sábado, 9 de março de 2013

Cineas Santos - A sucursal do Inferno




         Li não sei onde (a velhice é irreversível) uma notícia que me deixou estarrecido: três rapazes americanos brincavam com seus games de última geração na casa de um deles. Lá pelas tantas, depois de centenas de “mortes”, resolveram pedir uma pizza tamanho família e um refrigerante. Até aí, nada de extraordinário. Quando a campainha tocou, o dono da casa abriu a porta, recebeu a pizza e, em vez de pagar ao entregador, sacou uma pistola automática, de propriedade do pai, e fuzilou o infeliz no local. Fechou a porta e, sossegadamente, foi comer com os amigos. Na delegacia, sem demonstrar remorso, declarou friamente: “Só queríamos saber se gente de verdade morre como nos jogos e nos filmes”. A história, de tão absurda, não comportaria em nenhum texto de ficção, nem mesmo no chamado realismo mágico ou fantástico.

         Muito tempo depois, eu estava numa lan house em São Raimundo Nonato, num horário pouco movimentado. De repente, quatro rapazes adentraram a sala correndo. Como vivemos acovardados pelo medo imperante, preparei-me para o pior. Os rapazes entraram nas baias disponíveis e começaram um jogo no qual, se bem entendi, venceria quem eliminasse mais “inimigos”. A cada indesejável abatido, o atirador berrava como se tivesse marcado um gol numa decisão de campeonato mundial. Incomodado, resolvi sair do local. Antes, porém, perguntei ao cidadão que cuidava do espaço: isso é comum? O rapaz, sem levantar a voz, respondeu: “Todos os dias, quase sempre no mesmo horário”.

         Lembrei-me dessas duas histórias ao ler a entrevista de Bruce Willis na revista ISTOÉ (13/02/13). Bruce,todo mundo sabe, é aquele ator americano, grandão, truculento, que se especializou em filmes de ação, ou melhor, de destruição. A série “Duro de Matar” chega à 5ª edição com a mesma ferocidade das anteriores e mais alguma coisa. Em matéria de explosões e destruição de carros, o ator afirma: ”Acho que batemos algum recorde nesse setor”. Na entrevista insossa – a finalidade é só promover o lançamento do filme – fica-se sabendo do Bruce é um pai cuidadoso com as cinco filhas que tem, uma delas com pouco mais de um ano. Mas o que realmente interessa é o seguinte: o ator afirma, com todas as letras, não acreditar que filmes violentos possam influenciar alguém a tornar-se violento ou a cometer crimes. Quanto ao controle da venda de armas proposto por Obama, limita-se a dizer: “Os EUA deveriam controlar seus loucos”. Não explica como.

         Após ler a entrevista, conversei com um brasileiro, cidadão afável, que mora nos EUA, onde tem uma agência de viagem. Lá pelas tantas fiz a pergunta patética: meu irmão, se, de repente, o governo americano resolvesse recambiar todos os soldados americanos espalhados pelo mundo, o que aconteceria? O cidadão coçou a cabeça, esboçou um leve sorriso e afirmou: “Aquilo se transformaria na terra de Malboro”. Pedi-lhe permissão para discordar. O retorno de milhares de indivíduos que, desde a juventude, foram treinados para matar, transformaria o país do Tio Sam  na mais movimentada das sucursais do inferno. Aí, naturalmente, já não haveria lugar para a série “Duro de Matar”. Ação e violência seriam distribuídas generosamente a todos, sem a necessidade de comprar ingresso.
        
        

sexta-feira, 8 de março de 2013

domingo, 3 de março de 2013

Olha a banana... Olha o bananeiro!




Quando eu era adolescente e sobrevivia por conta e risco do meu suor juvenil para poder ter uns trocados para levar a namorada ao cinema, resolvi ser feirante na feira livre de Alagoinhas. Comprei um megafone fiado, para pagar em não-sei-quantas prestações semanais, e todos os dias apregoava meus produtos:

- Ovo e uva boa de Jundiaí! Aqui, mulher bonita não paga!

A propaganda é alma do negócio, dizia meu tio Edgard, dono de um armazém de secos e molhados e meu principal (e único) fornecedor de mercadorias. Um dia qualquer, como em qualquer dia, pisei em rastro de corno no caminho da feira. Mal comecei a falar no megafone, recebi um safanão no pé do ouvido que fiquei zonzo. Uma senhora esbravejou feito galo de briga:

- Seu moleque safado, eu lhe dei essa ousadia de ficar tirando graça comigo?!
- Eu?!
- Sim... Você!
- Mas o que foi que eu fiz?!
- Me chamando de viúva boa!
- Eu?! Só estou anunciando meus produtos: ovo e uva.
- Você não conhece cacófato não, seu moleque! Diga o contrário: uva e ovo!
- Desculpe moça, mas não conheci seu marido não... como é mesmo o nome dele? Ah! Cacófato! A senhora deve estar me confundindo com alguém.
- Deixa pra lá! Já vi que você é burro mesmo! – disse, e escafedeu-se no meio da multidão de feirantes. E tudo continuou como dantes no quartel de Abrantes:

- Ovo e uva boa de Jundiaí! Mulher bonita não paga!

- Ei! Se é assim, eu vou levar a uva – falou uma jovem, caminhando na minha direção.
- Assim como, moça?
- “Mulher bonita não paga”...

Realmente ela era a “prinspa” que todo marmanjo queria, a nora que a minha mãe precisava, mas eu não podia ficar no prejuízo. Eu e a minha língua! Pensei rápido:

- Ah! Mas quem disse que a senhorita é bonita?
- Meus pais, meus amigos, meus primos, todo mundo que me conhece...
- E você se convenceu disso?
- Foi.
- E se eles estiverem mentindo para lhe agradar?
- Estão não.
- Como é que você sabe?
- Sabendo, ora!
- Então tá certo. Mas, pelo regulamento da barraca, você tem que provar que realmente é bonita. Você já ganhou algum concurso de miss?
- Não.
- Já saiu pelada na Playboy? Ele & Ela? Penthouse?
- Não.
- Então leve esse cacho de uva como prêmio de consolação, porque a simples palavra de pais e amigos não é o suficiente. Tem que ter documento oficial provando a beleza.

Ela fez beicinho de desconsolada, chupou a uva, gostou, comprou uma caixa, e no outro sábado estava lá para jogar conversa fora. E de sábado em sábado essa história só não terminou em casamento porque chegou um gaúcho de três facas vendendo uva mais gostosa do que a minha.


A Sétima Arte das Minhas Recordações




Em um cinema no interior de Pernambuco era assim: havia um cidadão que só pagava ingresso se o artista não morresse. Na Sexta-Feira da Paixão o prejuízo era inevitável.

Nesse mesmo cinema, o filme da Paixão de Cristo era anterior ao próprio Cristo. De tanto cortar e emendar, emendar e cortar a película, não era mais possível saber a sequência. Na última vez que assisti, o filme começou com Cristo pregado na cruz e terminou com o Anjo do Senhor aparecendo a Maria.

Pensei que o povo ia botar o cinema abaixo, mas todos saíram aplaudindo e chorando de emoção, talvez ungidos pelo espírito da Páscoa.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Cineas Santos - Roma locuta



                               
         O papa Paulo VI enfrentava sérios problemas para apascentar seu numeroso rebanho. Millôr Fernandes, sempre certeiro, disparou: “Se eu fosse o papa, vendia tudo e ia embora”. Pena que o filósofo do Méier não tenha vivido o bastante para ver Bento XVI, no dia 11 de fevereiro de 2013, anunciar que vai pegar o boné , o cajado e saltar fora da “Barca de Pedro”. Razões? Cansaço, velhice, problemas de saúde... Fez o comunicado em latim para que os anjos, antes dos humanos, tomassem ciência de sua decisão radical. Na noite daquele dia, um raio riscou o céu do Vaticano, “manifestação do Espírito Santo”, afirmam alguns.

         Não são poucos os que veem na renúncia de Bento XVI  um gesto de suprema humildade, de desapego ao poder, de responsabilidade. Muitos, porém, o acusam de fraqueza, debilidade e até covardia. A jornalista Bárbara Gancia, por exemplo, em artigo publicado na Folha, entre outras gentilezas, afirmou: “E o poder simbólico da resiliência? Que mensagem de perseverança Bento 16 nos deixa? Muito conveniente exigir todo tipo de sacrifício do fiel e depois exibir publicamente tamanha frouxidão”.

         Até que o Espírito Santo indique o novo pontífice, muita água vai rolar sob a ponte. As teses conspiratórias já estão em curso. As intrigas palacianas, as transações escabrosas, os interesses mais escusos, tudo isso renderá livros, documentários e filmes, o que é perfeitamente explicável: ninguém renuncia ao “Trono de São Pedro” impunemente. O último a fazê-lo, Celestino V (1294) teve de passar uma temporada na antessala do inferno de Dante Alighieri antes de ser canonizado por Clemente V em 1313.

         Conservador, erudito e sem nenhum carisma, Bento XVI será lembrado como um intelectual que se esforçou para corrigir os rumos de uma igreja marcada por escândalos de toda ordem: da pedofilia à lavagem de dinheiro. Sua renúncia, no entender de alguns vaticanistas, poderá acelerar o processo de oxigenação de uma instituição marcada por gritantes contradições: tem sido leniente com os crimes sexuais praticados por seus pastores, mas intolerante até com uso de preservativos e contraceptivos por parte dos fiéis. Há muitas questões abertas; a do celibato dos padres é a mais visível delas.

         Vaticanistas e simples especuladores acreditam que, para o bem da igreja, o próximo papa deve ser latino-americano ou africano. Resta combinar com o Espírito Santo que, parafraseando Murilo Mendes, baixa onde quer. Sem poder nenhum nem mesmo o de opinar, me limito a rogar  ao Paráclito para que escolha o ganense (ou ganês) Peter Turkson. Por amor à verdade, não o faço desinteressadamente: puxo a brasa para a minha sardinha, Com Obama na Casa Branca, Turkson no Vaticano e Joaquim Barbosa na Presidência do STF, poderei bater no peito e gritar: É nóis na fita, mano!
        

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Luís Pimentel - Questão de opiniães


     “A literatura me levou ao Colégio Militar. E foi esse colégio que me levou à literatura”, disse outro dia, numa entrevista, o peruano Mario Vargas Llosa. O grande escritor contava que o pai, assustado com os seus interesses lúdicos e pouco viris, temia que o filho, dados às artes e à poesia, se tornasse gay. Resolveu interná-lo em ambiente onde prevaleciam o excesso de disciplina e a ausência absoluta de liberdade. Para combatê-los, o hoje Prêmio Nobel escrevia sem parar. O tiro de canhão saiu pela culatra (ou “culetra”, com o pedido de perdão pelo trocadilho infame).

       Lembra-me um pouco a história (ou anedota) do Serginho, que quando menino vivia desenhando e costurando lindos vestidinhos de boneca. Os pais não permitiam, porque “desenhar e costurar vestidos era coisa de gay”. Na adolescência, Serginho queria ser bailarino. “Nem pensar! Isso é coisa de gay”. O mesmo disseram mais tarde, quando ele falou que queria fazer um curso para ser cabeleireiro. Resultado, hoje Serginho tem mais de trinta anos, é gay, e não tem uma profissão sequer para se sustentar. 

     A razão é simples: Nada é só isto ou só aquilo, porque como descobriu o inquieto Menino maluquinho, do inquieto e brilhante Ziraldo, “todo lado tem dois lados”. Livro infantil que publiquei há algum tempo, chamado História de dois lados, tem um verso que diz: “Esta história tem dois lados: um que aponta prum lado, outro que aponta pro outro / O lado direito é destro, o lado esquerdo é canhoto”. Falando para crianças numa escola que o adotou, ouvi essa pergunta:

     – Mas o lado esquerdo também pode ser destro e o direito o canhoto. Não?

     Fiquei olhando para o menininho, que olhava para mim com a maior cara de sacana, expressão de “agora te peguei”, e respondi o que me veio à cabeça na hora:

     – Acho que sim, cara. Depende do ângulo de quem está olhando.

     Daí, formulei mais uma tese na vida. A de que tudo no mundo depende do olhar, ou da intenção de quem está olhando (sejam os pais do Vargas Llosa, do Serginho ou do leitor do Maluquinho). E me lembrei do bom e velho Guimarães Rosa, em seu Grande sertão: “pão ou pães, é questão de opiniães...”

     Pois e não é?