sexta-feira, 25 de março de 2011

Maurício Melo Júnior - A Ancestralidade Nordestina

O primeiro milagre se deu em 1872. Francisca Belmira era prostituta numa currutela perdida no sertão, nos pés da Chapada do Araripe, um pouso de tropeiros, povoado sem eira, com cinco casas de telha, trinta choupanas e uma capela. O padre veio para celebrar a Missa do Galo no ano anterior e sonhou com o próprio Cristo ordenando que ele se entregasse à tarefa de pastorear aquele rebanho de pouca crença e muita iniqüidade. Ficou. Aceitou a peleja. Num dia de céu claro e luz intensa deu-se o encontro. A mulher, enlouquecida, corria praguejando contra Deus e o mundo. Desafiava valente, desacatava a todos. Até ver o padre que pôs as mãos em sua cabeça abençoando-a.

Ela caiu em choro convulsivo pedindo perdão pelos tantos pecados. Nunca mais bebeu, nunca mais se prostituiu. Morreu como matrona, venerada e respeitada por todo Juazeiro. O padre seguiu obrando seus milagres, livrando flagelados da seca, construindo uma civilização no coração do Cariri. Vinha de uma tradição de fé intensa. Isolado de tudo, sem lei nem rei, os primeiro colonizados daquelas brenhas se entregavam à proteção de Deus e só com ele contavam.

Na ausência de padres regulares, se valiam dos beatos, dos andarilhos que falavam em bonanças e anunciavam apocalipses. Essa tradição de tão forte, norteou o Padre Ibiapina, um advogado que abandonou as leis dos homens e se dedicou à lei de Deus. Fez-se padre no Seminário de Olinda e saiu a pregar pelos sertões. Tinha um discurso tão afinado e belo que encantou o menino Cícero que se fez padre e milagreiro, um santo nordestino, no dizer do povo.

Ninguém sabe quando se deu o primeiro tiro. O fato está perdido nos esteios do tempo. E depois dele viram muitos, tantos que nenhuma tabuada é capaz de contar, mas tem um desses tiros que se fez definitivo. Era um rapaz de 17 anos, conta-se, e já estava, junto com outros dois irmãos, metido com bando de cangaceiros e era um atirador de respeito. Um estrategista, embora nunca tivesse pensado no ofício da guerra. Era tropeiro e artífice do couro, tocador de sanfona também.

Na volta de uma viagem encontra o pai em desespero: tinham lhe roubado umas cabras. Descobriu o ladrão, mas este era protegido do coronel do lugar. Mesmo assim buscou a única justiça possível nos sertões: a lei do próprio braço. Para colonizar aquelas brenhas os homens traziam um pouco de gado e muito de coragem. Não podiam contar com ninguém. E se desavença houvesse, essa teria que ser resolvida no disparo da própria bala. Assim fez o moço, mas precisou viajar e na volta o sítio da família era cinza e os pais, cadáveres. Caiu no cangaço. Numa noite de breu intenso, num combate de grande monta seu tiro clareou o mundo. Isso não é tiro, é lampião, alguém gritou e Lampião ficou sendo desde então; é o que se conta. Certeza mesmo são sua coragem e sua disposição de justiçar o mundo. Mais que homem de carne e osso, Virgulino fez-se lenda.

A música estava no embalo do berço. A mãe era conhecida cantadeira de novenas e incelenças. O pai consertava sanfona e animava forró tocando pé-de-bode. Fazia miséria nos oito baixos. E levava pelo braço, escondido da mulher, o filho, um menino de calças curtas. Nesta transgressão aprendeu a passear os dedos pelo teclado daquele instrumento mágico. Inventada nas brenhas da Europa, a sanfona desembarcou no sertão na bagagem dos judeus errantes, os fugitivos das fúrias governamentais, os cristão-novos.

Para se livrar da melancolia, o homem do sertão puxava o fole nos sambas de latada que o bispo de Olinda proibiu dizendo ser aquela uma festa imoral, isso nos idos de 1735. Tornou-se o instrumento tão íntimo do sertanejo que o menino, crescido, soldado do Exército, tentou dedilhar violão. Faltou jeito, ou foi a sanfona quem falou mais alta, sabe-se lá. O certo é que tirou a farda, botou paletó e gravata e foi tocar valsas e mazurcas nas rádios do Rio de Janeiro. Um dia, livrando uns trocados num cabaré da zona do Mangue, o sanfoneiro ouviu um bando de estudantes pedir para ele tocar alguma coisa do Norte.

Tocou e o sucesso foi imenso. Pelejou com os poderosos da rádio. Pelejou, pelejou. Até que se botou diante do imenso Ary Barroso. “O que o senhor vai tocar?” “Vira e Mexe, uma música do Norte.” “É cada uma que me aparece. Então toque logo essa besteira.” Tocou e o auditório, eufórico, pediu bis. Foi contratado e nunca mais parou de tocar e cantar as coisas do Norte. Criou toda uma estética musical, influenciou uma imensa legião de novos músicos, tocou nas praças nordestinas e nos auditórios do exterior, se fez rei. Distribuiu muitas sanfonas. Honrou um home: Luiz, por que nasceu em 13 de dezembro, dia de Santa Luzia; Gonzaga, por que a mãe, Santana, era devota de São Luiz Gonzaga; do Nascimento, por que dezembro é o mês do nascimento de Jesus.

A ancestralidade nordestina e sertaneja tem base no triângulo fé, resistência e musicalidade. Ela nasce da solidão, do trabalho com o gado, da necessidade de se construir sozinho, de ser forte em tudo. Cícero, Virgulino e Luiz.

Um dia os sociólogos entrarão pela história e descobrirão que esta fé não é fanática. Ela nasce do apega à crença ancestral que reza: mais que a justiça dos homens, o sertanejo em sua solidão carece da força divina para aplacar suas revoltas e privilegiar a labutar, o martelar cotidiano sobre a pedra áspera do chão. Também a violência não é gratuita. Ela é colheita que se faz na precisão de defender a honra e a posse. Sozinho, sem lei nem rei, o homem do sertão tinha Deus no céu e o bacamarte na terra. E para aplacar as fúrias do chão pedregoso e dos homens injustos, nas noites de fogueira e lua tocava viola, dedilhava sanfona, cantava suas mágoas e alegria. E nos dias de sol inclemente, tocava o gado, domava a terra, entoava o aboio. Cícero, Virgulino, Luiz.

O Nordeste mudou. O jumento deu lugar às motos. A polícia e a justiça se espalham por todos os cantos. As igrejas milenaristas e protestantes se desenham em todas as paisagens. A sanfona hoje tem a companhia de guitarras e a zabumba é uma bateria completa. O homem é que é o mesmo em sua ancestralidade. Se não é possível aboiar sobre uma moto, canta pelas porteiras e latadas; se a missa abriu espaço para o culto evangélico, no quarto dos santos tem uma imagem do Padre Cícero; se as rádios empesteiam os ouvidos com gritos breganejos e baladas americanizadas, repinicam uma viola, puxam uma sanfona e cantam para a lua. E como essa gente sabe sorrir com honesta sinceridade.

Não se enganem: Em sua ancestralidade o Nordeste continua sendo Cícero, Virgulino e Luiz.




Um comentário:

Luis Pimentel disse...

Beleza de texto.
E o milagre, entre alguns conterrâneos, ainda se dá a cada dia: o milagre da sobrevivência.
Luís Pimentel