quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Não tem tradução - Luís Pimentel


     Liberino pegou o ônibus da Itapemirim, em Riachão do Jacuípe, e desembarcou na Rodoviária Novo Rio. O 172 o trouxe até Copacabana, onde morava um primo, porteiro de prédio na Ayres Saldanha. Tinha segundo grau incompleto, boa saúde e um sorriso franco e envolvente. Logo arrumou emprego no prédio ao lado, ficou uns dias na muda e depois começou a bater asas pelos arvoredos mais quentes que proliferam no bairro.

     O sorriso envolveu Letícia, também baiana, de Senhor do Bonfim. A conterrânea trabalhava “por ali”, vendendo produtos Avon; também cantava e dançava um pouquinho, no turno noturno. Liberino se apaixonou.

     Um dia conheceu o Bip Bip, na Almirante Gonçalves. Tomava batidinha de maracujá, jogava conversa fora com Alfredinho, e pedia música na roda de samba ao Paulinho do Cavaco e ao Chiquinho Genu:

     – Toca aquela do Caymmi.

     – Qual?

     – Qualquer uma.

     Tinha bom gosto, o sacana. Tivemos certeza no dia em que apresentou a Letícia. Mario Neto atravessou no tamborim, Thibau engasgou com o uísque, a percussão em peso fez Uuuuuuhhhhh! Cuidou de apresentar:

     – É o amor da minha vida! Pretendo casar com ela, ter filhos.

     Alfredinho ressucitou o pigarro dos tempos de fumante e segredou com o novo amigo:

     – Espera um pouco. Conhece melhor a moça, pede a ela para te apresentar o local onde trabalha.

     Letícia mostrou as instalações do futuro Museu da Imagem e do Som:

     – Era aqui. Chamava-se Help! É inglês. Mas agora vai ser só de música brasileira... eu prefiro.

     Liberino sorriu, franco.

     O amor é assim: não tem tradução. 

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Nota do blog: crônica feita à mão no dia de ontem, num quarto de hotel em Salvador, onde o autor se encontra em visita oficial,  exclusivamente para os leitores do blog. Obrigado pela generosidade, grande Pimenta! 

 

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Das coisas que ainda não experimentei - Cineas Santos

A palavra medicina não frequentava o estreito universo vocabular dos moradores da minha aldeia .É certo que ouvíamos falar dos doutores, mas estavam tão próximos de nós quanto as estrelas, as sereias, a fortuna... O médico mais próximo, um certo Abílio de Lima Costa, estava a 12 léguas de distância, e o transporte de que dispúnhamos era o jegue. Para quem não conhece a psicologia desse ser singular, uma explicação sucinta: trata-se de um animal sistemático, para dizer o mínimo. Se estiver quente, deita-se com a carga; se fizer frio, amiúda o passo; se estiver chovendo, empaca de vez. Digamos que a verdadeira inclinação do jegue seja o descompromisso com horários, o gosto pela contemplação e as contendas ( taí a palavra adequada) amorosas. Não se pode contar com jumento para emergências. Mas isso será objeto de outra arenga.

Não por acaso, as figuras mais notáveis da minha aldeia eram a parteira, a benzedeira e o curador. Dos três, o curador era o mais reverenciado, visto poucas pessoas possuírem o dom que a natureza lhes deu: neutralizar o veneno das serpentes com simples cusparadas. Saliva de curador não tinha preço...

Por falta de médicos e remédios industrializados, com exceção da Aguardente Alemã, que curava tudo, recorríamos a rezas, mezinhas, unguentos e chás de todas as versidades. As doenças não eram tantas, mas a morte, como um gato manso, estava sempre ronronando por perto. O primeiro grande desafio de uma criança sertaneja era sobreviver ao mal de sete dias, na verdade tétano. Como o cordão umbilical era cortado com faca cega, tesoura enferrujada ou caco de vidro, os riscos eram enormes. Mas tínhamos nossas defesas: para cicatrizar a ferida do umbigo, sarro de cachimbo; para endurecer a moleira, gema de ovo quente; para minimizar os efeitos da coqueluche, leite de jumenta preta; para crise de asma, mel de Cupira ou caldo de cauã; para verminose, semente de abóbora ou melão-de-são-caetano... E havia uma profusão de chás: chá de carqueja, de pau-de-rato, de casca de laranja da terra, de entrecasca de aroeira, de folha de mamão, de raspa de juazeiro e o mais insólito de todos: chá de bosta de cachorro. Não ria, leitor, que a prosa é séria. Não acredita? Pergunte aos mais velhos. Era o chá recomendável para expurgar o sarampo das entranhas da molecada. Deste, me livrei por um triz: quando o sarampo me alcançou, eu já morava na cidade.

Mas vamos ao que realmente interessa: no início da semana, passando em frente a uma lojinha de artigos femininos, vi uma placa que me deixou curioso: PREPARAMOS CHÁ DE LINGERIE. Pensei comigo: estou vendo coisas. Parei,olhei,soletrei. Era isso mesmo. Ao me vir ali especado na porta, uma das vendedoras aproximou-se: “Posso ajudá-lo, senhor?” Meio desapontado, gaguejei: É sobre o chá... “Pois não!” A gente pode pelos menos saber quem usou a peça? A moça arregalou os belos olhos e disparou: “O senhor é louco ou o quê? O senhor bebe?!” É justamente sobre isso que queria falar, moça. Posso até beber e com muito gosto, mas preciso ver como é preparado e saber a procedência da peça... 

A jovem bateu-me a porta na cara e me deixou falando sozinho. Mocinha estressada, sô!


domingo, 7 de novembro de 2010

Bem-vinda, Mayara - Jairo Costa Júnior


Mesmo com essa manifestação que ganhou a grande rede na ressaca eleitoral, é certo que as crias da boa São Paulo continuarão a encher o Verão e o Carnaval da Bahia




Duvido que algum baiano tenha ouvido falar de Mayara Petruso antes que ela alimentasse um preconceito que, até então, pensava-se escondido nas mansões quatrocentonas dos Jardins paulistanos. Assim como duvido também que a moça represente o pensamento daquele povo ordeiro, trabalhador, gentil e que, junto com os nordestinos que ela quer afogar na primeira inundação do Tietê, ajudam a mover o Brasil para além dos twitters e facebooks da vida.
Mas, duas coisas merecem atenção nos 15 bytes de (má) fama conquistados pela tal. A primeira é culpar o povo, que como ela deve pensar, tem a cabeça chata e a barriga vazia, pela escolha de Dilma Rousseff para a Presidência. Se assim fosse, imagine o que ela acha, então, de seus conterrâneos que nos empurram goela abaixo, a cada eleição, figuras como Tiririca - vejam só, um cearense! E que ainda arrastam, com seus milhões de votos, o que há de mais espúrio na política nacional. Pior que tá, fica, sim senhora. 
A segunda é tentar proliferar um ódio que só existe no cadinho mais atrasado e provinciano de uma São Paulo em nada parecida com os caracteres de péssimo gosto e português deficiente da twitteira preconceituosa. A cada ano, a Bahia recebe de braços abertos centenas de milhares de paulistas, que vêm curtir nossas praias e trocar conosco as alegrias do bom viver. As daqui e as de lá. 

Conheço muitos deles. E em nadinha se assemelham com o que Mayara tenta nos fazer crer que são a verdadeira mentalidade de São Paulo. Não nos odeiam e nem querem nos odiar, mesmo com mobilizações xenofóbicas, veladas ou não. No máximo, gozam de nosso sotaque arrastado, da nossa suposta lentidão, da mesma forma que rimos da deselegância discreta de suas meninas e dos caras de tênis e meia no centro da canela assando-se sob o sol na tentativa de parecer um pouco mais filhotes de Gabriela. 
Definitivamente, Mayara não vai conseguir que nós - paulistas, baianos ou paulibaianos - nos odiemos. Até porque, caso ela não saiba, São Paulo nada mais é que filho do Nordeste. E olhe que não falo sobre os milhões de “famintos” que carregam aquele estado nas costas. E sim dos que saíram das bandas de cá do litoral brasileiro para vitaminar São Vicente, a semente que gerou a árvore frondosa com nome de outro santo. 
Mesmo com essa manifestação que ganhou a grande rede na ressaca eleitoral, é certo que as crias da boa São Paulo  continuarão a encher o Verão e o Carnaval da Bahia. É certo também que serão recebidos na boa, sem qualquer nesga do rancor que a moça tenta propagar. O convite vale para ela. Garanto que o máximo de risco que Mayara vai correr será uma pegada mais vigorosa de um filho de Gandhy interessado em trocar saliva por colares. Coisa que, asseguro, a fará esquecer a estúpida ideia de nos afogar.

Artigo Publicado em 03/11/2010 no jornal Correio da Bahia.
Jairo Costa Júnior é colunista do Jornal Correio da Bahia 
Jairo Costa Júnior | Redação CORREIO
jairo.junior@redebahia.com.br

 

sábado, 6 de novembro de 2010

Irmandade - Luís Pimentel

De Violência


Lá em casa era assim: a gente apanhava no atacado e no varejo. No atacado, quem agia era o pai. Juntava todo mundo num canto da casa, um colado no outro para não dispersar, e descia o braço. Braço era maneira de dizer. Na verdade ele vinha com bainha de facão, ripa de madeira, corrente de aço com cadeado e tudo, e até chapa de aço. Uma lenha. A mãe, com menos força no muque, cuidava da ação no varejo, exemplando de um em um, apoiada no cinturão de couro, tomada de ferro elétrico, cabo de vassoura, o que lhe caísse à mão. Tudo dividido, irmamente.

O pai batia melhor quando bêbado. Quando chegava do bar tropeçando nas cadeiras da sala, a turma já sabia que o couro ia ser caprichado. Pelo menos um tabefe para cada copo ingerido, mais ou menos assim. A mãe já tinha outras manias. Funcionava melhor no ritmo de uma dor de cabeça crônica, que tinha desde menina. Quanto mais atormentada pelo sofrimento físico, mais vontade de sovar a prole. Ficava com a testa vermelha de tanta dor, a pobre, suando frio na fronte. E tome esforço, na tortura da molecada; então, suava mais ainda. O suor materno era um terror para nós.

A dor da mãe não era mania, não. Nem combustível para animar as surras. Descobrimos isto no dia em que sua cabeça explodiu e os médicos disseram pro pai que ela tinha coisa muito ruim nos miolos. O pai ficou triste. E preocupado, porque não teria mais com quem dividir a tarefa sôfrega. Tanto filho para espancar sozinho, coitado, ninguém merece. Ainda mais com a tropa se desenvolvendo, encorpando, os mais velhos já meio taludos e dificultando o manejo do porrete. Teria dias difíceis pela frente, lamentou.

Mas até que os dias difíceis não foram muitos, porque logo, logo o pai começou a inchar, primeiro as mãos e os pés, depois as maçãs do rosto, e um dia foi carregado pelos vizinhos depois de botar muito sangue pelo nariz. E não foi, como pensaram a princípio, reação violenta de nenhum de nós. Nunca fomos de desrespeitar pai e mãe. O mesmo médico que atendeu a nossa mãezinha disse para a gente que o papai não passaria daquela noite. E não passou.

– Cirrose – disse ele.
– Surra bastante o fígado, não é, doutor? – eu perguntei.
– Surra bastante tudo, meu jovem. Todos os órgãos, no atacado e no varejo – respondeu, com um sorriso de canto de boca.

O doutor era um sujeito engraçado.

Depois de deixar o corpo do pai no cemitério, dentro de um caixão que os vizinhos fabricaram, voltei para casa e reuni os irmãos. Na qualidade de mais velho, eu tinha que dizer algumas palavras, nem que fosse apenas para desejar boa-sorte a todos na novíssima vida que nos esperava.

Disse a eles que sem mãe, e agora sem o pai, cada um ia ter que cuidar do próprio destino. Depois de tanto tempo apanhando em casa, estava na hora de neguinho aprender a tropeçar com as próprias pernas. Pancada garantida, três vezes ao dia, nunca mais. As meninas, pelo menos, poderiam arranjar maridos que, com sorte, gostassem da pancadaria. Para os meninos, seguramente, o futuro seria mais incerto.

Fiz a mochila de cada um, passei batom e alfazema nas moças, cortei as unhas e penteei os cabelos dos moleques, e ordenei que pegassem a trilha desejada, em busca do próprio caminho. Também ganhei a estrada, depois de trancar a porta de casa, deixando para trás tudo o que havia lá dentro, lembranças como o cheiro do suor da mãe, imagens como o vigor do chute do pai.

Dei muita cabeçada pelo mundo, mas acabei me ajeitando aqui na obra. O trabalho é duro e à noite, depois de um dia de labuta, o corpo reage como se tivesse levado uma surra de vara: entre moído e relaxado, meio sofrido e meio orgulhoso. Não sei dos irmãos, o que o mundo terá feito deles, se batem nos próprios filhos ou se ainda apanham muito da vida. Lembro mais deles nos fins de semana, quando a sede aumentava e o pai recebia um caboclo bebedor. Nesses dias, por coincidência, a dor de cabeça da mãe parece que aumentava.


 

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Nas pegadas do cangaço


Em “Essa Terra”, livro do escritor baiano Antonio Torres, Totonhim, narrador da estória, trava o seguinte diálogo com o seu irmão Nelo, personagem central do livro:

“–  Lampião passou aqui.
   Não, não passou. Mandou recado dizendo que vinha, mas não veio.
   Por que Lampião não passou por aqui?
    Ora, ele ia lá ter tempo de passar neste fim de mundo?”

Esse lugar denominado de fim de mundo por Nelo, não é um lugar fictício, mas a cidade de Sátiro Dias, metade sertão, metade litoral norte baiano, hoje com uma população de vinte mil habitantes, todos orgulhosos de, ao menos, Lampião ter se lembrado do lugar, sinal de que eles tiveram lá alguma importância no seu passado histórico.

A figura controversa de Lampião até hoje povoa e fascina o imaginário popular, com suas histórias ou estórias, verdadeiras ou falsas, que um dia transformarão o mito antropológico sertanejo na mais pura lenda de grande evocação poética, elevando-o da condição de bandoleiro para o pedestal dos santos mártires, com direito a liturgias matinais nos mosteiros e conventos.

Conforme o ceguinho de Águas Belas, em versos do poeta recifense Carlos Pena Filho, no poema “Episódio sinistro de Virgulino Ferreira”, tal evento já aconteceu, quando faz crer que a encarnação de Lampião foi puro delírio coletivo:


“(...)
                      VI

A feira de Vila Bela
Tem chocalhos para vacas.
Na feira de Vila Bela,
Feijão e pó nas barracas,
Na feira de Vila Bela,
Arreios, cordas e facas.

Na feira de Vila Bela,
Chapéus de couro, alpercatas.
Na feira de Vila Bela,
Um ceguinho pede esmola.
Na feira de Vila Bela,
O cego e sua viola:

– A lenda tem pés ligeiros
E corre mais no sertão,
Corre mais do que  lembrança,
Mais que soldado fujão.

Corre mais que tudo, só
Não corre mais que oração
E isso mesmo quando é feita a
Padre Cícero Romão.

Hoje todo mundo sabe

Quem foi ele, o capitão.
Junta o sabe e o não sabe
E inventa outro Lampião.

Mas dele mesmo, não sabem
E nem nunca saberão,
Pois ele nunca viveu,
Não era sim, era não.

Como essas coisas que existem
Dentro da imaginação.
Quem puder que invente outro
Virgulino Lampião.”



Se Lampião, o encarnado, mandou recado ao povo de Sátiro Dias, nessa época apenas um arruado chamado arraial do Junco, com uma praça, uma capela, um delegado e um soldado de polícia – medroso que só, segundo contam os viventes de então –  dizendo que ia lá, e não cumpriu a palavra por ter coisas mais importantes a fazer, o rei do cangaço acampou em sua sede, a cidade de Inhambupe, e lá fez suas estripulias. Contava o meu pai, sempre com um sorriso de satisfação nos lábios, que um primo nosso de Inhambupe, nessa ocasião dono de uma loja de tecidos, negou um pedaço de pano para uma senhora necessitada, na presença do Capitão Virgulino Ferreira. Este, indignado com a velhacaria do comerciante, deu ordem aos seus cabras para invadir a loja, pegar as mercadorias existentes lá, e distribuir entre os mais carentes da cidade. O povo fez uma festança. O dono da loja esperneou, esbravejou e Lampião ordenou que ele fosse pendurado de cabeça para baixo no poste mais alto da praça. Passou um dia e uma noite distraindo a molecada como um judas em sábado de aleluia, vindo a ser solto a pedido do mangangão político local que acoitava o bando mais temido e ao mesmo tempo mais amado da história do cangaço.
Cresci ouvindo o meu avô chamar Lampião de bandido e de outros adjetivos nada abonadores, enquanto o meu pai, sempre de visão romântica, dizia ser ele, o rei do cangaço, um justiceiro mal compreendido. E nos contava episódios em que ele posava de mocinho, defendendo os fracos e oprimidos da vilanesca tirania do coronelismo de então.

A Bahia veio a conhecer o cangaceirismo de Lampião depois que ele, acossado pelos macacos, foi obrigado a atravessar o Rio São Francisco, se acoitando no Raso da Catarina, cujos habitantes, remanescentes ou descendentes dos seguidores do Conselheiro, ainda ressentidos da crueldade do massacre da Guerra de Canudos, lhe deram guarida sem maiores delongas. Consta que, no deslocamento do bando para a região de Inhambupe, Lampião, rosto ainda desconhecido da maioria da população, no caminho puxou conversa com uma senhora, pote d’água na cabeça e marcas de sofrimento no rosto curtido pelo sol causticante da região:

  Bom dia! A senhora não tem medo de encontrar Lampião por aí? – perguntou matreiro.
    Não. Dizem que ele é um bom moço.
    E se a senhora se encontrasse com ele, o que fazia?
  Ah, meu filho, eu lhe pedia uma ajuda para comprar “um de comer”!
O rei do cangaço puxou da algibeira um maço de contos de réis e entregou para a senhora, que de tão maravilhada que ficou, o chamou de santo.
Quando o Marquês de Pombal expulsou os jesuítas do Brasil, em 1759, o interior do país, principalmente dos sertões nordestinos, perdeu sua principal via de ligação aos centros urbanos mais desenvolvidos e esse isolamento causou o despovoamento das reduções e missões, ocasionando a proliferação do cangaceirismo e do jaguncismo, que aterrorizavam a população remanescente em investidas de assaltos ou de crime de morte por encomenda. O fiel da balança da Justiça pendia sempre para o lado mais forte, causando um sentimento de revolta e de anarquia jurídica na população. Deste modo, acendia no povo a devoção pela lei de Talião, olho por olho, dente por dente, praticada pelos cangaceiros, que, ao atacarem os poderosos, caíam na simpatia da população social e economicamente marginalizada, sendo idolatrados por alguns.
Em um Nordeste predominantemente agrícola, cujo trabalhador rural se submetia a uma árdua jornada diária de onze horas, sob um sol inclemente esquentando o juízo do infeliz por uns míseros 500 réis, que não davam nem pra comprar um quilo de carne que custava quase o dobro (800 réis), ser cangaceiro significava poder realizar o sonho de liberdade econômica e de sentir o saboroso afago na vaidade, pois o cangaço, além de propiciar o ganho rápido de dinheiro, também proporcionava fama e respeito.
Como a fome não sustenta bandeira ideológica, nem a humilhação das injustiças praticadas pelos poderosos dá suporte necessário à manutenção da Fé, colocados juntos na balança da Providência Divina, os coronéis de um lado e os virgulinos do outro, certamente estes últimos se livrariam do Fogo Eterno do Inferno ao pousarem leve como plumas flutuantes na bandeja das ponderações etéreas, vítimas de uma realidade severina e cruel; e os primeiros, os coronéis, braço econômico da Lei, da Moral e da Justiça,  afundariam como chumbo mergulhado na água, sob rigorosa acusação de serem os verdadeiros mentores, agenciadores e algozes dos Lampiões.



segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Deu no Correio Braziliense em 28/10/2010


 Uma homenagem ao amigo Ibys Maceioh (camisa azul, na foto)


Com entrada franca, roda de choro encerra 5º Festival Nacional de Choro


As nuvens choravam, mas a aproximação da sala na Unip onde iniciava a oficina em Brasília do 5º Festival Nacional de Choro não suscitava uma amplificação da melancolia. A sonoridade alegre da polca lundu Ora veja, do filho de Pirenópolis Antonio da Costa Nascimento (1837-1903), o Tonico do Padre, iluminava o dia nublado nos acordes do piano, bandolim, violão, cavaquinho, pandeiro e da flauta. “A polca é a mãe do choro, casou com o lundu”, ensina em tom jocoso o professor deste último instrumento da Escola Portátil de Música, Toninho Carrasqueira.

Embora alguns pesquisadores justifiquem o nome do gênero a um tom choroso, para Luciana Rabello, que ensina cavaquinho, a explicação de Luís da Câmara Cascudo é a mais provável: o termo teria surgido do “xolo”, baile típico dos escravos nas fazendas. O fato demonstra a origem mestiça do choro, que em si promove misturas entre vários tipos de valsa, o schottisch, a habanera, o maxixe e o tango brasileiro, entre outros.

Fortemente ligado à “cidade dos pianos”, epíteto para a capital do país na época da sua disseminação em meados do século 19, o gênero agregou mais tarde bandolim e pandeiro. Mas, “toca-se com o instrumento que se tem”, enfatiza Luciana, primeira mulher a participar de conjunto regional e gravações profissionais em um que fosse de “base instrumental” e não essencialmente solista. A musicista garante: “O choro é patrimônio do Rio de Janeiro e de todo o Brasil, e em breve será da humanidade”.
“História mágica que só tem som”, de acordo com Carrasqueira, a música não foge à métrica das quatro frases de quatro compassos em que a terceira é o clímax e a última apenas “termina para concluir”, num vaivém gradual que desvela um efeito de crescendo acumulado. E, após a conclusão, cabe “a vírgula”, a breve respiração silenciosa que deixa tudo em suspenso por um instante.

O aluno Luciano Marques, violonista em bares de Rio Verde (GO), onde mora, conta que o aspecto mais “dançado e balançado” faz de Ora Veja, de Tonico do Padre, composição mais fácil de se interpretar e afirma ser o terceiro festival seguido de que participa — só não veio no ano passado porque não houve, devido à falta de patrocínio.

Iniciativa da Escola Portátil, que há 10 anos vem, entre outras atividades, ministrando oficinas pelo Brasil com o intuito de divulgar e preservar o choro, o festival chega à sua quinta edição neste ano com abrangência inédita e realizações simultâneas aqui, em Porto Alegre e Belo Horizonte. Hoje, às 15h, haverá um concerto de encerramento com a participação de alunos e professores na Unip.

5º FESTIVAL NACIONAL DE CHORO
Roda de choro de encerramento da oficina, com a participação de professores alunos do evento, na Unip (SGAS 913, Cj. B). Entrada franca. Classificação indicativa livre.