sábado, 2 de junho de 2012

Luís Pimentel - Viva São João!



     Foi o inocente Dorival quem causou a separação dos pais – Dora e Lourival, como a combinação denuncia  –, em noite de São João. Dorinha jogou todo o capricho de mãe na fantasia do caipira-mirim: costeletas e bigodinho feitos com carvão, canino empretecido no lápis crayon, remendos de chita colorida na calça e na camisa. Tava uma graça.

     Enquanto isso, Lourival enchia a moringa com licor de jenipapo, falando besteiras e gargalhando com os amigos em volta da fogueira. Orgulhosa que só vendo, Dora levou o menino até a calçada para o paizão conferir o trabalho:

      – Tá bonito, não tá, Louro? Um verdadeiro caipira.

E o jumento insensível, entre um arroto e outro:

      – Vai lavar a cara desse menino. A festa é de São João, não é carnaval.

     Dora usou a lenha da fogueira para incendiar a casa, depois sumiu no mundo. Levando o pequeno Dori, que não entendeu nada.
                                                         
                                                          ****
     Depois de 30 anos de casamento arrastado, resolveram exercitar o romantismo numa noite de São João. Colocaram as cadeiras na calçada e ficaram a contemplar o céu de junho:

     – Olha, Nestor, que lindo balão. Ganha o céu e as alturas, carregando com ele mensagens de paz e de prosperidade.

     Um brinde à resposta do velho:

     – Deixa de ser tola, Lucila. Qualquer um vai às alturas quando ainda se tem fogo no rabo.
                                                         ****

     Nenga e Valdira brincavam de pular fogueira quando um tição mal-ajambrado provocou a tragédia, derrubando a moça de pernas abertas entre as labaredas. Ela começou a chorar de vergonha, mas foi consolada pelo namorado gentil:

     – Bobagem. Deve ser bom assim, assadinha na fogueira.

    O amor é sonso.


segunda-feira, 28 de maio de 2012

Luís Pimentel - Mania de outono

     Outono era a moringa na mesa forrada de papel crepom. A caneca de alumínio deixava a água mais fresquinha, gosto de terra no fundo mais fundo, cheiro de chuva no gargalo. Vento encanado que podia constipar, menino remelento de nariz a escorrer pelos lábios. Peito apertado na cor doce e melancólica de um quase maio.

     Essa mania de outono eu tenho desde muito cedo. Desde bem pequeno mesmo, lá na província, onde as pessoas nem davam muita bola para essa história de estação do ano. Tinha o verão, com aquele calor medonho dos tempos sem ar-condicionado nem ventilador, e o inverno que trazia frio de doer nos dedos e obrigar a dormir de pijama. Outono e primavera também existiam, mas a esses ninguém dava muita confiança.

     Eu dava. Comecei a prestar atenção no outono no dia em que a professora Alda exibiu o livrão cheio de fotos coloridas, mostrando como a natureza reagia às boas e más influências climáticas, como se comportava diante de cada uma delas, se derretendo toda quando o outono anunciava a chegada triunfal. O papel do livro ficava mais cheiroso nas páginas que mostravam árvores se descabelando, montanhas abrindo os braços para os dentes do sol que banhava tudo de um amarelo meio laranja avermelhado, sol que parecia vir de outro mundo e que jamais passara nem mesmo de passagem pela minha cidade.

     Peguei mania e comecei a colecionar folhas caídas na praça, sobre calçadas e muros da alameda que acompanhava o caminho da escola. E passei a observar, encantado, que aquelas folhas meio marrons amareladas disputavam em beleza com os frutos da última primavera, foram verdes sobre verdes no verão que acabou de acabar e estarão renascendo daqui a pouco, no inverno que o vento mais fino já anuncia. Fazia as contas e cálculos das transformações pelas quais deveria passar a minha vida até a explosão do próximo outono.

     Por que o declínio e a decadência? De onde tiraram as explicações encontradas no verbete do primeiro dicionário que me caiu às mãos? Até aquele dia, outono para mim era beleza e renascimento. Coloquei as impressões no poeminha outonal que fez os colegas rirem bastante e a professora condescender um “ele é sensível”. Também li para minha mãe, à noite, enquanto ela lavava pratos. Depois do ponto final disse “vá dormir, você está cansado”, e até hoje não sei se o comentário significou uma aprovação. Mas a reação generalizada me mostrou que a compreensão do outono é para poucos.

     Quantas vezes, ainda no meu pequeno mundo, me deitei à tardinha sobre a esteira de folhas das palmeiras, da cajazeira, dos umbuzeiros? Cabeça recostada no travesseiro improvisado de outono e os olhos na impenetrável luz dos fotógrafos e dos pintores, até o sol se cansar de mim e fugir para detrás das montanhas. Logo, logo vem o inverno e eu me fecho em copas, que nem as árvores, escondo os meus frutos.

     Catei folhas na volta da escola, na ida para o trabalho, na vinda dos filhos, na despedida dos pais, sem precisar dar explicações para ninguém. Hoje não mais. Recolho apenas as que as máquinas de limpeza não enxergam, escondidas na grama da beira da piscina. Quando eles descuidam, recolho algumas no tonel de lixo. Só que pouco descuidam e os olhos de verão são fogo em brasa nos meus calcanhares.

     Declínio e decadência. O segurança chuta para longe a belíssima folha da mangueira que veio caindo, caindo e se aproximando de mim. A bota do animal quase esmaga os meus dedos, enquanto se aproxima o enfermeiro vestido de inverno, sem uma gota de luz no semblante, bordando um sorriso de falsa primavera, o mundo girando, girando e me devolvendo o outono que ele traz na pontinha da agulha. 


domingo, 27 de maio de 2012

A sinuosidade da escrita divina


Alguns religiosos, principalmente os padres de paróquias do interior, creditam a seca que ora assola o sertão nordestino a um castigo divino. Supondo que haja fundamentos nas fundamentações fundamentalista dessa gente apocalíptica, Deus misericordioso iguala os pecadores e atinge a iniquidade sertaneja com o maior dos castigos: a sede e a fome. Lançasse uma bola de fogo sobre os ímpios e estaria tudo resolvido. 

No Velho Testamento, em “Juízes”, Deus criou um enredo de violência, amor e traição com o único objetivo de baixar a crista dos filisteus. Ele, contrariado com a desobediência do seu povo escolhido, tornou-o escravo dos filisteus como penitência de quarenta anos. Enquanto os judeus eram redimidos na chibata filisteia, Deus criou uma história paralela tendo Sansão como o salvador da pátria.  A juba fortificante, a vida desregrada, a traição de Dalila depois de sete semanas de amor, foi tudo maquinação divina para colocar Sansão dentro de um banquete filisteu sem ser convidado.  E a nata filisteia sucumbiu à ira divina sem saber que tudo estava escrito nas estrelas e que a festa, na verdade, era para se comemorar o fim dos quarenta anos de servidão judaica.

Deus escreve certo por linhas tortas, diz o ditado, porém a sinuosidade das linhas às vezes é muita penosa.  Depois de muito matutar, cheguei à conclusão de que a seca que assola o Nordeste, se realmente for castigo divino, então o desejo de Deus é o de acabar com a descaracterização da festa do santo mais popular da região: São João. Antigamente o São João era comemorado ao som do forró pé de serra, regado a licor de jenipapo e de comidas típicas. Nos últimos tempos a coisa desandou para a safadeza de shows eróticos e milionários que em nada tem a ver com o evento. Dupla sertaneja, reggae, axé music, technobrega e o escambau, enquanto artistas do cacife de Dominguinhos, Santanna, Flávio José e outros bons forrozeiros ficam de fora. O que é que Adriana Calcanhoto tem a ver com forró? Um tal de Luan Santana, a versão masculina da Barbie sertaneja e presença garantida nos palcos joaninos de algumas prefeituras miseráveis, cobra um cachê de quinhentos mil reais para fazer duas horas de show. Ora, se Ele enviasse uma bola de fogo sobre a tríplice aliança da mídia corrupta, os empresários safados e os prefeitos espertos, tudo se resolveria sem traumas e sem angústias, além de livrar o mundo da indecência humana.  

A farra com as ervas daninhas da música brasileira não teria importância se a conta não fosse paga com o minguado dinheiro de prefeituras de cidades pobres de Jó, algumas sem posto médico nem escola decente. Quanto mais pobre, mais metida em mega shows. No ano passado, uma pequena cidade do sertão norte da Bahia contratou uma dupla de dois sertaneja para fazer o show na noite de São João. Antes de fazer o show, a dupla mandou medir o palco. Depois das medições, a sertanejada alegou que o palco tinha um metro a menos do combinado em contrato, colocou a viola no saco e pegou a estrada de volta. O cachê, algo em torno de trezentos mil reais, pago dias antes, desceu pelo ralo do desperdício.

Felizmente, nesse mesmo ano, o prefeito da minha terra, que era um megalomaníaco musical, foi abduzido pelo bom senso e contratou apenas artistas ligados ao mês joanino, cujos cachês estavam dentro da razoabilidade financeira dos patrocinadores. No São João deste ano, por causa da seca, o arrasta-pé será por conta dos sanfoneiros locais.

Lá em cima, além das nuvens, no próximo mês São João deverá encher os olhos de satisfação, pois, a exemplo do velho Junco, na maioria das cidades atingidas pela sequidão, os festejos juninos serão à moda antiga, do povo dançando ao som da sanfona, da zabumba e batendo nas portas relembrando a pergunta que nem o tempo fez o povo esquecer:

- São João passou por aqui?


sexta-feira, 25 de maio de 2012

Cineas Santos - A arte a serviço da vida

Quando Aristóteles afirmou que o homem é um animal político, poderia ter acrescentado: com senso estético. Teria dito tudo. Não por acaso, das pinturas rupestres aos grafites urbanos, a arte sempre está presente em toda parte. Por mais violenta e absurda que seja a realidade que nos cerca, sempre encontramos um meio para atenuar (ou denunciar) o sofrimento com algum tipo de intervenção artística. Domenico de Mais é taxativo: “De todas as formas de expressão humana, a estética é aquela que, mais do que qualquer outra, é responsável pela nossa felicidade”. Se a beleza é, como queria Stendhal, apenas a promessa da felicidade, é lícito perguntar: como viver sem ela?

            Mas chega de erudição de Almanaque Biotônico. Vamos ao que efetivamente importa. Desde o dia 22 do corrente, encontra-se à disposição de quem tiver interesse a exposição fotográfica “As cores da Serra Vermelha”, de André Pessoa, um dos mais respeitados fotógrafos brasileiros. Não se trata apenas de um punhado de belas fotografias sobre um mundo perdido no coração do semiárido piauiense. Trata-se, na verdade, de um gesto político de grande alcance. Mais que mostrar as belezas da região, André nos mostra o quanto a associação entre capitalismo selvagem e política rasteira pode ser perniciosa. A Serra Vermelha vem sendo objeto de uma acirrada contenda entre empresários que querem reduzi-la a carvão e ambientalistas que lutam por sua preservação. O ex-governador Wellington Dias não pensou duas vezes antes de fazer sua escolha: apostou suas fichas no projeto dos empresários da morte.  Adversário ferrenho da criação do Parque da Serra Vermelha, usou todo o poder de que dispunha para inviabilizá-lo. O parque  (ainda) não foi criado.

            A questão se arrasta desde 2006, quando a JBCarbon conseguiu do IBAMA autorização para desmatar 78 mil hectares de mata na serra. Paradoxalmente, o nome do projeto é “Energia Verde” que, em tese, consistiria na “exploração racional” de  13 lotes. A cada ano, um deles sofreria “um corte monitorado”, permitindo a regeneração das árvores em apenas 13 anos. Os resultados iniciais revelaram que, entre teoria e prática, há espaço de sobra para “tenebrosas transações”. Para quem ainda não sabe, além de ser uma área de recarga, a Serra Vermelha contém espécies remanescentes da Mata Atlântica. Acrescente-se a isso uma biodiversidade ímpar em todo o nordeste brasileiro.

            Nesta exposição, André Pessoa se nega a ser apenas um excelente fotógrafo da natureza; assume sua militância em defesa da vida com os meios de que dispõe: o olhar atento, as lentes potentes e a palavra afiada. A exposição consegue, a um tempo, ser o registro das belezas da serra,  uma denúncia contundente e um convite à reflexão. Em se tratando de um cidadão da estatura do André, nenhuma surpresa. Sua arte é sempre bela e incômoda como deve ser toda arte comprometida com a vida.
       

quarta-feira, 23 de maio de 2012

A parábola de Nicanor Belas Artes



Acho que Deus já se cansou de tanta hipocrisia. Aqui ao lado do meu barraco morava um cidadão acima de qualquer suspeita. Casa com piscina, vários carros na garagem e, dentre eles, uma pick-up que é o sonho de consumo de qualquer ladrão. Em todos os carros um adesivo: “Foi Deus quem me deu”. 

Vendo a seca e a fome assolar o Sertão nordestino, pus-me a refletir sobre o Deus que dá carrão a uns e tira o sustento de milhões numa só tacada. Certamente não pode ser o mesmo deus, dito justo e bondoso, que leva multidões ao mais baixo grau de indignidade humana enquanto escolhe meia dúzia para filhos pródigos.

Mas haveremos de reconhecer que o mal é o que sai da boca do homem, conforme está na Bíblia. E se tiver a boca cheia de dentes e uma televisão filmando, aí a coisa pega. É o que acontece nessas correntes de solidariedade quando um famoso entra em coma. De repente multidões acodem de vela na mão rezando e chorando para a televisão. Nesse acidente da dupla Pedro e Leonardo, fiquei patético com a patetice de certas pessoas que foram levar flores e “conforto” para a família da vítima. Notadamente, só queriam aparecer para a mídia. 

Antigamente, quando se botava dentadura nova, se dizia que o cara estava rindo até de desastre de trem. Até o grande sambista João Nogueira fez uma música nesse sentido:

“(...)
Ele que tinha um dente só
Agora está de dentadura
Não é mais garfo de doceiro
Agora é boca de fartura
E pra mostrar a toda gente
Que tem dente na fachada
Até quando vê desastre
O Nicanor cai na risada
Ahahahahahahahahah”
Nicanor Belas Artes

Lá na Bahia a gente brincava assim quando o desdentado colocava dentadura:

- Fulano, caiu um avião!
- Quá! Quá! Quá! Quá! Quá!
- Sua mãe estava nele...
- Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá!
- Seu filho também!
- Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá!

Hoje, depois de ver no noticiário matutino que a dupla sertaneja Pedro e Leonardo estava se recuperando de vento em popa, a minha secretária me surpreendeu com uma confissão: Deus havia ouvido as suas preces e salvado o garoto. Olhei para ela e perguntei se também orava pelo Elenilson, o piscineiro do condomínio, que agonizava no leito de um hospital público, com insuficiência renal. Além de vizinhos, eles eram amigos de longas datas. Ela respondeu que não. Só tivera tempo de rezar para o rapaz da dupla sertaneja.

Ê, vida que segue! Diante da comoção em massa que nos abala quando algo de ruim acontece a um famoso, o que era uma simples gozação passou a ser a parábola da hipocrisia:

- Fulano, caiu um avião!
- Rsrsrs!
- Sua mãe estava nele...
- Rsrsrsrsrs!
- Seu filho também!
- Ashuashuashuashuashuashuashuashuashua!
- E também uma dupla sertaneja e um artista global...
- Buááááááááááááááááááááá!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Mas, voltando ao meu vizinho que usa dente de ouro e cujos carrões haviam sido presentes de Deus, dia desses a Polícia Federal bateu à sua porta com mandado de prisão, busca e apreensão. Descobriu-se que o Deus dos escolhidos chamava-se Corrupção.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Antonio Toores - Na cidade do invisível Dalton Trevisan


Aproveito a festa do grande Dalton Trevisan pelo Prêmio Camões, maior prêmio da Literatura de Língua Portuguesa em termos de prestígio e cifrões, para republicar uma crônica de Antonio Torres, do seu livro "Sobre Pessoas" em que fala da invisibilidade do autor numa feira de livro de Curitiba.


Tudo que sabia dela era de ouvir dizer. Coisas assim: que no fundo de cada filho de família dorme um vampiro, como o Nelsinho, o Delicado, ou o Dalton, o Contista, suplicantes de beijos das virgens - e de suas carótidas. Mesmo sendo refratários à luz do dia, tornam-se invisíveis, só para contrariar os bisbilhoteiros que a visitam na vã esperança de identificá-los. Quais seriam eles, entre aqueles encostados num balcão, de olho nas meninas que passam, sem lhes prestar atenção? Se é isto o que você quer saber, pode ter certeza de que perdeu a viagem. No entanto, acredite: bem diante dos seus olhos, um deles estará às raias do êxtase, ante a esplêndida visão de uma viúva que acaba de sair de um carro: ''Ela está de preto... Repare na saia curta, distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o joelho... Redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a coxa fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!''. 

Impossível não associar Curitiba ao ritual de seus pequenos vampiros, súditos de Onã, priápicos inofensivos a enxugar conhaques, para afogar os dissabores de uma adolescência espinhenta. Ou a um humorístico jogo de palavras que certamente lhe soa tão espirituoso quanto incômodo: ''Ritiba quer dizer 'do mundo'''. E ainda à definição que lhe cunhou a roqueira Rita Lee: ''Uma cidade arrumadinha, bonitinha, com uma gente educadinha''. Só que esta cidade, justa ou injustamente reduzida a diminutivos, é uma das que mais crescem no país. 

Fiz um bordejo por lá, a convite da Confraria da Palavra. Palestras. Na PUC-PR e numa simpática Feira de Livros na Praça Osório. Quando cheguei, Carlos Heitor Cony já tinha pegado o avião de volta. Logo outro carioca talentoso, o Fernando Molica, deu o ar da sua graça para um reforço à programação cultural do evento e, a bem dizer, preencher um pouco a lacuna deixada pelo experiente Cony. 

Para mim, foi como ir a Roma e não ver o papa, pois Dalton Trevisan, o sumo pontífice das letras paranaenses, ficou famoso também pela invisibilidade. Recluso sistemático, não se sabe se o ermitão Dalton existe ou é ficção. Modo de dizer. Miguel Sanches Neto, um novo valor que se alevanta no Sul, uma vez me garantiu que costuma bater em seus umbrais, e que ele lhe abre a porta, numa prova inequívoca de que sua existência é real, embora escondida a sete chaves da curiosidade pública. 

Esse ourives de palavras - um gênio minimalista - foge do assédio como o diabo da cruz. E nisso faz lembrar o finado Scott Fitzgerald, quando dizia que não podia suportar a visita de celtas, ingleses, políticos, estrangeiros, virginianos, lojistas, intermediários em geral, todos os escritores (evitava os escritores com o maior cuidado, porque eles podem perpetuar a agitação e o desassossego melhor do que ninguém) - e todas as classes como classes, a maioria delas pelos seus membros... 

Seja lá qual tenha sido o motivo, o certo é que o criador de O vampiro de Curitiba não foi à feira. Ainda assim, a praça atraiu de poetas a loucos. Nenhum dos autores convidados conseguiu causar mais impacto do que uma mendiga. Esta roubou a cena diante de uma mesa de autógrafos, ao bradar, insistentemente: ''Senhor vereador, eu quero uma saia nova!''. Acabou sendo tratada respeitosamente. Aí dei razão a Rita Lee: em Curitiba há uma gente bem educada, sim senhora! 


sábado, 19 de maio de 2012

Cineas Santos - O sagrado direito de espernear

Bochicho na Chapada: um grupo de artistas vem protestando, com estridência, contra a composição do atual Conselho Estadual de Cultura do Piauí. Para facilitar o entendimento da questão, o Conselho compõe-se de nove membros: três indicados pelo Executivo; três pelo Legislativo e três pelas instituições que representam os produtores culturais. Os artistas não concordam com a “pouca representatividade” da classe no CEC e menos ainda com o processo de escolha dos conselheiros. Para mudar esse quadro, é necessário dar nova redação ao Artigo 230 da Constituição do Estado do Piauí, o que só poderá ser feito pela Assembleia Legislativa. O Caminho está aberto. Se bem entendi, alguns dos insatisfeitos desconhecem completamente o Regimento Interno do Conselho de Cultura que, no seu Artigo 1º, afirma: “O Conselho Estadual de Cultura tem a incumbência de planejar e orientar as atividades culturais do Estado, promovendo: a) o estudo e proposição de programas culturais; b) a defesa do patrimônio cultural do Estado; c)a difusão da cultura”. Trata-se, portanto, de órgão consultivo e normativo e não executivo. Há quem advogue que o Conselho deva ser mais atuante, ou seja, que se comporte como um sindicato de artistas. Não é esta a sua função 

Protestar é uma atitude legítima e deve ser levada a sério. O problema é quando a coisa degringola e derrapa para a incivilidade. Um dos artistas, irritado por não ter sido preterido, afirma que o prof. Paulo Nunes “está há 600 anos no conselho e que 70% das pessoas nem sabem quem ele é”. Um pouco de informação não faz mal a ninguém. Quando esse moço ainda estava no “ventre das expectativas”, M. Paulo Nunes já estava fazendo cultura no Piauí. Na década de 40, em parceria com O. G. Rego de Carvalho e H. Dobal, lançou a revista Cadernos Meridiano, um divisor de águas na literatura piauiense. Ao longo desses anos, nunca deixou de militar em defesa da cultura do nosso estado. Professor, crítico literário e ensaísta, exerceu os mais diversos cargos públicos, deixando por onde passou a marca de sua atuação: independência intelectual, competência e honradez. Trata-se de um cidadão que honra e dignifica a cultura piauiense. Como presidente do CEC, deu maior visibilidade ao órgão e dotou-o de uma sede própria – o Centro Cultural da Vermelha – com auditório, biblioteca e sala de informática. Por oportuno, posso testemunhar: Paulo Nunes não pediu para permanecer no Conselho; foi convidado pelo governador. 

O direito de espernear é legítimo e deve ser exercido na sua plenitude, mas a incivilidade e a grosseria são inaceitáveis. Além disso, qual é o critério de que se servem os detratores do Conselho para definir um artista? Qualquer dicionário de bolso ensina: “Artista: aquele que tem habilidade artística ou que produz arte”. M. Paulo Nunes, para citar apenas um exemplo, é autor de um punhado de livros sobre os mais diversos temas: educação, literatura, cultura, filosofia, etc. Pelo entendimento dos insatisfeitos, a atividade de escritor não o credencia a ser tratado como artista. Querem-no batendo tambor? Bem, M. Paulo Nunes já não tem idade para vestir o figurino de “artista” desenhado pelos inconformados da hora. Paciência.