sábado, 6 de abril de 2013

Cineas Santos - A face escura do narcisismo



Sou de um tempo em que Semana Santa (com maiúscula) era um período de silêncio, recolhimento, jejum e orações. Já no início da Quaresma, impunham-se alguns limites às nossas reinações: capturar ou matar animais, por exemplo, era pecado mortal. Nos chamados “dias grandes” (quinta e sexta), não se ordenhavam as vacas, não se varria a casa, não se fazia a barba, não se tomava banho... Não me perguntem se isso nos fazia mais humanos, mais solidários, menos cruéis. Fazia-nos, certamente, mais calados, mais tristes, menos cheirosos...

         “Reflexões de velho”, dirão alguns, e com razão. Reflexões provocadas por uma cena que presenciei no domingo passado, na igreja de Fátima, durante a Missa de Ramos. Sentei-me ao lado de uma família de classe média. Lá estavam avô, mãe e neto. O netinho, um garoto de uns seis anos de idade, mal se sentou, abriu a bolsa da mãe, uma senhora bastante jovem, retirou um desses celulares equipados até com radar para detectar míssil, e começou a jogar. Até aí, nada de extraordinário: hoje, mal largam a chupeta, as crianças ganham um celular de presente, crianças pobres. Para as riquinhas, um IPhone é a pedida recomendável. O garotinho tentava “pegar” alguma coisa, que não consegui identificar. Sempre que errava, puxava violentamente o braço da mãe e a obrigava a reiniciar o jogo. Isso durou o tempo exato da missa. A distinta senhora, em momento algum, demonstrou aborrecimento, impaciência, irritação. Impossível não me lembrar de dona Purcina. Para sorte da molecada, já não se fazem mães como antigamente.  

         Saí da igreja pensando nas lições do sociólogo Bauman, autor da teoria do “mundo líquido”, uma realidade movediça, volátil, onde nada tem permanência, nem mesmo Deus. Com minha indeclinável vocação para pedra, tenho certa dificuldade para entender essa nova realidade na qual tudo é transitório e descartável, do copinho de iogurte ao amor...
 

         Por sorte, chovia, e a chuva me remeteu ao sertão onde nasci, um mundo rústico, simples, prático. De Deus, só cobrávamos chuva e alento para tocar a vida. Como as aspirações eram rasas, as frustrações eram poucas. Como diria o poeta, não nos ardia o desespero de ser donos de nada...

         Em casa, o computador me trouxe de volta ao presente, exibindo a face escura da sociedade narcísica e consumista em que vivemos. Uma matéria apelativa tratava do “escândalo das ninfetas exibidas”, fotos de garotas nuas, algumas impúberes, que circulam nas redes sociais. Os pais das meninas estão envergonhados e, naturalmente, indignados. Exigem “providências enérgicas”. O problema é saber: de quem? Para sossego deles e delas, uma certeza: amanhã ninguém mais se lembrará de nada. Num “mundo líquido”, tudo é água, ainda que, às vezes, salgada...

         Dizem os especialistas que “vivemos o ápice do narcisismo inconsequente”. Talvez tenham razão. Ninguém mais cabe em si mesmo: ou se mostra ou não existe. Afirma-se que a próxima engenhoca eletrônica propiciará aos insaciáveis consumidores imagens tridimensionais da própria alma. Aí, finalmente, Deus poderá descansar em paz. Assim seja.


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