quarta-feira, 21 de maio de 2014

Cineas Santos - Facilita que eu leio



             Repetindo Euclides da Cunha, Machado de Assis é, antes de tudo, um forte. Suportou a indiferença de boa parte dos leitores de sua época. Resistiu estoicamente à má-vontade de alguns críticos obtusos que o consideram “inferior a Aluísio de Azevedo”. Ignorou a “homenagem” corrosiva e oportunista que lhe prestou Sarney, quando presidente, ao imprimir sua efígie numa cédula de que ninguém se lembra mais. Resistirá à investida dos que querem torná-lo palatável? Só o tempo dirá.

          Entenda a natureza do projeto em curso: uma escritora denominada Patrícia Secco (alguém já leu alguma obra dela?) resolveu “simplificar” a obra de Machado de Assis para,digamos, torná-lo mais palatável ao gosto dos jovens. Deu na Folha: "Entendo por que os jovens não gostam de Machado de Assis", diz a escritora Patrícia Secco. "Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso." Ela simplifica mesmo: Patrícia lançará em junho uma versão de "O Alienista", obra de Machado lançada em 1882, em que as frases estão mais diretas e palavras são trocadas por sinônimos mais comuns (um "sagacidade" virou "esperteza", por exemplo". 

          A coisa não para por aí: a tal escritora está realizando o projeto com o aval do MINC por meio das leis de incentivo à cultura. A iniciativa era bem mais ambiciosa: contemplava Aluísio de Azevedo, Manuel Antônio de Almeida, José de Alencar, etc. Candidamente, a escritora afirma: "Montei um plano com um título de cada autor clássico para a gente tentar fazer uma versão”.

          Durante muito tempo, eu me perguntei: estaria em curso um projeto de emburrecimento dos jovens ou seria apenas uma espécie de leseira geral? Hoje, não tenho dúvidas: o projeto existe e tem o aval das autoridades competentes. Vejam bem: não bastasse a investida dos meios de comunicação de massa (notadamente rádio e TV), que privilegiam o vulgar, o  grosseiro, a violência, chegou a vez de a escola privilegiar o rasteiro por meio de obras literárias. Uma escola que nivela por baixo deseduca e compromete a formação do educando.

          Essa ideia de “atualizar” autores não é nova. Na década de 1960, a revista Seleções trazia versões “condensadas” de clássicos da literatura americana. Pode-se argumentar que, no caso, havia  um forte componente ideológico por trás da investida. Para os americanos, o que importava era popularizar os escritores de lá. Nossos “irmãos do norte” não brincam em serviço.

          “Simplificar” obras de autores estrangeiros é discutível, mas explicável, uma vez que as traduções, com honrosas exceções, já descaracterizam o estilo dos autores. Mas verter para o “vulgarês”   textos de brasileiros é crime de lesa-autoria. Se “o estilo é o homem”, como queria Buffon, Machado só é Machado de Assis pelas peculiaridades da sua escrita. O velho Bruxo do Cosme Velho  nunca foi um contador de histórias,  e sim, um construtor de linguagens. O papel da escola deveria ser estimular o aluno a mergulhar no universo machadiano para, entre outras coisas, enriquecer  o vocabulário. 

          Não quero ser pessimista – minha história de vida não me permite sê-lo – mas confesso  desencantado: estamos perdendo a batalha para a burrice galopante que assola o país. Vôte!
         
         
         

domingo, 11 de maio de 2014

Flor Mamãe, quem se lembra?


Quem foi mãe ou foi filho nos anos 60 e início dos 70, sabe da overdose que as rádios nos davam com a voz melosa, quase chorosa, de um garoto chamado José Leão na semana do dia das mães. Sim, turma jovem, nos anos sessenta também existia o dia das mães, não com tanto consumismo assim, mas existia. As mães de antigamente adoravam ligar o rádio nas ondas médias e ouvir o garoto chorar “Flor Mamãe. 


Não me perguntem que fim levou esse garoto. Para mim, ele tinha morrido na era do CD, mas um belo dia o meu saudoso amigo Edécio Lopes chegou à minha casa com um LP do José Leão e me pediu para remasterizar em CD. Eu nem me lembrava mais da música e quando o disco começou a girar na vitrola, as lembranças afloraram e me vi garoto no meio de um coral de mães.


Edécio Lopes, radialista das antigas, precursor da era do rádio nas Alagoas, mantinha seu programa ao velho estilo da boa MPB e nas datas festivas ele gostava de fazer as suas homenagens. Era campeão de audiência. Infelizmente ficou devendo às mamães antigas a recordação dos tempos de outrora: morreu meses antes da data.


Assim, trago à baila a tal Flor Mamãe e se você for desse tempo, vai recordar; se não, vai ficar sabendo que naquela época as mães se contentavam mais com a poesia e com a música do que com as comidas gordurosas de churrascaria.

sábado, 10 de maio de 2014

CINQUENTA ANOS DE SOLIDÃO


“O sul acaba no Paraguai"
 Antonio Torres, in: Essa Terra

Não me lembro o mês nem o dia. Devia ser janeiro porque era mês de férias. Podia ser qualquer dia da semana, menos domingo ou segunda-feira: não havia missa nem feira. Domingo era dia de descanso e reza. Muita reza para Nossa Senhora do Amparo e todos os santos; segunda-feira acontecia os ajustes de contas entre patrões e empregados, credores e devedores, donos de bodegas e bebedores do “pindura”. Só os feirantes partiam em seus paus-de-arara ruidosos em busca de novos mercados e retornavam na segunda-feira seguinte, abastecidos de novas mercadorias.

Acordamos na hora dos pássaros, mas nesse dia não houve reza da Ladainha de Nossa Senhora, conforme o costume da casa. Em vez de kyrie eleison, discussões, apelos e uma sentença definitiva de nossa mãe: “Não pari filhos para morrer na ignorância do cabo da enxada.” No calor da contenda, ficamos sabendo o que nos esconderam durante a agitação da semana: estávamos de partida para Alagoinhas, cidade a menos de cem quilômetros do Junco, e que era uma ida sem volta, definitiva, e somente a passeio veríamos novamente a cidade fundada por nossos tataravôs.

Não me lembro se fiquei contente ou se chorei. Lembro-me que uma vez, em romaria para a cidade de Candeias, passamos por Alagoinhas e me assustei com o tamanho da cidade. Havia um movimento intenso de automóveis pelas ruas e o povo andava apressado, como se levasse fogo a alguém. Guedes, meu irmão mais novo, quando inquirido por mim, disse não se lembrar da cidade. Na época ele era muito pequeno, quase um bebê, e não devia se lembrar mesmo.

Na pequena cidade havia apenas três carros: o Jeep dos Mandioca, a Rural Willis da Prefeitura e o caminhão de seu Dema. Era, o caminhão, o transportador de ilusões, o realizador de sonhos, o objeto do desejo quando subia a Ladeira Grande rumo ao desconhecido.

O dia não amanhecera de todo e o caminhão roncou em nossa porta da casa da rua. A agitação aumentou com a chegada de nossos vizinhos, primos, amigos e tios; até nosso avô materno resolveu aparecer para a despedida. Rostos sonolentos e tristes perambulavam dentro de casa ajudando no bota-fora. Mudança de sertanejo não há muito que se carregar: uma rede, uma caneca de café e um papagaio. Algumas vezes, um cachorro com nome de peixe.  Mas nós tínhamos algo além: três camas de mola com colchões de palha de junco, colchas de retalhos, um jogo de sofá, presente do genro Arnaldo, um amontoado de panelas de alumínio e cerâmica, e uma cristaleira, a menina dos olhos de nossa mãe. Era tudo que se tinha e parecia ser muita coisa, porém não encheu meio caminhão. O Junco era um ponto no mapa da miséria, não comportava certos luxos.

O crepúsculo matutino se dissipava no horizonte quando seu Dema buzinou em chamada de embarque. Tinha pressa em partir por causa do calor na estrada. Mais ainda para se livrar do chororô dos que partiam e dos que ficavam. A nossa mãe, embora de coração partido, não arredou um milímetro em sua decisão: apenas beijou o nosso irmão Guidório, que ficaria com o nosso pai até o fim do ano letivo; concluiria o 5º ano primário e nas férias iria para Alagoinhas prestar os “Exames de Admissão ao Ginásio”.

Ainda me lembro da cara de choro de Guidório, antevendo uma saudade que nos uniria para sempre tal qual irmãos siameses. Até aquele momento o nosso choro havia sido apenas das surras da nossa mãe quando nos flagrava em traquinagem. As lágrimas daquele instante tinham uma dor mais profunda, aguda, dilacerante. Arranhava as entranhas e sufocava a alma. Foram as primeiras de tantas outras; era o mundo cobrando o seu preço por nos ter parido.

No pé da Ladeira Grande o caminhão acelerou para pegar embalo na subida. O motor roncou medonho, perturbando a sinfonia e harmonia da Natureza, fazendo voar assustados os bem-te-vis, canários-da-terra, pintassilgos e arapongas em confabulação na beira da estrada. Além da ladeira, uma revolução se fazia. Homens e ideais se digladiavam em embate de morte. Aquém, um homem lutava bravamente para não marejar os olhos. Em sua alma havia uma revolução maior do que todas as revoluções: a de ver seus sonhos, desejos e afetos se dissiparem na poeira da estrada. Depois que o caminhão fosse tragado pela linha do horizonte nada mais seria como antes.

A pinga de outrora na bodega de Nelo para molhar a garganta antes de ganhar o caminho da roça com os alforjes cheios de mantimentos para a prole que o aguardava, agora servia para desmanchar o nó que lhe sufocava. O nó da amargura. O intrincado nó da solidão. Mal desconfiava que um dia um filho seu escreveria contando aquela sua angústia e colocaria palavras não proferidas, não que não quisesse, mas por sentir vergonha da vontade de gritar ao mundo logo cedo da manhã: “Benditas são as mulheres. Elas sabem chorar”¹.

Ao subir a Ladeira Grande, pela primeira vez pude ver o Junco lá embaixo: minúsculo, quieto, triste. Os primeiros raios de sol iluminaram a torre da igreja desafiando o espaço: imponente, impávida, querendo chegar até Deus. Uma rajada fria de vento sudeste bateu em nosso corpo em cima da carroceria do caminhão, deixando os pelos da pele eriçados. A torre da igreja sumiu entre os galhos de calumbi e olhamos para frente. O horizonte se descortinou em um azul infinito, assim como infinitas se fizeram a nossa saudade, as necessidades e humilhações no novo mundo, que nos recebeu com o mesmo sentimento de desconfiança com o qual se recebe os estrangeiros.  

¹TORRES, Antonio. Essa Terra. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.67. 

Dia das Mães - Luís Pimentel



     No ano retrasado ele veio, ano passado não. Este ano, só Deus sabe se vem. Pensam que fico esperando? Espero que nem aquela porta espera, aquela mesa espera, aquela planta ali. Não faz nenhuma diferença ele vir ou não vir, com as tolas recomendações de sempre, as mesmas e falsas preocupações.

     Teve um ano que trouxe o filho. E o filho veio com a namorada. Dois jovens abobalhados, olhando para as paredes descascadas com curiosidade mórbida, me encarando com nojo e repulsa. Não aceitaram a água nem o guaraná que ofereci, com certeza por acharem que os copos não são lavados. Meu filho ainda aceitou a cerveja, talvez por saber que o álcool desinfeta tudo.

     A mulher não vem nunca com ele. Nenhuma falta me faz. Fico dispensada dos salamaleques, de fingir naturalidade, falando de doenças ou de novelas. Tão bem criado, tão mal casado. A última vez que ela apareceu aqui, veio direto do salão de beleza e manteve os dedos esticados, durante os minutos que durou a visita de médico, para não encostar a unha em nada. Meu filho mostrou o quarto onde vivia quando rapaz solteiro. Ela riu, cínica e sonsa. “Como é que alguém pode viver num buraco desses?”, devia estar pensando.

     Barulho no portão, só pode ser ele. Lá vêm flores murchas, presente ordinário, casaco de lã ou meias de nylon, garrafa de vinho de padaria, adocicado e enjoativo, pacotinho de torradas que eu não comia nem no tempo que tinha dentes. Vai se sentar no sofá que está forrado desde cedo e estirar as pernas no banquinho que só sai do quarto quando ele vem aqui. Claro que não vai demorar, pois tem compromisso com o filho ou com a mulher. Pouco se me dá que venha ou não venha, fique ou não fique.

     Não era ele no portão. Apenas um vendedor de frutas. Pela hora, duvido que ainda apareça aqui. Melhor dobrar e guardar o lençol novo que coloquei no sofá, não quero que pegue poeira. Melhor devolver para o quarto o banquinho de estirar as pernas. Ano que vem pode precisar.




sexta-feira, 9 de maio de 2014

Quando o assunto chegou ao Machado - Susana Ventura*



A crônica abaixo, da escritora Susana Ventura, vem ao encontro dos meus pensamentos a respeito da notoriedade instantânea que deram a uma escritora sem muito brilho, por conta da necessidade que algumas pessoas têm em dar opinião a respeito de tudo e de todos sem sequer saber do que se trata.
Entendeu uma dessas pessoas que ganham a vida imitando a arte dos outros, de reescrever Machado de Assis. De início, falou que iria atualizar seis verbetes, mas não foi bem isso que ela fez: tratou de reescrever o conto O Alienista, de Machado de Assis, e isso foi o bastante para incendiar os sites sociais e o correio eletrônico mundo afora, cada um com opinião mais estarrecedora que outra. Por causa dessa inevitável compulsão de se compartilhar tudo sem se informar a respeito, esta semana mataram uma inocente.

Quando o assunto chegou ao Machado
 
A decisão quanto ao rumo da coluna de hoje foi deixada aos leitores na semana passada. O voto apontou que falar sobre literatura para crianças e jovens era a escolha. E nisso estávamos quando o ‘caso Machado de Assis facilitado’ surgiu. E não é que uma coisa vai dar na outra?

Pois vai, sim, e não é esforço de cronista tentando ‘ajeitar’ o caminho da escrita para fazer a água vir dar ao seu moinho.

Ao surgir o caso, via professor Alcides Villaça no Facebook e depois noticiado pela imprensa escrita, esta cronista deparou-se com o nome de uma antiga conhecida: a autora que diagnosticara que Machado era ‘difícil’, se dispusera a facilitá-lo e já tinha feito o livro que seria lançado de maneira bombástica no Vale do Anhangabaú.

Pois bem, se prestássemos atenção na produção de literatura para crianças e jovens dos últimos anos e lêssemos o que nossas crianças trazem para casa, grande parte dos ‘espantadíssimos’ com a polêmica teria se assustado bem antes, e talvez já tivesse se manifestado.

Há uns quatro anos ‘estava linda Inês posta em sossego’ na cadeira do salão de cabeleireira de seu bairro, quando o barbeiro que corta cabelo na cadeira ao lado comentou:

- ‘Deram um livrinho lá na escola da Vanessa hoje. Bonitinho, viu? Você quer dar uma olhada e me dar sua opinião?’

(Sim, e ele faz isso sempre. Mostra os livros de literatura, conta dos que ela traz da biblioteca, pergunta sobre compras de livros em ocasiões festivas. Trocamos impressões. É pai que não estudou muito, mas que acompanha de perto os dois filhos na escola pública, a menina no Fundamental).

Então, ele me passou um belo livro infantil, impresso em 4 cores, papel couché, com as ilustrações refinadas de uma artista plástica conhecida, projeto gráfico interessante.... Prometia!

Ali mesmo  mergulhei no livro. E saí do mergulho arrasada. O livro - patrocinado por um fabricante de amido de milho - contava com um dos textos mais lamentáveis em que eu já pusera meus olhos. Um verdadeiro horror. Baseada na necessidade de falar do amido de milho, a autora cometera uma história mal escrita, com personagens incoerentes, enredo inverossímil e que, em termos de linguagem, era de uma indigência única.  

Fiquei triste mesmo. Aparentemente tão ‘boa intenção’ para tão lamentável resultado. Marquei o nome da autora  e, dias depois, fui conversar com uma editora da área de literatura infantil:
 - ‘Ih, ela de novo? Ah, é sempre a mesma coisa, ela faz livros para empresas, sempre mal escritos, um horror, não é? Para renúncia fiscal, sabe? Capta dinheiro via lei de incentivo...’

Adivinhem, caros leitores? Sim, é a mesma autora. Só que agora ela chegou ao José de Alencar e ao Machado de Assis.  E por isso foi notada. Nem vou perguntar como continuamos a conversa, porque esse papo vai longe!

*Susana Ventura é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, professora do Ensino Superior e autora de ficção, ensaios e obras para formação de professores.