sábado, 30 de maio de 2009

A Saga de Catende - Maria Helena Bandeira

Capitulo Dois – O começo e o fim do mundo
Para a menina criada na cidade, com obrigações, horários e pais cuidadosos, Catende foi a liberdade e o anonimato. Lá não era mais a Helena Augusta, tremendo só de ouvir o nome da alemã Madre Pelaguia ( pelava águias? O que não faria com as crianças? ) e que precisava tomar banho de camisola porque a visão do corpo nu era pecaminosa. Verbotten.

Em Catende as crianças iam juntas ao açude e não havia vigias de comportamento, exceto para as regras impostas por Dindinha aos moradores da casa. Uma delas era o ofício diário de alguma obrigação no serviço caseiro “ trabalho de criança é pouco, mas quem não aproveita é louco” dizia ela com, sua filosofia de interiorana criada na dureza.
De resto, era o se perder no anonimato, como mais um dos inúmeros netos, sobrinhos e afilhados que orbitavam o casarão. 

Ninguém vinha conferir, na enorme mesa de madeira das refeições, se comera o tanto para sobreviver, ou se engordara mais do que seria agradável ao olhar da mãe elegante. Era livre para bordejar pelos arredores da Usina e da cidade, sem peias ou cuidados. Quando, finalmente, após restaurar a fortuna perdida, vieram busca-la, não conhecia mais aqueles dois estranhos bem-vestidos e carinhosos que tinham sido um dia seu pai e sua mãe. Mas durante este tempo, aprendeu muito: sobre solidariedade sertaneja, dureza de caráter, trabalho constante, fartura e miséria, seca e chuvas abençoadas, a importância da água, ciúmes, fofocas e tudo que faz o caldeirão da vida no interior nordestino.

Tremeu com medo de Lampião que duas vezes avisou de sua passagem pela cidade – significando o terror, o saque, autoridades acovardadas e histórias apavorantes sobre estupros e maldades inconcebíveis. Por sorte, o cangaceiro desviou seu caminho para outras paragens e dele conheceu apenas as lendas. Mas viu algo que jamais iria esquecer. Semanalmente, Dindinha preparava alimentos para distribuir aos muitos pobres da região. Tudo era arrumado na mesa grande da sala e um dos moradores era designado para a tarefa de intermediário entre a caridade dela e os famintos. Eles faziam fila diante da porta, barrigudos, rodeados de filhos, alguns ainda dentro da barriga e, um por um, subiam a escada até a varanda, onde recebiam sua cota de laranjas, bananas, pão, etc. Não era cargo disputado porque tarefa cansativa e tediosa ficar na porta da sala, distribuindo os alimentos. Mas havia dias em que se tornava ainda mais desagradável e até apavorante. Estes novos desvalidos eram de uma classe assustadora e alimentá-los significava manter portas e janelas trancadas enquanto o encarregado da distribuição se limitava a colocar os alimentos fora do portão para que fossem apanhados. Os temidos leprosos, ou morféticos, como eram ainda chamados em Catende. No dia marcado, enquanto o povo se enclausurava, eles vinham pela estrada cobertos de andrajos, batendo a matraca para avisar da sua chegada, sabedores do nojo e horror que despertavam na população. Batiam um pau no outro – tlec ,tlec, tlec enquanto percorriam a cidade deserta recolhendo as doações. Escondida, espiando pelas frestas, ela viu a imagem que lembrava os livros de catecismo do colégio.

O grupo de infelizes doentes e miseráveis desfilando seu bloco infernal pela cidade sitiada pelo medo, ao som surdo dos seus tlecs, tlecs, tlecs anunciadores de que a vida não é bonita. Mas Catende seria sempre isto – aprendizagem sobre o Bem e o Mal. Lição de contrastes.






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