrir a sedução da jovem amazonense perdida no sertão.
O avô, homem importante na Usina e com muitos parentes, costumava ter freqüentes hóspedes para o pernoite, recebidos com toda a pompa nordestina. Como sempre, as crianças eram escolhidas para ceder seus quartos aos visitantes. Numa destas ocasiões em que a casa estava cheia, foi preciso usar um dos “quartos dos mortos”. Helena e Lurdes, sua prima, apesar do pouquíssimo entusiasmo, foram colocadas num deles, depois de limpo e arrumado.
Sozinhas e assustadas começaram a investigar o lugar, normalmente proibido, e descobriram o tesouro: uma prateleira com grande quantidade de latões, cheios do licor de frutas, preparado por Dindinha durante o ano e deixado ali para maturar. Um deles era o delicioso licor de jenipapo. Colocando a boca debaixo da torneirinha, as duas se fartaram da bebida até a hora do corte da luz. Dormiram como anjos bêbados, mas acordaram com uma bronca memorável e dor de cabeça proporcional.
Dindinha não gritava nem batia em nenhum dos netos, mas só um olhar de censura seu era assustador. Durante anos foi ela o deus de sua religião particular, a medida do certo e errado, a chibata da autoridade pela própria existência, descobridora e punição dos pecados do casarão.
Capítulo seis – O pão e o Circo
Em Catende havia apenas uma agência dos Correios, casa antiga, com chão de tábuas. A moça encarregada de receber a correspondência interiorana costumava dizer que conhecia a chegada de um Cordeiro, mesmo sem ver, pelo estremecimento das tábuas ao impacto das pisadas fortes.
Esta lenda familiar era a mais pura verdade. Dos 22 partos de Don’Ana, apenas 10 filhos sobreviveram. Mas estes dez que resistiram às dificuldades e à medicina tosca da época, se tornaram homens e mulheres altos e fortes, resistentes a tudo, potros bravios enfrentando com coragem a vida do agreste.
E tinham pela mãe, uma verdadeira veneração. Todos eles, mesmo adultos e com filhos, pediam a benção e ela respondia: Deus te dê fortuna. No entanto, era uma mulher seca, uma sertaneja dura e sem gestos de carinho que nunca quis ser chamada de mãe ou avó, era só Dindinha, para todos. Ela fumava, mas nenhum dos filhos adultos aceitava um cigarro na frente dela. E havia um amor profundo que a ligava aquele clã que se abrigava sob seu teto ou que seguira para longe, deixando netos ao seu cuidado, como o pai de Helena.
Os dez se autodenominavam “galos brancos” e “galos pretos” porque uma curiosidade genética na mistura dos holandeses e portugueses com nordestinos, fizera com que se dividissem, igualmente, entre louros de olhos claros, como Pedro, pai de Helena ( apelidado alemão ), Julia, Iáiá, Nasinha e Carlos e morenos bem brasileiros como Alfredo, Sinhá, Cordeirinho, Dora e Augusto ( que era claro de olhos verdes mas ficou nos galos pretos pelo cabelo bem escuro).
Muito desta força mágica vinha da comida nordestina. As refeições em Catende eram inesquecíveis – o café farto, servido as seis da manhã, tinha macaxeira cozida, queijo frito, pão, dois tipos de cuscús de milho - seco e molhado com leite de coco, leite fresco do curral, café forte, milho cozido, manteiga de gado em garrafa, fruta-pão, etc e era comandado pelo avô na cabeceira da mesa. Todos deviam comparecer na hora certa. Quem perdia, seria penalizado com a fome.
Os adultos sentavam ao redor do patriarca e de Dindinha na mesa enorme e as crianças na extremidade oposta. O avô tinha um pássaro preto e amarelo, o concri, que ficava solto ao lado dele e bicava sua comida.
No início, ela perdeu muitas vezes o café e só não sofreu de fome porque tia Julia, com pena, levava alguma coisa, escondido da mãe, para ela comer.
Nas outras refeições havia sempre agregados além dos filhos que moravam perto: Cordeirinho, Alfredo e Carlos, donos dos engenho que plantavam a cana para a usina e que iam, a cavalo, almoçar diariamente na casa do pai.
A hora coincidia com a chegada do trem de Recife. O apito da locomotiva era o sinal para que o almoço fosse servido. Novamente, uma orgia alimentar: carne de porco frita, tutu de feijão, arroz com leite de coco, carne seca, galinha ao molho pardo, farofa branca de bola.
E reservava uma surpresa para a garota, filha de uma descendente dos Morgado do Cabo e neta, pela ascendência materna, de um dos maiores comerciantes de artigos importados em Recife: durante o almoço, o avô largava os talheres e fazia, com as mãos, bolinhos de feijão, farinha e torresmo que comia tranqüilamente, imitado por todos. Que horror! Aquilo era contra todas as regras que aprendera de boa educação! Ela até que tentou, mas nunca conseguiu imitar. De todas as coisas que viveu em Catende esta foi uma das únicas com a qual jamais conseguiu se acostumar. Os olhos da mãe e das freiras permaneciam sobre ela mesmo no distante interior pernambucano.
Mas se Catende representava obrigações, surpresas e trabalho, era também sinônimo de liberdade, brincadeiras e festas populares.
Entre estes episódios curiosos, aconteceu um que se gravaria para sempre no seu repertório de sustos.
Novamente com a casa cheia de hóspedes, Dindinha a designou outra vez para um dos temidos quartos dos mortos Sua companheira desta vez era Maria, prima dez anos mais velha – desde o episódio da bebedeira com Lurdes, a avó aprendera que não era prudente deixar crianças sozinhas naquele local.
Quando a luz se apagou, ouviram uma coisa arranhando a parede, acompanhada de um barulho aterrador de correntes sendo arrastadas. Aquilo se repetiu várias vezes. Apavoradas, no escuro completo, as duas se abraçaram na grande cama de casal e cobriram a cabeça com os lençóis, o coração disparado. Foi uma noite terrível que parecia nunca mais acabar.
Só pela manhã descobriram a verdade. Tio Breno, marido de tia Julia, muito brincalhão, tinha amarrado um cordão com um papel grosso amassado, jogado pelo alto – as paredes no casarão não iam até o teto – e amarrado a outra extremidade no pedal da máquina de costura da mulher. Conforme girava a roda do pedal, este se mexia e o papel subia e descia pela parede provocando o sinistro arranhar e o barulho de correntes.
Maria se zangou, fez cena, mas ela ficou calada. Não era permitido às crianças dar palpite nas brigas dos adultos.
A época do São João era um acontecimento memorável. Vinha gente de todos os lugares, até de Recife, para os festejos. Muita comida e bebida, fogueira, fogos, cantigas e danças.
Uma dos acontecimentos mais marcante daquelas festas foi um grande susto: o avô, que perseguia as crianças com busca-pés, correu atrás dela. Assustada, morrendo de medo do fogo que parecia uma cobra, entrou no banheiro grande ao lado do quarto de Dindinha e achou que estava protegida. Mas esqueceu que a porta era cortada embaixo. Ele não teve dúvidas - acendeu e jogou o busca-pé por debaixo. O danado ficou correndo atrás dela que corria, aos gritos, enquanto o avô morria de rir do lado de fora.
Não havia medo entre eles, a percepção do perigo. Eram primitivos como a vida que levavam e foi esta coragem meio suicida e a liberdade interiorana que forjaram um pouco a força que levaria para enfrentar as dificuldades do futuro que tentariam, como naquele dia longínquo, pegar no seu pé.
Depois do São João, a melhor festa era a Quermesse e seus jogos e prendas para arrecadar dinheiro para a igreja. Nestes dias o avô lhe dava também os benditos dois tostões para gastar como preferisse. E foi numa delas que recebeu seu primeiro gesto de amor.
Estava tentando, há algum tempo, inutilmente, atingir com a argola um dos pinos, para ganhar uma garrafa de água de cheiro, entre as prendas enfileirada na prateleira.
Neste momento, um garoto meio gordinho se aproximou e tomando dela a argola acertou de primeira o pino. Depois, apanhou o prêmio e lhe entregou, galante. Ficou roxa de vergonha, ainda mais na frente das primas que passaram o resto do dia arreliando (como se dizia na língua saborosa do nordeste). Era o já conhecido Carneirinho, seu apaixonado do cinema.
Ao chegar em casa, contaram a história a Don’Ana. A avó olhou para ela fixamente e foi a primeira e única vez em que teve a sensação de que Dindinha realmente a estava vendo como pessoa e não uma parte do casarão.
Depois de um minuto de contemplação ela decretou:
- Esta menina está em tempo de arrumar marido.
Ficou gelada. Naquela região os casamentos aconteciam cedo e aos vinte anos, as meninas que não casavam eram consideradas solteironas.
Mas com quase doze anos, mal sabia que estava se aproximando a hora em que os pais, de quem mal se lembrava, iriam buscá-la, tirando a menina de Catende do Inferno da liberdade para a prisão do Paraíso
Capitulo final – Despedidas e Reencontros
Durante toda estada, de quase três anos, em Catende, Helena recebera algumas cartas da mãe e escrevera outras, todas censuradas pelo rígido código do casarão.
Nunca entendeu porque fora desterrada para tão longe, nunca recebeu explicações e, aos poucos, a vida anterior foi sendo apagada por esta nova existência cheia de surpresas, dura, áspera, mas de estranho fascínio e liberdade. Apesar das regras de Dindinha e do trabalho diário, havia sempre tempo para o lazer, muitos primos para brincar e um espaço ilimitado a percorrer.
No pátio atrás da cozinha viu castrar bodes, assistiu a morte sangrenta de animais, ela que nunca vira matar uma galinha porque a mãe não deixava. Aquela estada no interior rude foi uma lição de vida, uma aula de solidão, auto-sobrevivência e resistência. Mas tudo tem um fim.
Veio a revolução de trinta e o pai voltou ao Rio para se aliar aos revolucionários, reencontrou Góis Monteiro e Oswaldo Aranha, grandes amigos, agora no poder. Conseguiu a concessão da loteria na Paraíba e passou ter uma retirada mensal de 10 mil cruzeiros quando o presidente ganhava apenas três. Era hora de reunir outra vez os filhos espalhados pelo Brasil.
Duas figuras elegantes chegaram de trem ao casarão de Catende para buscar Helena. Ela olhou aqueles dois estranhos bem vestidos e não sentiu nenhuma emoção. Talvez pela mágoa guardada do abandono, da qual nem ela mesma se dava conta, talvez pelo impacto que provocara nela os quase três anos no interior do sertão, não conseguia perceber naquelas pessoas o eco da sua vida anterior. Mesmo assim se despediu de todos e voltou com eles para a Paraíba. Criança não tem querer.
Foi difícil sua adaptação ao novo estilo de vida, apesar do amor e carinho que a cercava, tão diferente da indiferença livre da casa de Dindinha. A mãe era uma mulher vaidosa e não gostou nada da aparência da filha – gorda, barriguda, sem cintura, mal vestida, cabelo cortado de qualquer maneira. A primeira providência foi começar um regime... que tortura! Acostumada às comilanças do casarão, teve que se sujeitar a saladas e legumes. E as roupas? Justas, desconfortáveis, sapatos lindos que apertavam os pés da menina acostumada a correr de alpercatas pelo sertão.
Mas a dedicação dos pais, ansiosos por compensar a diáspora, o reencontro com os irmãos, a fartura de dinheiro foram aos poucos apagando aquele tempo passado na liberdade e na dureza.
Quatro anos depois, com dezesseis anos, voltaria a Catende para as bodas dos avós.
Novamente o pai tinha passado dificuldades, porque todas as loterias passaram a ser federais e administradas pelo governo e novamente precisara voltar ao Rio, para, mais uma vez, recomeçar.
E talvez não tivessem conseguido ir ás bodas não fosse a intervenção do destino – perto da época dos festejos, o pai ganhou o grande prêmio da Loteria e ainda acertou, com o mesmo número, o maior prêmio do jogo do bicho.
Foi uma felicidade!... Com a generosidade dos nordestinos e dos jogadores, ele pagou passagem no navio Itapé, de primeira classe, e enxoval nas melhores casas do ramo, para toda a família do Rio. Dezesseis pessoas – irmãos, sobrinhos, alguns amigos, todos foram para Pernambuco ás custas e vestidos por ele, dos chapéus aos sapatos. Dinheiro na mão do pai tinha alta rotatividade. Não era para juntar, mas viver. A filosofia dele era o momento.
Voltar à Catende em condições tão diferentes foi uma emoção para a moça bonita e elegante. Rever Dindinha que pouco mudara nestes quatro anos e o avô sempre bonachão. E estavam ambos radiantes por reencontrar os dez filhos e suas famílias.
Desceram do trem e ao longe avistaram a casa – linda, branca, reformada, sem as grades da varanda. Por dentro os quartos foram ampliados e construídos mais banheiros para abrigar a família toda.
Novamente a orgia alimentar – chegaram a matar um boi só para um almoço de noventa pessoas. Buchada, galinha ao molho pardo, peixe de coco, mungunzá, canjica, pamonha, cuscus, macaxeira, jirimum com leite, feijão de coco, feijoada, carne de porco frita, bolo de aipim, uma fartura só entendida por quem conhece a mesa nordestina.
Houve missa solene e reboliço na cidade. O avô era homem importante, gerente da Usina.
Helena e José, seu tio, filho do seu avô Paes Barretto e seu primo, porque sobrinho do seu pai, ambos com quinze anos e mal acostumados com bebida farta, ficaram bêbados.
Por isto os dois, no retrato oficial das bodas, com toda família reunida, estão com olhar de Capitu e sorriso de beatitude. Levaram uma bronca monumental e tiveram que ficar recolhidos um dia para curar a ressaca.
Uma tarde, cansada dos festejos, Helena se recostou no quarto para descansar. Ao ver a figura de Dindinha na soleira, tomou um susto e ficou de pé num salto. Reflexo da menina de antes, o medo da avó que não admitia descanso ou preguiça durante o dia.
Don’Ana foi uma mulher singular. Criou filhos e netos com mão de ferro, no regime do trabalho e da secura afetiva. Mas bordou 10 toalhas amarelas para entregar aos filhos nas bodas, com o nome e o aniversário de cada um e enfeitou a casa com margaridas, também amarelas, que ela mesma cultivou no seu jardim encantado.
Terminada a festa, o passado ficou para trás, com o barulho da locomotiva: vou danado pra Catende, vou danado pra Catende... que os versos de Ascenço Ferreira tornaram inesquecível.
Mas Dindinha e o casarão, o avô e seu dois tostões de carinho, a liberdade e o trabalho naquele sertão distante, fizeram de Helena muito do que se tornou mais tarde – uma mulher forte, preparada para enfrentar as tormentas, várias, que a vida colocaria no seu caminho.
Anexo da autora – Ecos do passado:
Anos depois, a toalha bordada por Dindinha, reapareceria em condições peculiares. Estávamos todos em Barra de Marica, onde minha mãe, a Helena Augusta de Catende, tinha casa, na beira da Lagoa. Procurando algo para cobrir a mesa de jogo, ela encontrou uma toalha amarela que afinal se revelou pequena para a tábua enorme. Neste momento ouvi meu irmão dizer:
- Hoje está fazendo cem anos do casamento de nossos bisavós Cordeiro de Mello. E era aniversário do vovô Pedro.
Minha mãe confirmou:
- É verdade!...
E eu perguntei espantada:
- Como você sabe disto?
Meu irmão conhecia pouco da família, menos ainda do passado. Ele riu e levantou a barra da toalha onde estavam bordadas a data das bodas, o nome e o aniversário do nosso avô. Ficamos todos impressionados com aquela mensagem do passado.
Exatamente no dia das bodas, a toalha de Dindinha, que minha mãe não faz a menor idéia como foi parar lá, naquela gaveta de Barra de Maricá, fora retirada do seu ostracismo apenas para lembrar a figura de Don’Ana e do bisavô Cordeiro aos seus longínquos descendentes cariocas. E àquela menina que um dia apareceu por lá, assustada, solitária, para aprender a força e a solidariedade sertaneja.
Certamente, Dindinha ao bordar com as próprias mãos aquela toalha a impregnou da magia que une as mulheres e homens de um mesmo clã, transformando um mero objeto do cotidiano num símbolo misterioso do amor que talvez nunca morra.
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