sábado, 10 de abril de 2010

A PALMATÓRIA


Ela era uma pequena peça circular de madeira, provida de um cabo. Algumas tinham orifícios para exaustão do ar e aumentar o poder de impacto e, conseqüentemente, a dor. Usada como instrumento de castigo para bater na palma das mãos dos castigados, foi o maior instrumento disciplinador dos primeiros sessenta anos do século XX, cujo poder de persuasão extrapolava as raias do convencimento político-ideológico. Tal instrumento se dizia altamente democrático, mas, como ocorre nas democracias, só sobrava para os mais fracos: fracos de espírito, de conhecimento, de discernimento, que, pra variar as estatísticas, ocorria com mais freqüência entre os economicamente mais fracos.

Nas escolas era tida como auxiliar de disciplina; nos lares como estimulador do bom comportamento; e, nas delegacias, como a maior invenção científica para fazer os meliantes confessarem seus crimes.

A professora Tereza a usava com desdém; a professora Serafina, formada na disciplina rígida do Convento das Freiras, na Soledade, em Salvador, abraçou a causa dos direitos humanos e relaxou no seu uso; a professora Suzete nunca usou tal instrumento de tortura e o professor Lau – Laudelino Mendonça - , que apareceu no arraial do Junco nos anos 1920, trazido por Mané Moço para ministrar aula particular de Português e Matemática, a usava com todos os requintes de crueldade. Extremamente rígido na disciplina e exigente no aprendizado, castigava o faltoso, invariavelmente, com meia dúzia de “bolos”, como era chamada a surra de palmatória. Isso fazia com que os alunos ficassem temerosos, medrosos e cabulassem aula.

E foi por conta disso que o velho Professor se deslocou de sua casa para ir até a fazenda de Adelino Torres, em busca de notícias de um aluno que nunca mais havia comparecido às aulas, apesar de ele, Adelino, o pai, pagar as mensalidades rigorosamente em dia, de um filho que não freqüentava a aula.

- Como assim, “não frequenta a aula”?! – espantou-se Adelino Torres, entre um gole de café e o admirar do pôr-do-sol atrás do Cruzeiro dos Montes – Todo dia ele e Raimundo vão para a aula... Valdooo! Raimundoooo! – gritou.

Os dois apareceram cabisbaixos, sorrateiros, desconfiados.

- Raimundo, por que você vai pra aula do Professor Lau e o seu irmão Valdo não?

Raimundo relutou em responder, tentou embromar, fez-se de desentendido, mas, sob a ameaçava de levar uma surra, confessou:

- Eu chamo ele pra ir, mas ele prefere ficar na entrada da cidade, na sombra de uma árvore do Tanque Velho, fumando charuto com os moleques da “Rua”. E ameaçou me bater se eu contasse pro senhor.

Adelino Torres, que se orgulhava de nunca ter dado uma surra em um filho, nesse dia fez valer a palmatória por todos os anos que ficou parada, pendurada na parede, como enfeite ou alimento dos cupins. Valdo levou seis “bolos”. Raimundo ganhou o dobro, para aprender a não esconder os erros do irmão. No outro dia, no caminho da escola, levou uma surra de Valdo e dos moleques da “rua”, para aprender a não dedurar os outros. Chegando à escola do professor Lau, levou mais meia dúzia de “bolos” para não mentir mais para o professor.

Com o Golpe Militar de 1964 o uso da palmatória nas delegacias foi proibido. Ou melhor: substituído pela tortura requintada do pau-de-arara e do choque elétrico. Do mesmo modo, foi terminantemente proibido nas escolas, sendo substituída pela (in)finita paciência dos professores e pelo uso moderno da psicologia. Temia-se que o baixo salário dos professores tornasse o seu uso uma válvula de escape.

Extraido do livro "Arraial do Junco: Crônica de sua existência", desse escriba que vos fala.




Um comentário:

Kathleen Lessa disse...

Muito bom, Tom! Sabia que na Inglaterra ela só foi abolida em 1990? Isso mesmo!__Beijos,
Kathleen