segunda-feira, 18 de junho de 2012

Cineas Santos - Alguma coisa acontece


Recém-chegada de Fortaleza onde assistira ao show do Chico Buarque, a jovem senhora ostentava aquele ar dos comungados. Ao me ver, não se conteve: “ Você não foi? Não sabe o que perdeu! Meu Deus, Fortaleza é um encanto! Só em Teresina não acontece nada!”, sempre em tom exclamativo. Não resisti à tentação de citar Soljenítsin: “Cada um constrói o seu paraíso no inferno do outro”. A cidadã arregalou os belos olhos e perguntou: “Quem?” Um autor russo de que ninguém se lembra mais, respondi. Falamos amenidades, e cada um tomou o seu rumo.

            Esse papo de que nada acontece em Teresina me deixa particularmente aborrecido. Que diabo as pessoas esperam que aconteça aqui para que se sintam vivas? Um terremoto?  Vivo nesta chapada há mais de 40 anos e posso lhes dizer que todas as coisas boas e ruins que vivenciei aconteceram exatamente aqui. Poderia, sem risco de ser tomado por pretensioso, afirmar que algumas delas aconteceram com a minha participação. De uma forma ou de outra, nunca estive alheio aos rumores da cidade. Estou inteiro aqui.

Sem esforço algum, é possível lembrar que só este ano já tivemos Artes de Março, com belas atrações artísticas. Aurélio Melo e João Cláudio nos brindaram com a Cantata Gonzageana, a mais bela homenagem que se poderia prestar a Luiz Gonzaga. Brindaram-nos com o espetáculo Emoções: Theatro 4 de Setembro lotado. E o que dizer do show dos Cojobas? Todas as mesas foram vendidas no curto espaço de uma semana. Vejam que são espetáculos bem distintos, com temas diversos e linguagens específicas. É pouco? Hoje (dia 10) tem início o Salão do Livro do Piauí, que se estenderá até o dia 17. Neste mês teremos ainda a 36ª edição do Encontro Nacional de Folguedos, o São João das Cidades, festas para todos os gostos em todos os recantos de Teresina. De 5 a 8 de julho, realizaremos a 8ª edição do Festival Nacional de Violão do Piauí, com atrações internacionais. Depois, virá o Salão internacional de Humor do Piauí, O Salão MedPlan e o que mais pintar. Agosto, com o aniversário da cidade, será uma festa inteiriça.

Como se pode ver, de tédio não morreremos. O que o teresinense precisa fazer, com a maior urgência, é adonar-se desta cidade e, consequentemente, amá-la de forma mais convincente, ou seja, amar com ações e não apenas com palavrório vazio. Essa brava gente precisa, acima de tudo, passar a consumir os bens culturais produzidos aqui, do capote com arroz ao CD da Maria da Inglaterra. Teresina terá a cara que dermos a ela. Como diria aquele velho donatário da chapada, “A cidade é o povo”, o mais é paisagem.

           

domingo, 17 de junho de 2012

Das coisas que não entendo e que nunca vou entender

– Benhê, vamos pra marcha das vadias...
– O quê?!
– Marcha das vadias.
– Que diabo é isso?
– É a marcha das mulheres que apanham dos maridos.
– E desde quando eu bato em você?
– Você não entende...  É a solidariedade feminina.
– E o que as suas amigas vão pensar ao lhe verem lá?
– Não vão pensar nada.  A maioria também estará lá.
– Ah, é?!  Mas elas estarão defendendo causa própria.
– Como assim?
– Elas apanham dos maridos.
– Nem todas.
– Mas a maioria apanha.
– Por isso que vou ser solidária!
– Para com isso!
– Então, quero que você me bata para eu não chegar lá de cara lisa!
– Como?!
– Um  tapinha só, com as costas da mão...
– Ficou doida?
– Doida por um tapa, nem que seja de brincadeira. Por que com tanto homem bruto no mundo eu achei de me casar com um frouxo?
– Como?!
– Frouxo, sim! Como é que você sabe que eu não gosto de apanhar?
– Tá maluca?!
– Maluca estava no dia que achei de me casar com você!
– ?!
– Todas as minhas amigas apanham do marido, só você que quer ser diferente. Diferente, não; frouxo!
– Para com isso, mulher!
– Você sabia que já lhe chifrei com o vizinho aí de cima? Aquele sim, é que é macho!
– O quê?!
– E o porteiro? Você nunca desconfiou de nada não? Por que você acha que ele só entrega as correspondências depois que você sai de casa?
– Aquele safado do Bigodinho?
– Ele e o que tira a folga dele.
– Mulher, eu sou contra a violência, mas você tá pedindo pra apanhar...
– E você é esse homem todo pra bater em ninguém! Homem é o Jair, do 401...
– O quê?! Aquele safado que mal me dá bom dia?!
– Ele e o amigo dele, o Alfredinho.
– Cala essa boca, maldita!
– Não calo! Venha me bater se você é homem!
– Mulher...
– Venha! Me bata, seu corno frouxo!

Plac! Pluft! Pôu e pôu!

– Viva! Agora eu posso ir pra marcha das vadias de olho roxo!  Obrigada, meu amor! Era tudo mentira, viu?

sábado, 16 de junho de 2012

Luís Pimentel - Mãos dadas

Eu tinha verdadeira adoração por ela. Um dia perguntou se eu não sentia vergonha pelo fato de ela ser puta. Eu disse você é feliz assim e isto me faz feliz, ou uma besteira dessas. Na verdade, não me incomodava nem um pouco, estava mesmo era me lixando pros seus draminhas. Ela fingiu acreditar e abriu o quebra-vento, depois balançou o cabelo prum lado e pro outro, como gostava de fazer quando saíamos de carro.

– Mas você tem vergonha de sair de mãos dadas comigo – ela disse.
– Claro que não – respondi.
– Então por que não passeia de mãos dadas comigo por aí?

     Comecei a ficar puto com aquele papo, sempre fico puto com esses papos, mas procurei não demonstrar:

– Sabe o que é? Acho a maior besteira andar por aí de mãos dadas ou de
braços dados. Não ando assim com ninguém, acho que nem sei andar desse jeito, não acerto o passo.
– Nem com a sua mulher você andava?
– Não.

     Eu disse que tinha verdadeira adoração por ela, mas que detestava aquela conversa. Sempre gostei muito de putas, mas detesto conversa de putas. Ou bebem demais e ficam escrachadas, abrindo as pernas fora de hora e dizendo palavrão, ou ficam com essa mania de mulherzinha, querendo andar de mãos dadas e de braços dados, fazer compras com a gente no shopping.

     Ela pegou uma escova enorme na bolsa e começou a ajeitar os cabelos, desarrumados pelo vento. Tinha cabelos bonitos, putas geralmente têm cabelos bonitos porque cuidam bem deles. Depois pegou o batom e começou a avermelhar os lábios.

– E à missa? Você iria à missa comigo? – perguntou.
– Claro que iria.
– Mentiroso.
– Não me chama de mentiroso. Vou à missa com você qualquer dia desses,
você pode até apostar.
– Qualquer dia desses, não. Vamos hoje – e tentou me beijar daquele jeito
que parecia beijo de cachorro, a língua para cima e para baixo, uma luva úmida no meu pescoço.
– Para.
– Tá vendo? Além de vergonha, tem nojo de mim.

     Eu disse que não tinha nojo coisa nenhuma. Ela insistiu que eu tinha nojo dela, por isso não gostava de beijo na boca nem de lambida no pescoço.

– Já disse que não tenho nojo de você, porra! – rosnei, batendo com a mão espalmada no painel do carro.

     Ela se assustou, me olhou até com medo, mas mesmo assim voltou ao lengalenga. Puta é foda mesmo:

– Então passeia de mãos dadas, me leva à missa, ao cinema, ao restaurante, me dá um beijo de novela.
– Não vejo novela.
– Então me dá um beijo de cinema.

Eu disse não enche o saco e ela berrou não fala assim comigo, seu cavalo.
Perdi de vez a paciência, meti o cotovelo nos peitos dela e gritei cala a boca agora, sua puta escrota. Ela disse cala a boca é o cacete e blasfemou que puta era minha mãe. Porra, logo minha mãe, a vaca não sabia mesmo com quem estava se metendo. Se tem uma coisa que não admito é que falem de minha mãe, desde pequeno, quando quebrei a cara de um colega de escola. O merdinha falou que minha mãe ficava na zona enquanto eu dormia.

     Segurei o volante do carro com uma mão e com a outra dei uma bofetada certeira. Ela chorou, xingou e gritou olha para a frente, seu débil mental. E quando olhei para a frente já estava enfiando o carro em cima do poste.

     Não foi por querer que direcionei para o poste o lado do carona. Não foi por cafajestada que salvei a minha pele e acabei com a vida da única mulher que talvez tenha amado na vida. Eu tinha, mesmo, verdadeira adoração por ela. Juro que se ainda desse tempo eu iria de mãos dadas com ela até para o inferno.

 

segunda-feira, 11 de junho de 2012

De Jesus, o português fundamentalista



D. João VI reinvadiu nosso território trazendo na sua esquadra real milhares de parasitas da Corte. Aqui chegando, desalojou o povo de sua moradia, sem direito a indenização, o que resultou no primeiro movimento brasileiro dos sem-teto. Daí, foi um pulo para ser formado o MST e, um pouco adiante, a CGT. A CUT veio bem depois.

Além de comer e beber de graça, Sua Majestade Real e comitiva viviam na maior esbórnia, usando e abusando dos mancebos e mancebas a serviço da realeza. Sua Rainha Real, Dona Carlota Joaquina, além de abusada, insultou nossos brios patrióticos no seu retorno a Portugal: jogou ao mar, do convés do navio, a areia dos seus sapatos para não ter que levar nenhuma lembrança da terra que eles fizeram de gato e sapato. Mas todo mundo se calou e a ralé ainda aplaudiu.

O americano, antes de mostrar o branco massacrando o índio em seus faroestes épicos, mostra o índio atacando uma caravana indefesa e raptando criancinhas, aflorando o sentimento de justiça no espectador. Assim, nunca vemos o branco norte-americano como o invasor, mas como o mocinho; automaticamente o índio se transforma no inimigo que deve ser varrido da face da terra. Filme de guerra também é a mesma coisa. Só mostra os episódios que o americano leva vantagem.    

Isso me faz lembrar uma piada. Um cidadão contava ao amigo a briga que tivera com um desafeto. Narrava e encenava os tapas que dera. O amigo o interrompeu:

– Por que você só conta a vantagem? Não fala dos murros que levou também?
– Ora, simples de responder: a parte que apanhei, ele está contando a outro!

Nesse contar de vantagem, achamos que o americano é melhor em tudo, até mesmo na sua indecência. Já houve governante que disse: “O que é bom pros Estados Unidos, é bom para o Brasil”. Assim, paulatinamente, nosso cotidiano vai sendo pautado pelo uso e costume americano e o anglicismo é uma triste realidade que está a merecer atenção do Congresso Nacional. Até no arraial do Junco, onde as notícias até certo tempo atrás chegavam em lombo de jegue, já se aderiu à moda e dizem que o halloween deste ano vai ser o maior sucesso.    

Todo dia o homem come peixe e ninguém diz nada. No dia que o peixe como o homem, há um verdadeiro rebu e se decreta o fim dos cardumes. Foi o que aconteceu com o bom português De Jesus, um poeta desses d’além-mar que frequentam os sítios de literatura na antiga província e fazem a maior festa com alguns imbecis que acham que todo mundo em Portugal é um Camões em potencial. O coitado confundiu alho com bugalhos, meteu os pés pelas mãos, e, numa crise de delírio novelístico global, sentou a pua no povo provinciano, achando que a arte imita a vida ou vice e versa. Literalmente. E mexeu com nossos brios patrióticos ao nos acusar de termos duas caras, uma para sonegar impostos e outra para invadir nações.

Tal afirmativa de tão ilustre personagem, por pouco não causa uma crise diplomática entre os dois países e, sob pressão da CIA, FBI, e Polícia Federal, nosso confrade foi obrigado a se retratar e seu desvairamento textual foi retirado do ar antes que nossos submarinos e porta-aviões cruzassem o Atlântico.

Mas De Jesus deu provas de ser um perturbado mental.  Nas suas escusas ao povo brasileiro, disse que o culpado de tal incidente foram seus patrícios e que, por tal leviandade dos seus, renegava sua cidadania lusitana e passaria a ser um simples angolano praticante do fundamentalismo islâmico, com direito a se explodir em nome de Alah. Só não disse se em shopping center, cinema lotado ou estação de metrô.

Coitado do vate português, agora, angolano! Achar que as favelas do Brasil são românticas e prósperas como a de Juvenal Antena, que aluno de faculdade particular pode fazer aquela baderna e ficar por isso mesmo ou que brancas e loiras do calçadão de Copacabana ou dos condomínios de alto luxo da Barra da Tijuca irão namorar negros de favela, é sofrer de psicopatia delirante que nem Freud saberia explicar as causas, muito menos os efeitos.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Cineas Santos - Da arte de amar lembranças

                                      
            Em mais de uma oportunidade, já afirmei que não tenho comércio com a morte. Nunca deixei de dormir pensando nela. A bem da verdade, a simples ideia de uma vida eterna me assusta mais que a “indesejada das gentes”. Às vezes me surpreendo repetindo Bandeira: “Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres”. Como não acredito na ressurreição, vivo o que me é dado viver sem maiores ilusões. Para meu uso (não sei se funciona com os outros), inventei um estratagema para jamais perder as pessoas que amo. Eu, simplesmente, nunca as imagino mortas. Guardo dos meus amigos e amigas que partiram as lembranças mais vívidas. Creio ser a maior homenagem que lhes posso prestar.

            Agora, por exemplo, estou pensando no poeta H. Dobal, que nos deixou há quatro anos. Impossível não sorrir das bobagens que conversávamos quando saíamos a passear pela periferia de Teresina nos finais de tarde. De repente, o poeta disparava: “Se não me falha a memória, esse panteísmo está muito bonito”. Uma frase absolutamente  surrealista. Ríamos como se aquilo fosse algo extraordinário. Nas manhãs de domingo, M. Paulo Nunes, Halan Silva, Douglas Machado, Paulo José (às vezes) e eu visitávamos o poeta. Paulo Nunes adentrava o apartamento recitando: “Poeta fui e do áspero destino...” Dobal  emendava de bate-pronto: “Até pensavam que isso fosse meu”, e ríamos da velha e surrada história do poeta medíocre que declamava o famoso soneto de José Albano, não se esquecendo de afirmar que acreditavam ser o soneto composição dele. Comigo, a senha era outro:O senhor é poeta Hildeburgo Dobal Teixeira? Sério, como se estivesse aborrecido, Dobal me recriminava: “Acho que o senhor se olvidou. O funcionário público é Hindemburgo Dobal Teixeira e não Hildemburgo; o poeta é H. Dobal”. Mais risadas. Tomávamos café com o famoso bolo frito da dona Gonçala e falávamos bobagens como adolescentes desocupados. O poeta era um excelente contador de causos, com um incrível senso de humor.

            Das muitas histórias que contava, a mais interessante, para o meu gosto, é esta:  fiscal do tesouro, Dobal chegou a um povoado no sertão do Piauí e procurou um local onde pudesse comer alguma coisa. De repente, viu uma palhoça ostentando uma placa vistosa: “Restaurante Oriental”.  O poeta comeu o único prato disponível: maxixe com carne de bode e farinha. Terminada a refeição, não se conteve. Perguntou ao dono da birosca: “O senhor serve  algum prato oriental?”.  “Não, senhor”, respondeu o cidadão. “Seus antepassados eram orientais?”. “Não, senhor”. “Como surgiu a ideia do nome do seu estabelecimento?”. Sem se fazer de rogado, o sertanejo explicou: “Foi promessa, seu moço”. Diante do espanto do poeta, prosseguiu: “Eu estava passando necessidade, fome mesmo. Aí fiz uma promessa com Nossa Senhora pra ela me orientar. Ela me orientou pra eu abrir este restaurante. Vou escapando, com a graça de Deus”. Impossível lembrar, com tristeza, de uma figura capaz de tiradas como esta. Além dos causos, Dobal deixou sua imensa poesia, alimento de que me sirvo com frequência. Está mais vivo do que nunca.

NOTA DO BLOG:
H. Dobal publicou as seguintes obras:
  • O Tempo Conseqüente (1966)
  • O Dia Sem Presságios (1970)
  • A Viagem Imperfeita (1973)
  • A Província Deserta (1974)
  • A Serra Das Confusões (1978)
  • A Cidade Substituída (1978)
  • Os Signos E As Siglas (1986)
  • Uma Antologia Provisória (1988)
  • Um Homem Particular (1987)
  • Cantiga De Folhas (1989)
  • Roteiro Sentimental E Pitoresco De Teresina (1992)
  • Ephemera (1995)
  • Grandeza E Glória Nos Letreiros De Teresina (1997)
  • Lírica (2000)
  • Gleba dos Ausentes * Uma Antologia Provisória (2002)