quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Cineas Santos - Reinações de um violeiro

De Pedro Costa e Luís Carlos



Seu Liberato era um sertanejo atípico: não caçava, não pescava, não maltratava animais e tinha pavor a queimadas. Tratava a terra como fêmea por sabê-la grávida de vidas. Era exato e preciso como a palavra não. Avesso a manifestações ruidosas, nunca o vi colérico ou eufórico. Sua vida era balizada pelas chuvas e suas aspirações não excediam os limites de sua gleba. Sabia ler os sinais da chuva na agitação das formigas, na floração dos mandacarus, na posição do ninho do João-bobo. Um homem que cabia em si, perfeitamente integrado ao seu chão. Não fazia versos, não tocava viola, não cantava chulas nem loas. Se bem me lembro, conhecia apenas uma cantiga: “O cabelo de meu bem tem areia/tem areia, tem areia, vou tirar/cabelo de meu bem tem areia/tem areia, só tiro se ela mandar”. Era temente a Deus, mas avesso cultos de qualquer natureza. Certa feita, quando o convidaram para uma quermesse, sentenciou: “Homem que segura pau de andor ou carrega viola não sustenta a família”.

Homem de rasas sabenças, seu Liberato não viveu o bastante para perceber o quanto estava enganado. Hoje, religião é o mais rentável dos negócios e os violeiros deixaram os terreiros e as latadas e conquistaram a ribalta. É certo que ainda existem os que gaguejam versos estropiados nas feiras dos sertões, mas os mais ladinos são tratados como estrelas. Entre nós, por exemplo, existe um certo Pedro Costa que, segundo o mestre Paulo Nunes, se não houver tropeços, chegará ao Vaticano. Natural de Alto Longá, Pedro descobriu, muito cedo, que puxar cobra para os pés no rabo de uma enxada não tinha futuro. Trocou a enxada pela viola e rumou pra capital. Dublê de cantador, poeta, ator e empresário, Pedro Costa criou a Fundação Nordestina do Cordel (FUNCOR), passou a editar a revista “De repente” e folhetos à mancheia. Autor de mais de 300 folhetos sobre temas diversos, professor de cordel nas escolas de Teresina, Pedro acaba de marcar mais um tento: construiu a sede da FUNCOR, no Parque Itararé, com sala para projeção de filmes, biblioteca aberta ao público e estúdio de gravação.

Enquanto alguns companheiros de ofício queixam-se, pedem ou esperam uma “ajudinha” do poder público, Pedro Costa, com a gana de um sem-terra, trabalha, avança, abre novos espaços e confirma a máxima dos empreendedores: “só se estabelece quem tem competência”. Tem razão o poeta medíocre quando canta: “Pedro Costa, com esse jeito/ de arigó e matuto/ é uma réplica do João Grilo/esperto, ladino, astuto/ só aposta pra ganhar/ conhece os paus que dão fruto”. 

Longa vida ao Pedro, um cidadão que, com talento e trabalho, honra e dignifica a cultura popular do Piauí.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Antonio Torres - Lisboa rima com Pessoa


"Sobre sete colinas, que são outros tantos pontos de observação de onde se podem disfrutar magníficos panoramas, espalha-se a vasta, irregular e multicolorida massa de casas que constitui Lisboa”. É assim que Fernando Pessoa começa o guia da cidade que ele chamava de seu lar, e onde se sentia fincado no chão, “senão como uma raiz pelo menos como um poste”. Intitulado O que o turista deve ver, esse guia permaneceu desconhecido durante décadas, até ser encontrado, em 1987, dentro de uma arca com mais de 27 mil documentos pessoanos, que estavam sendo pesquisados em função das comemorações do centenário do poeta, no ano seguinte. O achado foi “um grande e inesperado prazer”, escreveu a professora Teresa Rita Lopes no prefácio ao guia, afinal publicado em 1992, e que, ela esclarece, não é curiosidade avulsa, mera resposta a uma ocasional solicitação, pois fazia parte de um vasto plano de Pessoa. Por volta de 1919, ele decidira escrever, com fervor patriótico, contra o que classificava de “descategorização europeia” e “descategorização civilizacional” - de Portugal, pois, pois.

Portanto, vejamos a velha cidade, cheia de encanto e beleza, através do olhar amoroso de quem se dizia “transeunte de corpo e alma destas ruas baixas que vão dar no Tejo”. Mas antes de seguirmos seus passos de flâneur pela Baixa, a planície na qual desemboca a Avenida da Liberdade, e se assenta o centro de Lisboa, com seus históricos logradouros (Restauradores, Rossio, Chiado, as ruas Augusta, do Ouro e da Prata, do Carmo, Garrett, a Praça do Comércio), parando aqui e ali para ver o tempo passar às mesas de cafés lendários como os do Cais do Sodré, o Nicola, A Brasileira, o Martinho da Arcada (onde Pessoa fazia ponto); ou de nos aventurarmos pelo clássico roteiro que inclui o Padrão dos Descobrimentos, Castelo de São Jorge, passando pela Catedral, de construção parcialmente românica, e subindo a Rua da Saudade, onde morou outro grande poeta pós-Pessoa, chamado Alexandre O’Neill, sem esquecermos o Mosteiro dos Jerônimos, o Museu de Arte Antiga, e os de Artes Decorativas, Arqueologia e de Etnografia, da Marinha, dos coches, da Fundação Gulbenkian, das casas antigas, parte delas decoradas de azulejos - pois antes de tudo isso façamos um breve passeio pela já longa história da cidade.

No princípio Lisboa era de origem fenícia. Chamava-se Olissipo, e desenvolveu-se graças à atividade comercial. Ocupada pelos mouros em 716 d.C, foi reconquistada em 1147. Tornou-se capital de Portugal no século XIII. Viveu seu apogeu a partir da era das grandes navegações, na virada do século XV para o XVI, e que resultaram em descobertas de terras e gentes em praticamente todos os continentes, quando a língua portuguesa se firmou como veículo de expressão de um novo reino, a se espraiar por mares nunca dantes navegados na voz de intrépidos marinheiros, que atingiram o Cabo Bojador em 1434, chegaram à foz do Congo em 1483, dobraram o Cabo da Boa Esperança em 1487, e descobriram o Brasil em 1500. As aventuras marítimas portuguesas tiveram o seu coroamento com a publicação, em 1575, do monumental Os Lusíadas, de Luís de Camões, tendo sido ele próprio um herói da epopéia que escreveu - como soldado em Ceuta e pelos quinze anos de guerras na Índia.

  Mas, enquanto o mundo girava e a Lusitana rodava, colhendo os louros de suas conquistas, Lisboa era parcialmente destruída no devastador terremoto de 1755. Reconstruída e embelezada pelo Marquês de Pombal, viria, num preito de gratidão, a dar-lhe o nome a uma das suas praças mais importantes, surgida naquela reconstrução.  

Na virada da História, em tempos modernos, Lisboa iria se postar à beira do cais, com um olhar esfíngico e fatal, a fitar o futuro do passado, como se esperasse avistar os navios que desapareceram na fronteira da nostalgia, ou divisar através da cerração um vulto baço, que volta. Ícone do Modernismo lisboeta, Fernando Pessoa fez-se por vezes o intérprete dos sentimentos passadistas lusitanos, a evocar suas lendas heróicas, em poemas de louvor a navegantes e conquistadores como Vasco da Gama e Dom Sebastião, o rei desaparecido em África na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. O rei falhado, que deixou um império na saudade, tornou-se o símbolo de um passado que não volta, por mais desejado que seja o seu retorno. Foram-se as navegações, ficaram as recordações: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas noivas ficaram sem casar/ Para que fosses nosso, ó mar!”).

 Na hora de mostrar a cidade aos turistas, o seu tom é outro: “Para o viajante que chega por mar, Lisboa, vista assim de longe, ergue-se como uma bela visão de sonho, sobressaindo contra o azul vivo do céu, que o sol anima. E as cúpulas, os monumentos, o velho castelo elevam-se acima da massa das casas, como arautos distantes deste delicioso lugar, desta abençoada região”.

Chegando de navio – continua ele -, o espanto do turista começa na entrada da barra. Depois de passar o farol do Bugio, na embocadura do rio Tejo, lhe aparece a Torre de Belém, “como exemplar magnífico da arquitetura militar do século XVI, em estilo romano-gótico-mourisco”.


 Hoje, o poeta teria que recorrer aos seus célebres heterônimos para recepcionar os turistas que chegam de avião, de trem e de carro. Aliás, as auto-estradas do país dão a impressão de terem sido construídas para produções hollyhoodianas, em tempos de categorização européia geral, ó pá!

 E mesmo que essa categorização civilizacional o fizesse, agora, se sentir um fantasma a errar em salas de recordações, com certeza ele haveria de se rejubilar, ao ler estas palavras da professora Teresa Rita Lopes: “Talvez só hoje Lisboa se tenha tornado o lar de Pessoa. De tal forma que é impossível percorrer certos sítios, certas ruas, sem sentir ao nosso lado os seus passos esvoaçantes”. 
          

  
        

  

sábado, 13 de novembro de 2010

Dois pesos, duas medidas - O caso Tiririca - Edna Lopes

Plus nocet vestrum antidotum quam venenum.* S.Agostinho

               Começo a perder a paciência com essa questão do deputado federal eleito, Francisco Everardo Oliveira Silva (PR-SP), o Tiririca. Deputado sim, porque quem votou nele sabe exatamente qual a consequência de um voto: no mínimo, eleger um candidato.

             Não sou eleitora dele, não seria. Mas penso seriamente que o linchamento ao “palhaço” tem mais de um propósito... Mais de dois?

Parece a Santa Inquisição... Só falta a fogueira, porque a insensatez é a mesma... "Cospem" a palavra PALHAÇO como se fosse a coisa mais abjeta, pior que CORRUPTO, LADRÃO, ASSASSINO... E que eu saiba ele não é nada disso.

            Sabem exatamente qual é sentido e significado da palavra PALHAÇO... Por que a utilizam para depreciar, desqualificar?

            Por aí a fora se elegeu velhas raposas felpudas, “corruptos históricos”, ladrões de merenda escolar, se elegeu quem arma o braço de alguém para matar, quem explora a boa fé da população, quem compra voto, se elegeu especialistas em fraudar concorrências, se elegeu sonegadores, sanguessugas, guabirus, lavadores de dinheiro, quem prevaricou, quem extorquiu e o único a ser punido é o que é ANALFABETO FUNCIONAL?
         Quantos estão questionando se eles devem ser DIPLOMADOS ou não?

         Quer me dizer que garantir mandato de bandido com formação universitária, colarinho engomado, sobrenome quatrocentão e/ou de novo rico POOOODE?

        Quer me convencer que ANALFABETO POLÍTICO é só quem assumiu o “voto cacareco”?

       Quer me fazer entender que quem vota em candidato comprovadamente bandido é ELEITOR CONSCIENTE? 

       Demonstrem indignação também por toda essa corja eleita...E façam-me o favor de não achar que do lado de cá só há quem pense “entre aspas”...analfabetos funcionais de crítica e reflexão.

        Ou querem me convencer que esse espetáculo todo é FAZER JUSTIÇA?


* Mais mal faz vosso antídoto que o veneno.



quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Dorme Nenê - Cláudia Magalhães


"Tutu-Marambá não venha mais cá, que a mãe da criança te manda matar, bicho-papão sai de cima do telhado, deixa a menina dormir sossegada...'', Ofélia acordou com a voz da criança cantando e sentiu um forte mal-estar, uma náusea que fazia seu estômago dar voltas e mais voltas. As pancadas da chuva na janela só aumentavam sua dor de cabeça. Com as pernas trêmulas seguiu em direção a porta de entrada e ao tocar no trinco pensou que ia desmaiar. Ela estava fechada, não havia como escapar. Segundos depois, andava de um lado para o outro da sala buscando o controle da situação, mas o mundo insistia em correr mais rápido. Foi até o outro quarto e encarou com espanto o rosto quadrado, esquálido da velha. "Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega essa menina que tem medo de careta...", ouviu a voz da criança que cantava sem parar e sentiu o peito fervilhar como se estivesse dentro de um forno. Por que não nos deixa em paz? Por que nos manter presas aqui? - gritou encarando a velha. Sentiu uma forte dor no estômago. Há quanto tempo não comia algo? Não lembrava. Pobre criança, já não sabe mais sorrir, pensou com tristeza.

      Correu até a cozinha e encontrou uma garrafa de gim fechada. “Que alívio, ela vai se sentir melhor”, pensou enquanto abria a bebida. Encheu o copo e, em seguida, voltou ao quarto com a garrafa e ofereceu a bebida a velha que tomou de um só gole. Não gosto de você, te odeio o suficiente para te matar. Por favor, desista! Não me olhe assim, com esse olhar caído, fraco, não terei pena de você! Não use seu sofrimento como pretexto para nos prender aqui! Vou revirar cada canto dessa casa e descobrir onde escondeu a chave. Vou pegar a criança, sair por aquela porta e encontrar meu amor. Sim, eu sei viver um grande amor, ao contrário de você! Por isso fica assim com essa inveja no peito e com esse desejo de morte, disse vendo a velha virar mais um copo de gim. Por que não se mata de uma vez? Não sabe que não pode manipular os desejos do mundo? Não são nossas vontades que fazem a faca cortar nossos pulsos, mas nossas fraquezas. São elas que dão poder às coisas. Então, vá em frente, velha! Pegue essa faca que você deixou sobre a cama, pois fraqueza é o que não lhe falta! Você não consegue, não é? Não minta pra si mesma, não esconda suas limitações. O nome disso é covardia!, disse encarando a velha que, nesse instante, tomava mais uma dose de gim. "Dorme neném que a cuca vem pegar, papai foi pra roça, mamãe foi trabalhar...", a voz da criança a deixava em pânico. O que você fez com a menina? Vamos, diga! E as chaves, onde estão as chaves? - gritou histérica. Por que você faz isso? Por quê? - perguntou com um fiapo de voz. Você foi amada, descobriu o real sentido de levantar a saia e no lugar de se sentir feliz, se tornou inquieta e medrosa. Penetrou mais em você do que no amor que poderia ter te dado tudo e não gostando do que viu, se tornou sua maior inimiga. Perdeu e diante do abandono e da solidão só fez envelhecer, disse revirando tudo pelo quarto. Essa brincadeira toda me perturba. Vou encontrar essa chave e, ao contrário de você, uma fracassada, vou em busca da felicidade. Vou em busca do amor perdido. Vou dizer que ao seu lado dou as costas a tudo que faz tremer a felicidade, que sua companhia me rouba de uma vida miserável e que isso me deixa mais distante da morte. Direi que o amo e se minhas palavras não forem suficientes para trazê-lo de volta, não ficarei de braços cruzados como os covardes que tentam se matar com as mãos nuas, falarei com o olhar, com as mãos, com as coxas, com os pêlos, com o sexo faminto e de cada uma dessas partes que fazem esse amor doarei sua porção mais generosa, doce e erótica, até ele purgar todas as dores, tristezas e dúvidas e me levar ao gozo dos que amam deixando escapar da sua boca um "eu te amo"! Seremos causa e efeito, sob o comando da emoção no espaço e no tempo encontraremos a inteligência do amor e reduziremos a estupidez a pó. Vê a velha tomar mais um gole de gim e sente a cabeça girar. Amamos de maneira diferente. Não vou deixar você tirar ele de mim porque não suporta me ver feliz. "O cravo brigou com a rosa, debaixo de uma sacada, o cravo ficou ferido e a rosa despetalada!", a voz da menina em sua cabeça a deixava cada vez mais desorientada e a amargura da velha já cobria por completo seu juízo. Sei que perdi, não precisa me lembrar disso. Eu vou gritar. Vou gritar até que apareça alguém para me salvar, disse correndo desesperada até a porta de entrada.

      A chave está na porta! - constatou em pânico. Como não a vira antes? Deu altas risadas. Gargalhou muito, até a exaustão, até dobrar a esquina daquela emoção extrema e desabar num choro grave, sofrido. " O anel que tu me deste era vidro e se quebrou. O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou!", era a voz da criança que escutava cada vez mais forte. Voltou ao quarto sentindo a alma pesada, capaz das piores atrocidades. Ficou mais uma vez em frente ao espelho e encarou os olhos da velha Ofélia dentro dela, observou sua inércia, seus lábios enrugados que jamais ousariam dizer o que sonhava, que nunca soube se enfeitar de sonhos, seus pés fincados no chão frio e decidiu se salvar daquele mal que a atormentava. Pediu ajuda a pobre criança Ofélia, mas ela desaprendeu a sorrir, desaprendeu a brincar. Antes tão cheia de vida, agora, um pequeno raio de luz, muito fino e frágil, uma voz de saudade, doces lembranças pulando corda, caindo no poço, chupando manga nos quintais. A criança, a velha e a mulher, três forças desordenadas que formavam a Ofélia. Três em uma. Quantas faces cabem em nossa alma? Qual delas irá cuspir na vida enterrando os desejos das outras, sete palmos debaixo do chão? Não importa. A velha venceu. Há momentos em que devemos proibir a compaixão, pois ela torna santo o que devemos desprezar. "A canoa virou, por deixá-la virar, foi por culpa de Ofélia que não soube remar." Nenhuma palavra mais foi dita. Entre ela e a realidade, somente o silêncio e a distância. Ali, diante do espelho, com a certeza de que todas as promessas e desejos da infância se perpetuam, Ofélia deu adeus a si mesmo. Sem rodeios, cortou os pulsos, matando a mulher, a velha e a criança Ofélia de trinta e cinco anos.
 


 

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Não tem tradução - Luís Pimentel


     Liberino pegou o ônibus da Itapemirim, em Riachão do Jacuípe, e desembarcou na Rodoviária Novo Rio. O 172 o trouxe até Copacabana, onde morava um primo, porteiro de prédio na Ayres Saldanha. Tinha segundo grau incompleto, boa saúde e um sorriso franco e envolvente. Logo arrumou emprego no prédio ao lado, ficou uns dias na muda e depois começou a bater asas pelos arvoredos mais quentes que proliferam no bairro.

     O sorriso envolveu Letícia, também baiana, de Senhor do Bonfim. A conterrânea trabalhava “por ali”, vendendo produtos Avon; também cantava e dançava um pouquinho, no turno noturno. Liberino se apaixonou.

     Um dia conheceu o Bip Bip, na Almirante Gonçalves. Tomava batidinha de maracujá, jogava conversa fora com Alfredinho, e pedia música na roda de samba ao Paulinho do Cavaco e ao Chiquinho Genu:

     – Toca aquela do Caymmi.

     – Qual?

     – Qualquer uma.

     Tinha bom gosto, o sacana. Tivemos certeza no dia em que apresentou a Letícia. Mario Neto atravessou no tamborim, Thibau engasgou com o uísque, a percussão em peso fez Uuuuuuhhhhh! Cuidou de apresentar:

     – É o amor da minha vida! Pretendo casar com ela, ter filhos.

     Alfredinho ressucitou o pigarro dos tempos de fumante e segredou com o novo amigo:

     – Espera um pouco. Conhece melhor a moça, pede a ela para te apresentar o local onde trabalha.

     Letícia mostrou as instalações do futuro Museu da Imagem e do Som:

     – Era aqui. Chamava-se Help! É inglês. Mas agora vai ser só de música brasileira... eu prefiro.

     Liberino sorriu, franco.

     O amor é assim: não tem tradução. 

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Nota do blog: crônica feita à mão no dia de ontem, num quarto de hotel em Salvador, onde o autor se encontra em visita oficial,  exclusivamente para os leitores do blog. Obrigado pela generosidade, grande Pimenta! 

 

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Das coisas que ainda não experimentei - Cineas Santos

A palavra medicina não frequentava o estreito universo vocabular dos moradores da minha aldeia .É certo que ouvíamos falar dos doutores, mas estavam tão próximos de nós quanto as estrelas, as sereias, a fortuna... O médico mais próximo, um certo Abílio de Lima Costa, estava a 12 léguas de distância, e o transporte de que dispúnhamos era o jegue. Para quem não conhece a psicologia desse ser singular, uma explicação sucinta: trata-se de um animal sistemático, para dizer o mínimo. Se estiver quente, deita-se com a carga; se fizer frio, amiúda o passo; se estiver chovendo, empaca de vez. Digamos que a verdadeira inclinação do jegue seja o descompromisso com horários, o gosto pela contemplação e as contendas ( taí a palavra adequada) amorosas. Não se pode contar com jumento para emergências. Mas isso será objeto de outra arenga.

Não por acaso, as figuras mais notáveis da minha aldeia eram a parteira, a benzedeira e o curador. Dos três, o curador era o mais reverenciado, visto poucas pessoas possuírem o dom que a natureza lhes deu: neutralizar o veneno das serpentes com simples cusparadas. Saliva de curador não tinha preço...

Por falta de médicos e remédios industrializados, com exceção da Aguardente Alemã, que curava tudo, recorríamos a rezas, mezinhas, unguentos e chás de todas as versidades. As doenças não eram tantas, mas a morte, como um gato manso, estava sempre ronronando por perto. O primeiro grande desafio de uma criança sertaneja era sobreviver ao mal de sete dias, na verdade tétano. Como o cordão umbilical era cortado com faca cega, tesoura enferrujada ou caco de vidro, os riscos eram enormes. Mas tínhamos nossas defesas: para cicatrizar a ferida do umbigo, sarro de cachimbo; para endurecer a moleira, gema de ovo quente; para minimizar os efeitos da coqueluche, leite de jumenta preta; para crise de asma, mel de Cupira ou caldo de cauã; para verminose, semente de abóbora ou melão-de-são-caetano... E havia uma profusão de chás: chá de carqueja, de pau-de-rato, de casca de laranja da terra, de entrecasca de aroeira, de folha de mamão, de raspa de juazeiro e o mais insólito de todos: chá de bosta de cachorro. Não ria, leitor, que a prosa é séria. Não acredita? Pergunte aos mais velhos. Era o chá recomendável para expurgar o sarampo das entranhas da molecada. Deste, me livrei por um triz: quando o sarampo me alcançou, eu já morava na cidade.

Mas vamos ao que realmente interessa: no início da semana, passando em frente a uma lojinha de artigos femininos, vi uma placa que me deixou curioso: PREPARAMOS CHÁ DE LINGERIE. Pensei comigo: estou vendo coisas. Parei,olhei,soletrei. Era isso mesmo. Ao me vir ali especado na porta, uma das vendedoras aproximou-se: “Posso ajudá-lo, senhor?” Meio desapontado, gaguejei: É sobre o chá... “Pois não!” A gente pode pelos menos saber quem usou a peça? A moça arregalou os belos olhos e disparou: “O senhor é louco ou o quê? O senhor bebe?!” É justamente sobre isso que queria falar, moça. Posso até beber e com muito gosto, mas preciso ver como é preparado e saber a procedência da peça... 

A jovem bateu-me a porta na cara e me deixou falando sozinho. Mocinha estressada, sô!


domingo, 7 de novembro de 2010

Bem-vinda, Mayara - Jairo Costa Júnior


Mesmo com essa manifestação que ganhou a grande rede na ressaca eleitoral, é certo que as crias da boa São Paulo continuarão a encher o Verão e o Carnaval da Bahia




Duvido que algum baiano tenha ouvido falar de Mayara Petruso antes que ela alimentasse um preconceito que, até então, pensava-se escondido nas mansões quatrocentonas dos Jardins paulistanos. Assim como duvido também que a moça represente o pensamento daquele povo ordeiro, trabalhador, gentil e que, junto com os nordestinos que ela quer afogar na primeira inundação do Tietê, ajudam a mover o Brasil para além dos twitters e facebooks da vida.
Mas, duas coisas merecem atenção nos 15 bytes de (má) fama conquistados pela tal. A primeira é culpar o povo, que como ela deve pensar, tem a cabeça chata e a barriga vazia, pela escolha de Dilma Rousseff para a Presidência. Se assim fosse, imagine o que ela acha, então, de seus conterrâneos que nos empurram goela abaixo, a cada eleição, figuras como Tiririca - vejam só, um cearense! E que ainda arrastam, com seus milhões de votos, o que há de mais espúrio na política nacional. Pior que tá, fica, sim senhora. 
A segunda é tentar proliferar um ódio que só existe no cadinho mais atrasado e provinciano de uma São Paulo em nada parecida com os caracteres de péssimo gosto e português deficiente da twitteira preconceituosa. A cada ano, a Bahia recebe de braços abertos centenas de milhares de paulistas, que vêm curtir nossas praias e trocar conosco as alegrias do bom viver. As daqui e as de lá. 

Conheço muitos deles. E em nadinha se assemelham com o que Mayara tenta nos fazer crer que são a verdadeira mentalidade de São Paulo. Não nos odeiam e nem querem nos odiar, mesmo com mobilizações xenofóbicas, veladas ou não. No máximo, gozam de nosso sotaque arrastado, da nossa suposta lentidão, da mesma forma que rimos da deselegância discreta de suas meninas e dos caras de tênis e meia no centro da canela assando-se sob o sol na tentativa de parecer um pouco mais filhotes de Gabriela. 
Definitivamente, Mayara não vai conseguir que nós - paulistas, baianos ou paulibaianos - nos odiemos. Até porque, caso ela não saiba, São Paulo nada mais é que filho do Nordeste. E olhe que não falo sobre os milhões de “famintos” que carregam aquele estado nas costas. E sim dos que saíram das bandas de cá do litoral brasileiro para vitaminar São Vicente, a semente que gerou a árvore frondosa com nome de outro santo. 
Mesmo com essa manifestação que ganhou a grande rede na ressaca eleitoral, é certo que as crias da boa São Paulo  continuarão a encher o Verão e o Carnaval da Bahia. É certo também que serão recebidos na boa, sem qualquer nesga do rancor que a moça tenta propagar. O convite vale para ela. Garanto que o máximo de risco que Mayara vai correr será uma pegada mais vigorosa de um filho de Gandhy interessado em trocar saliva por colares. Coisa que, asseguro, a fará esquecer a estúpida ideia de nos afogar.

Artigo Publicado em 03/11/2010 no jornal Correio da Bahia.
Jairo Costa Júnior é colunista do Jornal Correio da Bahia 
Jairo Costa Júnior | Redação CORREIO
jairo.junior@redebahia.com.br