quarta-feira, 27 de julho de 2011

Luís Pimentel - Luiz Gonzaga, rei do baião, do Nordeste, do Brasil

Se vivo fosse, ele estaria fazendo 100 anos em 2012. E cantando muito, enaltecendo a vida do homem do sertanejo, significando muito para o seu povo. Nenhum artista brasileiro foi tão importante para a cultura das regiões Nordeste e Norte do Brasil, para a divulgação de como vivia, trabalhava e sofria o trabalhador das roças quanto Luiz Gonzaga do Nascimento, filho do mestre sanfoneiro Januário e da roceira Ana Batista de Jesus, que um dia saiu da pequena cidade de Exu, região do Araripe, no sertão pernambucano, para conquistar o Brasil e fazer sua sanfona conhecida nos quatro cantos do país e também no exterior. A música de Luiz Gonzaga, que foi coroado “Rei do Baião”, tem para o povo do Norte e do Nordeste do Brasil a importância da fé no Padre Cícero Romão. E já subiu ao posto mais alto do pódio onde também merecem medalhas o xaxado de Jackson do Pandeiro, a arte de barro do mestre Vitalino, a poesia de Patativa do Assaré e de Azulão e a sabedoria moleque de Ariano Suassuna.

Foi um artista verdadeiramente popular e mambembe, que corria o Brasil inteiro, ano a ano, fazendo shows das grandes capitais aos municípios distantes e minúsculos. “Seu Luiz”, como era carinhosamente tratado pelos amigos, vivia repetindo que não poderia prescindir de parceiros (teve muitos, Humberto Teixeira e Zé Dantas foram os mais constantes), porque não sabia trabalhar sem um poeta do lado. Achava-se um homem rude e sem traquejo com as palavras, o que não era verdade. Gonzaga tinha, sim, um olhar extremamente poético sobre o mundo e o revelou diversas vezes em entrevistas, participações em programas de rádio e TV e no longo depoimento que deu à pesquisadora francesa Dominique Dreyfus, autora do livro Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga. Explicando a ela, por exemplo, a razão dos longos períodos de chuva que costumavam alegrar Exu, ele disse, em poucas palavras, o que um meteorologista gastaria muito verbo para dizer: “O pé de serra tem sempre essas matas, essas montanhas que atraem as chuvas. Tem um vento que desvia o rumo da chuva. Ela se forma, vem, e quando chega no alto da serra, se divide, parte pra tudo que é canto”.

Lindo. Como linda é toda a sua obra.


segunda-feira, 25 de julho de 2011

Cineas Santos - Aula de Cidadania


 Cineas e Niède

Pediram-me que traçasse um rápido perfil da arqueóloga Niède Guidon. Não precisei pensar muito para fazê-lo: é uma cidadã competente, obstinada e corajosa, cercada de problemas e incompreensões por todos os lados. Venho acompanhando, com o mais vivo interesse, a trajetória da Dra. Niède desde o início da década de 70. Nunca vi ninguém com maior capacidade de entregar-se, de corpo e alma, a uma causa que não é apenas dela; é da humanidade: a defesa incondicional do Parque Nacional da Serra da Capivara. Por ele, Niède morreria se necessário fosse. Aliás, em mais de uma oportunidade já foi ameaçada de morte. Com ardente paciência e com uma coragem que beira à insanidade, a pesquisadora não transige, não faz concessões nem conchavos. Exige que se cumpra a lei, que se respeitem a vida e os registros do que, um dia, foi vivo.

Os desafios e empecilhos, na vida da pesquisadora, apareceram antes mesmo de ela chegar à Serra da Capivara. No início da década de 60, ao ver algumas fotos das pinturas rupestres da serra, decidiu, por sua conta e risco, percorrer os 3.000 Km que separam São Paulo do Piauí encarapitada num bravo fusquinha. O transbordamento de um rio, na Bahia, impediu-lhe a passagem. Não desistiu do intento e já se preparava para fazer o mesmo percurso, quando ocorreu o golpe de 64. A arqueóloga teve de deixar o país às pressas para não ser presa. Na França, longe das garras dos generais de plantão, manteve aceso o sonho de voltar à Capivara. Em 1973, regressou ao Brasil e, finalmente, pôde defrontar-se com “a mais bela visão” de sua vida: os imensos paredões da serra, rendilhados de pinturas rupestres, únicas no mundo. Armou sua tenda no meio da caatinga e, ao longo desses 38 anos, só se afastou da Capivara para buscar recursos em Brasília e no exterior. Com o que conseguiu pôde viabilizar novas pesquisas e criar o Museu do Homem Americano.

É ocioso dizer que sempre conviveu com incompreensões de toda ordem. Se os são-raimundenses encaravam-na com desconfiança, acusando-a inclusive de “furtar peças para vender na França”, seus colegas de ofício não aceitavam sua tese de que, há mais 50 mil anos, humanos já povoavam aquela remota região do planeta. Impávida, lutou pela criação do Parque e vem lutando, obstinadamente, pela conclusão do aeroporto internacional de São Raimundo Nonato, “única forma de tornar o Parque Nacional da Serra da Capivara auto-sustentável”, acredita.

Na semana passada (30/06), na Academia de Medicina do Piauí, com voz cansada e gestos lentos, Niède Guidon ministrou uma magnífica aula de cidadania para uma plateia atenta e emocionada. Ao terminar, deixou em cada um de nós um sentimento contraditório, misto de alegria e tristeza. Alegria por sabermos que existem pessoas capazes de se doar a uma causa tão nobre; tristeza por não sabermos o que será do Parque quando ela se for.

sábado, 23 de julho de 2011

Edna Lopes - O chão de Graciliano


O chão de Graciliano é também o meu chão, não apenas porque nasci nas terras da Fazenda Serra Grande, no município de Quebrangulo, estado das Alagoas, mas porque é o chão dos meus afetos mais caros, da minha raiz brasileira.

O chão de Graciliano se estende para além das fronteiras do chão em que nasceu o Mestre. É o chão da nordestina adversidade, uma terra castigada por um sol inclemente, mas também abençoada com chuvas que fazem esse mesmo chão que racha, virar um tapete de flores.

O chão de Graciliano é um livro especial e deve ser lido com os cinco sentidos e o li assim. Li com os dedos ansiosos pela próxima página, pela próxima fotografia, pelo próximo relato do autor das palavras. Li com a sensação da traquinagem dos banhos escondidos numa cachoeira do Rio Paraíba.

Li com o ouvido da alma atento às lembranças do canto da acauã, do alvorecer entre cacarejos e mugidos, do bater das asas da garça nos açudes,  entre o entardecer de silêncio e solidão, na vermelhidão da boca da noite.

Li com os olhos encantados e às vezes tristes, pelas imagens tão cruas, tão reais, tão duras, mas ainda assim esperançosas, como a fé que anima os viventes das Alagoas, Fabianos e Sá Vitórias de vida severina, com seus corações de acolher o mundo.

Li com o coração saudoso do cheiro das primeiras gotas de chuva na terra ressequida, do cheiro do café torrado e moído por meu pai, do cheiro de estrume e leite fresco, do tacho de doce de leite e de queijo, no fogão de lenha.

Li com a mesma saudade do gosto desse doce e desse queijo, do vapor do milho cozido e da caneca de leite fresco na beira do curral, guardados como “comidas da alma”, na memória afetiva das lembranças mais caras e saborosas.

O chão de Graciliano é um livro especial não só por tudo que me fez sentir e lembrar, mas também por ter sido presente do autor dos textos, o jornalista e escritor Audálio Dantas, que juntamente com sua esposa e jornalista Vanira Dantas, amigos queridos, estiveram comigo no dia do meu aniversário, no dia de Santo Antonio, em São Paulo.
Vale à pena ler e se encantar com os detalhes desse Chão.

Serviço:
O livro de arte-reportagem, “O Chão de Graciliano”, editado pela Tempo d’Imagem, mostra, em texto de Audálio Dantas e fotografias de Tiago Santana, presidente do iFoto, a região de nascimento e criação literária de Graciliano Ramos.

O livro, com versão em inglês e espanhol, é o resultado de várias viagens ao sertão de Alagoas e Pernambuco, a partir de 2002, quando foi feito o primeiro ensaio fotográfico para a exposição “O Chão de Graciliano”, em 2003 (Sesc Pompéia, em São Paulo), considerada a mais importante até hoje realizada sobre a vida e a obra do escritor. O evento, com projeto e curadoria de Audálio Dantas, marcou a passagem dos 110 anos de nascimento de Graciliano e os 70 anos da publicação de seu primeiro romance, “Caetés”, e percorreu várias cidades, entre as quais Maceió (AL), Fortaleza (CE) e em Recife (PE), na Fundação Joaquim Nabuco, com palestra de abertura de Ariano Suassuna.

Os autores e o Chão

Os autores do livro têm em comum a origem nordestina. O jornalista Audálio Dantas nasceu na pequena cidade de Tanque d’Arca, Alagoas, a poucos quilômetros de Quebrangulo, terra natal de Graciliano. Seu texto, uma reportagem literária, registra o tempo e o espaço do escritor em sua região, o passado e o presente muitas vezes se confundem, pois em muitos aspectos as condições do homem que nela vive permanecem praticamente as mesmas.

Cearense do Crato, o fotógrafo Tiago Santana, cresceu vendo os romeiros que buscavam milagres em Juazeiro, cidade do Padre Cícero, ali perto.

Como a obra de Graciliano, o ensaio fotográfico de Tiago é centrado na figura do homem, tendo a paisagem como mero pano de fundo. Na apresentação do livro, o jornalista (também nordestino) Joel Silveira afirma: “O chão percorrido pelo fotógrafo é o mesmo sobre o qual Graciliano construiu a sua literatura, mas não é a paisagem, a terra quase sempre dura e seca, que Tiago recolhe em sua câmera; o que ele registra é o homem que nela vive, sobrevive ou dela se retira quando de todo perde a esperança – eterno Fabiano”.

O Chão de Graciliano é um projeto da Audálio Dantas Comunicação e Projetos Culturais e da Editora Tempo d’Imagem, com incentivo da Lei Rouanet (...)




quinta-feira, 21 de julho de 2011

MEA CULPA, MEA MÁXIMA CULPA


“A alegria é um dos mais reveladores traços humanos,
basta a alegria para revelar as pessoas dos pés à cabeça.”
Dostoievski, in 'O Adolescente'

Certa vez, quando eu escrevia em site coletivo, uma internauta me enviou um e-mail indignada por encontrar algumas piadas na minha página, cuja mensagem deixo abaixo, na íntegra:

“Li na sua pg algumas piadas que, naturalmente não são suas, muitas delas com arquétipos, ou que mesmo não têm nada a ver com cultura, literatura, inapropriadas, portanto, para estarem em páginas que aventam cultura literária, até pq tb e principalmente não são piadas suas. Isso é ético? Sim, pq é preciso ética acima de tudo, se não nunca podemos nos manifestar, principalmente criticando. Os seus textos, por outro lado, entre causos, contos, são razoáveis.”

Nos tempos em que eu andava pelos chamados e-groups, houve alguém que questionou a inserção de piadas na chamada lista, pois eu, todas as manhãs, saudava o povo contando uma piada. Achava ela que piada não era literatura e, para amenizar um pouco, fez uma concessão: piada só com autoria. Tal transigência, em que pese a generosidade da reclamante, por si só já era uma piada. 

Distimia é o nome para a doença chamada mau humor, uma forma light de depressão crônica. Um transtorno mental. Por causa desses transtornados que se escondem por trás de um monitor que meu gás acabou para esses grupos de bate-papo literário. Mas, antes de abandonar o barco das vaidades e veleidades, enviei meu recado ao grupo, cujo teor se enquadra na resposta da minha missivista virtual:

“Façamos um hiato nas nossas prolixas produções literárias e vejamos uma curiosidade obscena chamada de “Gênero Literário”. 

Gênero Literário é aquele negócio que faz você, leitor, identificar, sem medo de errar, o que é um poema, um conto, uma crônica e por aí vai. São quatro, os gêneros: Lírico; Épico; Dramático e Especiais. 

Mas aqui só me interessa um: o Épico.

A principal característica do Gênero Épico é o texto em forma de narração. Divide-se em: Romance; Novela; Conto; Crônica; Anedota; Fábula; Parábola.

Anedota????????????? Pois é. Anedota.

E assim nos ensina o professor Wilson Roberto C. Almeida, em seu livro “Língua e Linguagem”:

“Anedota:
Tem por finalidade despertar graça e seu significado literal é ‘algo inédito’. Hoje, anedota é uma pequena história de conteúdo humorístico”.

Por outro lado, o Aurélio diz:  Anedota -  P. ext. Piada (3).   E o Houaiss? Que será que diz o  grande Houaiss em seu dicionário com mais de duzentos e cinqüenta mil verbetes e que me custou cem reais o cd-rom? Vejamos o que diz em “sinônimos variantes” de anedota: conto, episódio, historieta, piada”. Piada???? Esse Houaiss maluqueceu! Acho que joguei meu dinheiro fora!”

Decerto que as piadas não são minhas, conforme dedução da reclamante. Como não existia o gênero “piada”, no referido site, fiz uso repetido do título daquela revista americana “Seleções Readers Digest” para o tópico de piadas: “Rir é o melhor remédio”. A primeira vez que li a Seleções tinha dez anos de idade, e tenho certeza que a maioria dos internautas já leu uma, alguma vez na vida. E, apesar de ter muitas piadas, é uma revista mais séria do que qualquer site de Literatura. E eles ainda pagam por uma boa piada. A revista Playboy, cuja essência é a nudez feminina, também paga bem por uma piada. E eu escrevia de graça.  A reclamante, em vez de me acusar de aético, devia me agradecer por ter alegrado um instante de sua existência.

As piadas são de domínio público, não têm autoria, e são os textos mais corrompidos que se tem notícia. Cada um conta ou escreve a seu modo e jeito: um, mais engraçado; outro, menos. Nenhum autor se sente diminuído por escrever piada, principalmente os cronistas, quando lhes falta inspiração. Quem nunca viu uma piada em gibi, em algum livro, em alguns contistas e cronistas famosos? No dia que alguém se intitular dono de uma piada, outro anunciará de algum lugar, entristecido com o fenômeno: “Este É o Dia Que o Riso Acabou”.

O riso é sagrado. São Tomás de Aquino, o santo filósofo, dizia que "brincar é necessário para levar uma vida humana".  O riso é uma coisa tão séria que mereceram estudos de Platão e Freud. Desopila o fígado, faz fluir o sangue pelas veias aliviando a pressão arterial, fertilizando a mente e o espírito. Mas, rir ou não, é um direito de cada um. Ninguém é obrigado a rir ou a gostar de piadas. Mas não reconhecer nenhum mérito literário nelas, é negar o obvio e comprometer-se em teorias esdrúxulas, embasadas no desconhecimento ou na pura ignorância dos enunciados da teoria literária.

Quero aproveitar o ensejo e agradecer à minha leitora que, dentro de seu vasto mar de conhecimento crítico, teve a generosidade de achar os meus textos razoáveis.


terça-feira, 19 de julho de 2011

Maurício Melo Júnior - O reino do invisível

Foi assim. Um auditório repleto, coisa de difícil enfrentamento. Neste caso, no entanto, estamos num estágio ainda pior. Um auditório repleto de crianças, quase adolescentes ávidos para trucidar o coitado de um escritor desguarnecido de imaginação e esperanças. Uma horda de canibais modernos vazando curiosidade por todos os poros. O desespero aumentou quando percebi que era eu a vítima do delírio famélico daquela gente miúda, liliputianos a transpirarem sangue pelos olhos. Meu desespero aumentou quando descobri que não transitava no espaço do onírico. Na mais cruel das verdades percebi que não havia saída de emergência. Juro que invejei Hans Staden.

Como um herói despido, pisei o primeiro degrau da escada. Entrei no palco e, ateu convicto, apelei para o Senhor das Esferas – Seja o Deus quiser. E Ele foi generoso com este seu filho desgarrado. As crianças e adolescentes ansiavam que eu falasse de literatura, criação literária, essas coisas que edulcoram nossas vidas tão insossas.

Por que o senhor escreve?

Diante da primeira pergunta não temi, ao contrário desandei um rosário. Escrevo por um motivo muito simples: sou, em verdade, um grande mentiroso, e isso pode ser uma imensa mentira, afinal quem em sã consciência acredita em um embromador? Fato mesmo, buscando os cânones da veracidade, é que a fama de escritor é mais salutar que a de simulador, daí escrevo todas as minhas inexatidões e atendo convites para parolar com pubescentes hodiernos.

O diálogo não se deu desta maneira, afinal muitas das palavras aqui empregadas apanhei agora no dicionário, esse companheiro de horas infindas, mas o tom foi este mesmo. Além do mais quem falar daquela maneira, num arremedo danado do velho Camões, merece bons safanões, imensos apupos.

Esgotadas todas as agressões possíveis aos dicionários, voltemos à frieza dos fatos. Nós escritores – tenho a pretensão de ser um deles – somos vendedores de mentiras. Durantes horas, dias, meses, anos convivemos com pessoas que não existem. Mesmo assim conversamos com elas, compartilhamos todas as suas angústias, todas as suas esperanças. Choramos suas dores, rimos suas felicidades. E se por ventura algum desavisado aventureiro desdizer a mais vil e canalha destas criaturas nos tomamos de mágoas maternais e defendemos estes seres imateriais como quem se bate em favor de um filho.

Somos estranhos, reconheço.

O danado é que quase sempre nos apanhamos em dúvidas: Isso de fato aconteceu?

Ainda outra hora lembrei uma tarde vadia na Câmara dos Deputados. Sempre que conseguia estes espaços corria para a sala onde trabalhava Luiz Berto. E ficávamos ali a falar da vida alheia, mas posando de intelectuais a discutir os destinos artísticos da nação. Foi então que surgiu uma bela e jovem vate abraçada às suas produções. Era de fato uma moça interessada nos meandros da literatura tanto que, informaram-me, cursava letras numa faculdade qualquer. Berto leu as estrofes e, com uma incolor pergunta: o que você acha?, passou-me as folhas. Li. Levemente constrangido sentenciei: Lembra-me o poema Menina e Moça, de Machado de Assis. E a novel bardo pergunta com serenidade: Quem é Machado de Assis?

Terá sido isto verdade?

Vivo com meus comparsas o mundo das inverdades, mas mentimos apenas para a folha em branco. Ou a tela em branco. Resguardamo-nos numa ética que pode parecer estranha. E nos alimentamos de fantasias amando a veracidade, por isso desconfiamos sempre da vida. Ela nos espreita e nos surpreende em cada nova esquina. E há fatos que contamos desconfiando de nós mesmos, afinal a vida também é uma grande mentirosa.

Há tempos, num tempo onde ganhava o necessário para a sobrevivência dando aulas numa faculdade, fui abordado por um rapaz. Sou seu aluno, me garantia. Minha memória não chega a ser uma maravilha, mas também não costuma falhar com freqüência. E como tinha outras atividades profissionais, era fácil lembrar o rosto de cada freqüentador das poucas salas onde ministrava a ciência do jornalismo. Aquela cara, tinha certeza, me era totalmente desconhecida. E o moço insistia: sou seu aluno.

Depois de um breve interrogatório descobri o fato. O rapaz havia se matriculado em minha disciplina, mas já estávamos no final do semestre e ele não comparecera a nenhuma aula. E fazia um pedido singelo, que lhe aplicasse um teste capaz de o aprovar na matéria, pois, segundo me garantia, mesmo faltando a todas as aulas, conhecia em profundidade a matéria.

Que diploma de jornalismo eu poderia dar aquele moço?

Radicalizei. Fale-me sobre Ionesco.

Sobre quem, professor?

Eugène Ionesco.

Diante da cara de espanto do aluno retruquei. Ionesco, um dos pais do teatro do absurdo, era romeno e escreveu um clássico, A Cantora Careca, onde durante todo o espetáculo se procura a tal cantora que nunca aparece, pois simplesmente não existe. Meu caro, você é minha cantora careca. Você não existe.

Vivemos num mundo de delírios, mas procuramos sempre o caminho da sinceridade. É que ler mentiras nos parece um exercício bem honesto.


sábado, 16 de julho de 2011

O bê-á-bá de Brasília: dicionário de coisas e palavras da capital - Por Edna Lopes



Meu caro Marcelo,

Embora não tenhamos nos avistado dessa vez, quero lhe agradecer a companhia bem humorada nesses meus dias na Novacap (já não tão nova assim). Tomar chá de cadeira em aeroporto, subir e descer de avião, se a gente não está em boa companhia fica difícil. O seu livro O bê-á-bá de Brasília: dicionário de coisas e palavras da capital foi mesmo uma ótima companhia e me faz dar boas risadas, só não sei se meus companheiros de poltrona acharam graça em viajar com alguém que enfia o nariz num livro e ainda ri sozinha. 

Brasília é uma cidade especial e mesmo trabalhando um tanto quando estou por aí, aproveito para rever amigos e foi uma pena que você perdeu a “Noite da tapioca das Alagoas em Brasília” em casa dos queridos Iara e Maurício, mas entendi seus motivos. Fica para a próxima, certamente.

Depois que li o livro quero recomendá-lo. Brasilienses, candangos, gregos e baianos reconhecerão seu bom humor, seu espírito livre e por vezes galhofeiro e também o seu amor por esta terra que o acolheu com tanta generosidade. Mesmo baiano, sua candanguisse da gema do ovo de codorna é explícita! 

E dentre tantas boas resenhas que li vou destacar abaixo a que achei mais representativa do conjunto da obra. Cá com meus botões fiquei pensando o ótimo serviço que seria um Guia de Brasília, com o olhar curioso de quem chegou e ficou, de quem ama e respeita sua diversidade cultural e sua atitude blasé de metrópole. Que tal?

Dicionário de Brasília é um glossário irreverente sobre a capital
Fonte: Revista Nós
*Publicado por Gregory Cotrim em 2 de junho, 2011
Brasília já possui um vocabulário para chamar de seu, ainda que seja um linguajar bastante influenciado pelas pessoas de fora, que representam a metade da população. Em Brasília, edifício é bloco; bicicleta é camelo ou magrela; e ônibus tem ao menos quatro “apelidos” – baú, Davi, caixão e GOL (grande ônibus lotado). Em Brasília, micro-ônibus é zebrinha, radar é pardal, retorno é tesourinha, térreo é pilotis, periquito é maritaca, tiara é diadema e meleca é um pequeno adesivo que se cola no peito.
(...)
A obra não se limita às gírias, palavras e expressões do cotidiano do Distrito Federal. Ela também aborda, de um jeito informal e irreverente, os mais diferentes aspectos da capital do país. Verbos como “arrudiar” e “abadiar”; apelidos de locais, prédios, monumentos e vias públicas (Cascata, Água Mineral, Prendedor, Bolo de Noiva, Túnel do Tempo, Torres Gêmeas, H, Eixinhos); e siglas, muitas siglas (QI, SQN).
O livro também mostra outra característica brasiliense – a mania de abreviar as palavras: véi, cachu, refri, Taguá, Ban-Ban, cerva, Piri, mó, fi e até fi-in são alguns dos termos usados pelos jovens.
Fatos, frases, palavras, gírias, expressões, coisas típicas, curiosidades, bizarrices. São 884 verbetes, numa espécie de Brasília de A a Z. “Este livro é uma declaração de humor a Brasília”, diz o autor, o jornalista Marcelo Torres.
Marcelo nasceu na pequena cidade de Sátiro Dias-BA, a 210 km de Salvador; com 15 anos de idade foi estudar em Salvador, onde se formou em Jornalismo, pela Universidade Federal da Bahia. Funcionário de carreira do Banco do Brasil, passou em seleção interna em junho de 2002 e veio trabalhar na Diretoria de Marketing e Comunicação, em Brasília, onde foi editor de uma revista interna. http://brasiliamaranhao.wordpress.com/2011/06/15/
SERVIÇO

“O bê-á-bá de Brasília: dicionário de coisas e palavras da capital”
Editora Thesaurus, 96 páginas
Site: www.thesaurus.com.br
Contato com o autor: (61) 9962 6035
marcelocronista@gmail.com

Obs. Marcelo Torres é primo legítimo de Tom e Vinícius, portanto, meu primo torto.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Cineas Santos - Pato, Ganso, Catatua e Caterva

A seleção brasileira de futebol participava de uma competição e, a exemplo do que está ocorrendo agora, ia muito mal das pernas. Certeiro como uma bala perdida, Millôr Fernandes disparou: “Se eu fosse tratado como esses rapagões e não pintasse pelo menos uma Capela Sistina por semana, eu me sentiria um incompetente”. Mais que uma bela sacada humorística, o filósofo do Méier botou o dedo na ferida: nunca antes na história da humanidade (com a devida licença do Lula), os jogadores de futebol, digo, as estrelas do futebol receberam tratamento tão diferenciado. Hoje, mais que atletas, esses bravos rapazes são tratados como deuses. Além de salários astronômicos, têm treinadores, fisioterapeutas, massagistas, nutricionistas, psicólogos e, principalmente, mulheres. Mulheres de todas as cores e versidades, com a prevalência das louras oxigenadas, naturalmente. As chuteiras, por exemplo, são moldadas e construídas sob medida para se ajustarem aos pés desses seres iluminados como luvas de cirurgião. Em campo, com raríssimas exceções, comportam-se como bisonhos cabeças-de-bagre: erram jogadas que os moleques entanguidos, nos campinhos de monturo, executam com eficiência e alegria. O que estaria acontecendo?

Para um entendido, “o futebol modernizou-se e passou a exigir desses superatletas, além de excelente preparo físico e técnica requintada, atitude”. Eis aí a palavrinha mágica: atitude. Com ela, podem-se abrir até as portas do Valhala. Dia desses, ouvi de um desses sábios de plantão o seguinte comentário: “Hoje, o Garrincha seria um estorvo num time como o Barcelona, que valoriza o futebol coletivo e de resultado”. Falta-me autoridade para contestá-lo. Particularmente, o que me surpreende é o fato de esses meninos ricos ainda encontrarem algum alento para jogar futebol, esporte que, às vezes, exige “sangue, suor e lágrimas”. Tomemos o exemplo de Neymar, recém-coroado pela Veja como “REYMAR. Aos 19 anos de idade, louvado como “um craque da linhagem de Pelé”, o garoto fatura pelo menos um milhão de reais por mês. Segundo o publicitário Washington Olivetto, “Neymar é o melhor exemplo do fute-pop-bolista, cruzamento de futebolista com artista pop , que une a habilidade de um craque com a irreverência de um artista. Esse perfil tem uma abrangência muito grande de negócios”. Tá explicado, não? O moleque entra em campo como um verdadeiro outdoor. Independentemente do que fizer durante o jogo, precisa sair bem na fotografia. A revista mais endireitada do país testifica: “Neymar não é um fenômeno só nos gramados. Dono de um senso de marketing inato, inventou um estilo e diverte-se manipulando a própria imagem (...), fica diferente de todos, todo mundo o adora, e ele é chamado para vender de celular a mortadela”. Consta que este novo Midas tem mais de um milhão de seguidores no Twitter. Com tantos penduricalhos a exibir e tantos negócios a administrar, é possível jogar futebol? Tenho minha dúvidas.

Estou escrevendo este arremedo de crônica antes do jogo entre Brasil e Equador, cujo resultado será decisivo para a permanência da seleção na Copa América. Seja qual for o placar da partida, mantenho tudo o que afirmei aqui. Nunca imaginei viver o bastante para ver um técnico da seleção brasileira protagonizando um comercial de cerveja. Não é preciso ser especialista em nada para saber que bebida alcoólica não combina com esporte, a não ser com arremesso de bagana. Sem perder a fleuma, o senhor Mano Menezes tenta o que parece impossível: fazer o Ganso e o Pato alçarem voo. Quanto a Neymar, com seu cabelo moicano, entrou na competição como rei, mas já está sendo carinhosamente apelidado pela galera de “cacatua ciscadeira”. Pena que já não se leiam os poetas: “A mão que afaga é a mesma que apedreja”.


quarta-feira, 13 de julho de 2011

O brega e a juventude

Hoje, remasterizando uns discos de vinil, os chamados “bolachões”, me reencontrei com a breguice de antigamente, que, perto das breguices de hoje, soam como músicas eruditas. Pelo menos, naqueles tempos, brega era a música melosa e romântica que se tocava no rádio e tinha um público fiel em qualquer ocasião. Os jovens de então, na vanguarda dos metais e sintetizadores, deixavam na retaguarda uma trilha sonora poética e melodiosa, chamada por eles de “música de velho”, esquecidos de que a música é arte, e a arte fica antiga, não envelhece.

Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Silvinho, Ângela Maria, Orlando Silva, Sílvio Caldas e muitos outros cantantes da serenata, eram os que recebiam a pecha de “brega” e eram desprezados pela turba jovem, sedenta de guitarra e distorção. Porém, para estes “bregas” ainda havia tolerância, pois restava algum resquício de infância ressoando na memória auditiva dos jovens ligando os laços musicais paternalistas. No entanto, havia outra vertente da música romântica, a mais moderna, representada por novos artistas que corriam à revelia da recente MPB. Eram chamados preconceituosamente de “cantores de empregada doméstica”, pois estas profissionais do lar gostavam de ligar o radinho de pilha em volume perturbador, sintonizado em emissoras AM (naqueles tempos não existia rádio FM.) de programação intragável e que constava na programação diária Odair José, Nilton César, Miss Lene, Gretchen, Diana, Fernando Mendes, Peninha, Moacyr Franco, Márcio Greyk e mais a jovem guarda que então se tornara brega, inclusive Roberto Carlos, que se salvou depois que virou especial de Natal, da Rede Globo, e que chegou ao final da década de 70 no auge da carreira, sendo que era chique, no fim de ano, presentear-se os amigos e parentes com o novo disco do “Rei”.

Mas voltemos aos bregas de antigamente, que não são os mesmos bregas de hoje. Naquele tempo nem “brega” existia. Dizia-se “cafona” a música que continha forte dialética sentimental, bem diferente dos atuais, que beiram o ridículo e carecem de conteúdo, mas encontram  grande receptividade nos jovens “cabeças ocas”, que deliram em êxtase nos pagodes, rodeios e blocos axés musicais da praga baiana que se espalhou por todo o Brasil feito erva daninha em terra devoluta.

Caetano Veloso, o ícone da nossa MPB, gravou Peninha (duas vezes) e Fernando Mendes e foi disco de ouro em menos de dois meses. Orlando Moraes gravou Odair José. Fafá de Belém gravou Waldick Soriano que foi gravado por meio mundo de gente, incluindo Maria Creuza, Altemar Dutra e Nelson Gonçalves. O maranhense Zeca Baleiro revelou ter sido fã de Waldick Soriano.

Pois é: a geração Hi-Fi vai envelhecendo e ficando besta, sensível e nostálgica, resmungando da juventude apática e caminhando no túnel do tempo na direção do passado, em busca de uma afirmação para a vida e de um sentido para a sua transitoriedade.

Afinal, em alguns instantes da nossa vida amamos os Beatles e os Roling Stones.



segunda-feira, 11 de julho de 2011

Luís Pimentel - As rabugices do velho Graça*

De Matador de Aluguel e outras figuras

Conta a lenda que o jovem repórter procurou o velho revisor, no covil dos copidesques do jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, para pedir uma opinião sem compromisso sobre texto literário. O velho revisor chamava-se Graciliano Ramos, escritor já consagrado que ainda precisava suar a camisa em redações para pagar as contas. Chegando à sexta ou sétima linha do texto, levou o primeiro susto, sublinhou uma palavra mal-empregada e devolveu os papéis ao iniciante, com um comentário sucinto:

– “Outrossim” é a puta que pariu!

Graciliano detestava conversa fiada. Quando a conversa era escrita, então, nem se fala. Economizava na fala e chegava a ser mesquinho no texto:

“Escrever é cortar palavra” era a sua máxima. E mais:

“Quem escreve deve ter todo cuidado para a coisa não sair molhada. Quero dizer que da página que foi escrita não deve pingar nenhuma palavra, a não ser as desnecessárias. É como pano lavado que se estira no varal. Naquela maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lava. Molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Depois colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Depois batem o pano na laje ou na pedra limpa e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer”.

Tenso como seus parágrafos e seco como o chão do seu sertão alagoano, onde nasceu em 1892 (Quebrangulo), o Velho Graça nos deixou no ano de 1953. Apreciador de aguardentes e fumante inveterado, não foi correspondido no amor devotado por mais de 40 anos aos cigarros Selma. Teve os pulmões bombardeados pelos bastões cancerígenos.

A fogueira das vaidades vive a incendiar corações e mentes de escritores, sempre achando que tudo o que escrevem deveria estar no index das obras-primas da humanidade. Diante desses, vale sempre a pena a gente se lembrar de Graciliano Ramos, que passou a vida a desconfiar de tudo e de todos, sobretudo dele mesmo.

Ao ser comunicado da premiação pela Prefeitura do então Distrito Federal dos originais de sua ficção infanto-juvenil A terra dos meninos pelados (publicado em 1941), torceu o nariz para o júri, em carta à mulher, Heloísa Ramos: “Premiaram uma bobagem, sem qualquer valor literário”. Diante do contrato para edição, foi além: “O Zé Olympio quer editar Os meninos. Problema dele, se está querendo jogar dinheiro fora”.

Graciliano Ramos interrompeu e retomou inúmeras vezes o ótimo Angústia (1936), por não enxergar ali qualquer valor literário (como também não enxergava nos anteriores, Caetés, 1933, e São Bernardo, 1934). O livro só não foi interrompido de vez (o que talvez interrompesse também a sua carreira literária) por conta da insistente cobrança de Rachel de Queiroz. O desconfiado queixou-se com Heloísa: “Julgo que terei que continuar o Angústia, já que a bandida da Rachel cobra e diz que é bom (...) Escrevi ontem duas folhas, tendo prontas 95. Vamos ver se é possível concluir agora esta porcaria”.

O livro que o projetou no cenário nacional foi São Bernardo (mereceu adaptação histórica para o cinema, com Othon Bastos e Isabel Ribeiro nos principais papéis, e direção de Leon Hirsman. Vidas secas também foi adaptado e filmado – com Átila Iório de protagonista –, pelo hoje imortal da ABL Nelson Pereira dos Santos). Ali desponta o narrador rigoroso de períodos curtos e contundentes, linguagem crua, magra e fria, contando a história do bruto homem da roça Paulo Honório:

“Aqui nos dias santos surgem viagens, doenças e outros pretextos para o trabalhador gazear. O domingo é perdido, o sábado também se perde, por causa da feira, a semana tem apenas cindo dias e a Igreja ainda reduz. O resultado é a paga encolher e essa cambada viver com a barriga tinindo”.
Não há uma palavra fora de lugar.

Graciliano Ramos correu atrás de bode, trabalhou em balcão de armazém, vendeu tecidos, foi professor, instrutor de ensino, prefeito em Palmeiras dos Índios (AL), preso pelo Estado Novo sob acusação de comunismo (a experiência de cadeia mais valiosa do mundo, pois ao mundo legou Memórias do cárcere, publicado no ano de sua morte) e mais tarde até comunista. Mas jamais precisou de coerência partidária para exibir, ao longo da vida, coerência e apego ao povo mais necessitado do seu sertão ou encontrado por ele nas inúmeras pensões por onde viveu no Rio de Janeiro.

*Do volume de crônicas “O matador de aluguel e outras figuras”, a sair em setembro, pela Editora Melhoramentos.

Nota do blog - Ilustração: capa, contracapa e orelha do livro

domingo, 10 de julho de 2011

Maurício Melo Júnior - A invasão da Terra

Somente agora consegui entender um filme de Mel Gibson, Sinais, já meio antigo. A inteligência é fraca, reconheço, pois o enredo é bem besta. Um fazendeiro americano, viúvo, cria sozinho os filhos menores até que encontra o milharal esmagado em imensos círculos. Daí decorrem os suspenses e as emoções até que se descobre o motivo de toda confusão: extraterrestres invadiram a Terra. Mais um bocado de suspense, mais outro tanto de emoção e o fazendeiro galã percebe que os alienígenas, como os franceses, não simpatizavam com banhos e passa a matá-los com altas doses de água. Pronto a Terra está salva.

Até aí entendi tudo direitinho, o que me incomodava era uma determinada cena. Como a invasão era mundial o Brasil não poderia ficar de fora e, vendo televisão, Mel Gibson é informado que um extraterrestre passeia pelas ruas de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Por que essa escolha já que tudo por aqui acontece no Rio ou em São Paulo? Conheço a cidade e quase fui expulso de lá por conta de minhas limitações culturais. Declarei num artigo que a comunidade está implantada no pampa gaúcho. Levei um puxão de orelhas: “Ficamos no Planalto Médio. Até Teixeirinha diz isso numa música.” Quem mandou não escutar o bardo gaúcho nem estudar geografia?

Fora este deslize, e apesar do frio, me dou muito bem por lá. Freqüentemente sou convidado para ciscar naquele terreiro e fiz muito boas amizades ali. Apesar do frio. Acostumado com o clima ameno de Garanhuns e congelando aos quinze graus, suportei com garbo e elegância os nove graus que costumeiramente baixa na cidade. Num dessas noites geladas, torcendo moderadamente, assisti o Sport vencer o Grêmio. E tudo sem fazer um inimigo, afinal estava cercado por solidários torcedores do Internacional.

Claro que não foi o futebol, muito menos o frio, que me levou a Passo Fundo. Sob um circo armado no campus da universidade, na companhia de cinco mil pessoas, por toda uma semana passei todo o dia e parte da noite a escutar outros mortais falarem de suas obras e suas criações. Perdemos a noção do tempo e embevecidos gastamos nossas horas enquanto lá fora o mundo corria com seus encantos. Manhãs de sol, crianças nas ruas, velhos nas praças, carneiros pastando, bovinos e muares sob as serras. E nós enfurnados em tendas, protegidos do vento e da vida, a discutir palavras.

Somos uma estranha trupe e nos encontramos em todos os lugares que nos permitem a falta de lucidez. Anualmente invadimos Paraty. O mar está próximo, mas também ali somos fustigados pelo frio. Ele nos avisa que aquela não é a nossa praia, que a cidade carece de belas moças semi-nuas a quarar sob o sol tropical. Teimosamente, no entanto, vestimos pesados casacos de couro, nos cobrimos de lã e pisamos as pedras seculares que nos dá um eterno andar de bêbado. Novamente buscamos o abrigo de tendas e, aborígenes modernos, voltamos aos nossos debates, ao exercício perdulário de gastar palavras, palavras, palavras.

Quando chega a noite, fechadas as tendas, reforçamos nossas vestes, nos abrigamos nos bares, pagamos caro por bebidas e petiscos – a conspiração que nos combate usa todas as armas – e voltamos ao mundo das palavras. Distribuímos elogios e patadas, brigamos sempre, nunca chegamos à conclusão nenhuma, fugimos das todas as unanimidades e amamos seres patológicos que passam a eternidade entre quatro paredes sonhando com mundos paralelos e irreais, enquanto pelas praias caminha a sensualidade despida de um país tropical que dispensa o peso das lãs e dos couros.

Teimosamente também conspiramos e espalhamos nossos vícios por todos os recantos. Bravamente enfrentamos o sol e o calor da marinha Alagoas. Em Marechal Deodoro tiramos os turistas da praia do Francês e os atiramos, junto conosco, num auditório climatizado por ar-condicionado e parolamos, parolamos, parolamos. Nossa prosa infinda invade as águas da lagoa de Manguaba, navega a placidez de Mundaú e chega a Maceió. Desabitamos a Ponta Verde e os corpos bronzeados, solares, nos olham indiferentes e seguem para a vida que margeia os canaviais e se reinventa nas engrenagens da usina.

Nem assim nos entregamos. À noite, de volta aos paralelepípedos de Marechal, subimos ladeiras cantando antigas canções. Somos felizes e as vezes fechamos parceria com a vida escutando um sax melancólico na escuridão, sob o luar, e dançamos tangos, boleros, frevos. Este mundo é meu, este mundo é meu.

Um dia a umidade pegajosa da Amazônia envolveu nossa turma em Manaus. Como as calçadas desenhadas do teatro eram amplas e a vastidão do Amazonas nos assustava, trancamos jovens estudantes no ambiente art nouveau de um vetusto salão e desandamos a falar sobre um certo bruxo que morava num lugar distante e viveu marcado pela epilepsia a inventar vidas e dúvidas.

Haja frio ou calor nossa luta cotidiana nunca cessa. E de nada valerão os truques do cinema americano. Enfrentamos tempestades, torrentes, vulcões. Heroicamente nos apossamos de redes, espreguiçadeiras, ônibus e aviões. Somos soberanos em nossas obsessões e vamos ainda dominar a terra.

Somos uma trupe estranha e dela participa o extraterrestre combatido por Mel Gibson, pois agora tenho certeza de que ele foi a Passo Fundo, a convite de Tânia Rösing, participar da Jornada Literária. Isso ninguém me tira da cabeça.


sábado, 9 de julho de 2011

Cineas Santos - Um sonho em curso

De Prof. Cineas Santos

Corria o ano da graça de 1977 e, apesar da ditadura, imperava entre nós a crença na “salvação do planeta”, na iminência de uma luminosa revolução cultural e, principalmente, na construção de um mundo mais justo e mais fraterno. Sonhos juvenis, irrealizáveis, mas necessários. Movido por esse desejo de mudanças, juntei um grupo de jovens – Paulo Machado, Fernando Costa, Alcide Filho, Rogério Newton e Margarete Coelho – e decidimos construir uma ponte cultural entre Teresina e o sertão do Piauí. Amontoados num velho fusca verde-sonho, iniciamos nossa peregrinação por São Raimundo Nonato onde, anualmente, realizava-se uma semana universitária. Levamos uma bela exposição do pintor Fernando Costa que, sozinha, falava mais que a nossa arenga de pregadores. Animados com os resultados, fomos a Oeiras, Floriano e já nos preparávamos para ir a Corrente, quando a gasolina do fusca acabou. Como não éramos financiados por ninguém, encerramos nossa errática aventura na vizinha cidade de José de Freitas. 

Esta história é sabida e consabida. A aventura durou pouco, mas as sementes foram lançadas em terreno fértil, e o projeto A Cara Alegre do Piauí, 34 anos depois, continua mais vivo do que nunca. Agora, por exemplo, estou escrevendo de Pio IX, onde, com um punhado de trabalhadores culturais, estamos fazendo o de sempre: ensinando, aprendendo, compartilhando experiências e vivências. Com a chancela da Universidade Aberta do Brasil, da UESPI e da UFPI, sob a batuta da professora Rosa Melo, nada menos de 500 pessoas (professores, alunos, gente do povo) estão participando dos cursos e oficinas oferecidos por nós na sede do município. É gratificante participar de um projeto que, entre outras atividades, semeia alegria. Mais do que nunca, estou convencido de que a ponte cultural entre a capital e o interior do estado precisa ser construída com a maior urgência para que se mantenha aceso o diálogo enriquecedor entre os que fazem cultura em qualquer parte, mesmo em condições adversas. É ocioso afirmar que um projeto de tal magnitude não poderá ser mantido apenas por um punhado de esforçados trabalhadores. Urge que o Estado faça a sua parte, fomentando políticas culturais capazes de gerar emprego, inclusão social e, acima de tudo, de elevar a autoestima do nosso povo.

            O Cara Alegre, com a experiência dos que já vêm fazendo há mais de 30 anos , está disposto a colaborar com qualquer iniciativa que tenha como objetivo promover a inclusão cultural e estimular o intercâmbio entre a capital e os municípios do Piauí. 


quarta-feira, 6 de julho de 2011

Maurício Melo Júnior - Viver é arriscoso

Riobaldo Tartarana, o brilhante jagunço maquinado por João Rosa, tinha medo da vida, mesmo assim trocou tiros com Hermógenes, amou loucamente e sobreviveu por muitos anos, um tempo suficiente para contar suas aventuras a um ouvinte desconhecido. Sobreviveu agarrado em suas crenças e no desespero de não poder concretizar os desejos do peito. Quando pensava em religião, variava, bebia água de todos os rios, quando devotava seu amor via Diadorim como uma neblina.

Um homem sábio temente a Deus e ao diabo.

Contra esta corda bamba permanente que é a vida, não há muito remédio senão viver, e viver intensamente, como fez Riobaldo.

Um tio meu bem criativo, maquinando uma vida segura, projetou uma casa onde seria possível morar livre de todos os riscos. Desenhou quadrados, estabeleceu espaços, pensou soluções para todos os problemas, previu todas as brechas possíveis para a insegurança e, enfim, fechou o projeto de seus sonhos: um imóvel sem portas ou janelas. “Ninguém vai conseguir entrar nesta casa”, constatavam os céticos. “Nem mesmos ladrões ou homicidas”, rebatia meu engenhoso tio que, infelizmente, não encontrou pedreiros ou mestre-de-obras capazes de concretizar seus sonhos de segurança. Hoje vive no décimo segundo andar de um edifício comum. Aparentemente livre de perigos.

Isso enquanto fica em casa, pois nas saídas há sempre um trânsito cada dia mais difícil. Embora não morando na mesma cidade que este meu tio, vejo o quanto tem se tornado arriscado andar nas ruas das grandes e pequenas cidades. Vai longe o tempo em que uma modesta batida de carros sem vítimas, fatais ou não, era assunto por toda uma semana em Palmares ou Matriz de Camaragibe. Discutíamos o prejuízo dos infelizes proprietários e os possíveis lucros dos mecânicos escolhidos para reparar os estragos. E isso tomava dias de nossas vidas até que nova batida ou, mais comum, as notícias de um novo adultério aumentavam nosso repertório de prosa boêmia.

Os tempos mudam e a vida se torna cada vez mais arriscada, parece uma bolsa de valores onde apenas se negociam ações de massas falidas.

Frequentemente escuto notícias de sequestros relâmpagos, novos golpes na praça, balas perdidas, agressões no trânsito e busco encontrar um outro lado da vida. Nunca consigo chegar ao excessivo grau de otimismo daquele personagem do Roberto Benigni, o Guido, de A Vida é Bela, mas acredito que estamos num tempo de bonança. Talvez isso se deva ao fato de vir de outros tempos, não tão remotos, é certo.

Basta dizer que outro dia, no Recife, tomei conhecimento, um noivo enlouquecido matou um dos padrinhos de seu casamento, a noiva e depois se suicidou. Um fato tão absurdo que nem mesmo Nelson Rodrigues conseguiu imaginar.

Vivi no Recife num tempo em que nosso maior medo, quando rondávamos suas ruas vazias, nas madrugadas vadias, era encontra a Perna-Cabeluda, uma lenda urbana, um ser misterioso com mais de dois metros de altura que chutava corruptos e outros cidadãos menos perigosos. Como éramos boêmios inveterados, temíamos uma vingança mandada pelos céus.

Da terra o perigo era mais real. Galeguinho do Coque vivia nos noticiários e em nosso imaginário. Era cruel, perverso, roubava e judiava de suas vítimas. Um dia foi preso e comemoramos como altas doses de rum, única bebida acessível aos nossos modestos bolsos. E, surpresos, sem comemorações, lemos nos jornais a conversão do famoso bandido ao protestantismo. O mundo estava salvo e podíamos voltar, nas altas da noite, dos bairros distantes, onde os preços eram mais justos e as noites mais felizes. No entanto, confirmando minha tese jurídica de que a ocasião faz o furto, já que o ladrão nasce feito, lamentamos a volta de Galeguinho à prisão: fora flagrado roubando os cofres de sua igreja. Na Idade Média seria queimado por heresia, o malandro.

Isso se deu no Recife, uma cidade cruel, inóspita para quem não se adequa aos seus caprichos. Vítima disso foi o doce Mané Antônio, mecânico estabelecido em Catende. Homem pacato enquanto não lhe envolvia um súbito e costumeiro surto de loucura. E aí subia no primeiro banco da primeira praça que encontrava e desandava seu mais vibrante discurso com a maior de suas frustrações.

Certa feita, desembarcando na Estação Central, foi acometido pelo surto em plena Praça Joaquim Nabuco. Vivia-se os tumultuados idos de abril de 1964. Mané subiu ao banco e abriu o verbo: “Exército, Marinha e Aeronáutica, toda nação, fode e eu não. Por quê?” Os olheiros de plantão não perdoaram e até descobrirem que focinho de porco não era tomada o pobre mecânico exemplar sofreu pelos cárceres da repressão.

Corre-se mais riscos em tempos de exceção, é fato.

Ascenso Ferreira, pelo que me consta, foi dos pouco a escapar com bom humor desta fatalidade. Nos mesmos idos de 1964, no sentido de neutralizar a tendência de esquerda dos artistas pernambucanos, circulou o boato da existência de uma indecente lista apontando os poetas veados, boiolas, homossexuais, enfim, eram tempos em que tal prática não tinha nenhum glamour. O fato é que foi uma avalanche de acusações. Os poetas já não podiam circular em paz sem serem apontados como membro da desabonadora lista. Até que todos os dedos apontaram para o imenso Ascenso. E sem outra saída mais convincente ele gritou para os quatro ventos: “Eu não posso. Eu tenho hemorróidas.”

Viver é arriscoso, mas como vale a pena correr este risco.


domingo, 3 de julho de 2011

Cineas Santos - Pérola na lixeira


Há quem afirme, com uma pontinha de maldade, que a internet é uma espécie de cloaca da civilização ocidental onde cabe tudo: de pedofilia a passaporte para o céu, em módicas prestações mensais. Ainda assim, basta buscar com cuidado para encontar pérolas à disposição de todos. Ademais, não se pode culpar uma estrada pelo simples fato de nela, acidentalmente, transitarem salteadores. Um amigo me mandou esta bela história que, comovido, repasso a vocês.

UBUNTU

A jornalista e filósofa Lia Diskin, no Festival Mundial da Paz, em Floripa (2006), nos presenteou com um caso de uma tribo na África chamada Ubuntu.

Ela contou que um antropólogo estava estudando os usos e costumes da tribo e, quando terminou seu trabalho, teve que esperar pelo transporte que o levaria até o aeroporto de volta pra casa. Sobrava muito tempo, mas ele não queria catequizar os membros da tribo; então, propôs uma brincadeira pras crianças, que achou ser inofensiva.

Comprou uma porção de doces e guloseimas na cidade, botou tudo num cesto bem bonito com laço de fita e tudo e colocou debaixo de uma árvore. Aí ele chamou as crianças e combinou que quando ele dissesse "já!", elas deveriam sair correndo até o cesto, e a que chegasse primeiro ganharia todos os doces que estavam lá dentro.

As crianças se posicionaram na linha demarcatória que ele desenhou no chão e esperaram pelo sinal combinado. Quando ele disse "Já!", instantaneamente todas as crianças se deram as mãos e saíram correndo em direção à árvore com o cesto. Chegando lá, começaram a distribuir os doces entre si e a comerem felizes.

O antropólogo foi ao encontro delas e perguntou porque elas tinham ido todas juntas se uma só poderia ficar com tudo que havia no cesto e, assim, ganhar muito mais doces.

Elas simplesmente responderam: "Ubuntu, tio. Como uma de nós poderia ficar feliz se todas as outras estivessem tristes?" 
Ele ficou desconcertado! Meses e meses trabalhando nisso, estudando a tribo, e ainda não havia compreendido, de verdade,a essência daquele povo. Ou jamais teria proposto uma competição, certo?

Ubuntu significa: "Sou quem sou, porque somos todos nós!"
Atente para o detalhe: porque SOMOS, não pelo que temos...