sexta-feira, 8 de abril de 2011

Juca Kfouri - Uma derrota que jamais esqueceremos

Ontem o Brasil sofreu uma das maiores derrotas de sua história de mais de 500 anos.
Que Maracanazo, que Sarriá, que nada!
Realengo é o nome da tragédia, tragédia de verdade.
O Brasil perdeu 12 crianças estupidamente.
Quem sabe se perdeu um Pelé, uma Maria Esther Bueno, uma Hortência.
Ou uma outra Elis Regina, uma Dilma Rousseff.
Sabemos que perdemos uma Ana Carolina Pacheco da Silva, uma Bianca Rocha Tavares, uma Géssica Guedes Pereira, Karine Lorraine Chagas de Oliveira, uma Larissa dos Santos Atanázio, outra Laryssa, esta Silva Martins, uma Luiza Paula da Silveira, uma Mariana Rocha de Souza, uma Milena dos Santos Nascimento, uma Samira Pires Ribeiro, um Rafael Pereira da Silva e mais um menino cujo nome ainda não foi revelado.
Todos entre 12 e 15 anos.
Doze famílias choram hoje neste manhã que não tem bom dia a perda de seus filhos, de seus netos, de seus irmãos.
Dez garotinhas e dois garotinhos.
Uma desgraça que não permite falar de mais nada.

Comentário para o Jornal da CBN desta sexta-feira, 8 de abril de 2001.


quarta-feira, 6 de abril de 2011

A Fuga


O médico-cirurgião retirou a chapa radiológica do envelope, examinou-a cuidadosamente usando a luz da janela, recolocou-a de volta no envelope e diagnosticou:

– O raio-X mostra claramente que houve uma redução não anatômica do cotovelo e por causa disso seu irmão não consegue articular o braço normalmente.
– Mas Dr. Alberto, me diga uma coisa: uma cirurgia restabeleceria o movimento do braço?
– Veja bem: como já se passou muito tempo, a cirurgia se torna muito arriscada e não garanto sucesso. Temos que abrir o braço na região do cotovelo, fazer raspagem nos ossos, depois encaixá-los em seu devido lugar. Mas, repito: não garanto sucesso.
– Quais as chances?
– Isso, infelizmente, não sei lhe responder. Por outro lado, como ele é muito novo, a chance de recobrar o movimento fazendo fisioterapia é bem maior.
– Não, doutor. De onde viemos não há como fazer fisioterapia. Prefiro arriscar a cirurgia. Marquemos a data, pois preciso viajar pra São Paulo. Minhas férias estão acabando.

Da antessala do consultório eu ouvia toda a conversa do médico com o meu irmão. Tinha sete anos de idade e ainda não sabia diferenciar o confiável do perigoso. Se o meu irmão achava que o médico deveria me operar, bem achado estava. Mesmo porque, de onde vim, menino e tamanco ficavam debaixo do banco.

Era um final de tarde e pela janela do consultório assisti deslumbrado ao pôr de sol na Baía de Todos os Santos. Bahia de todos os encantos. O mar sôfrego chupava o sol em desejo imoderado e as águas tranquilas espelhavam a vermelhidão do céu anil, muito mais bonito que o arrebol atrás do Cruzeiro dos Montes, cujo horizonte rúbeo enlevava as almas rudes e conduzia os céticos à presença divina.

No caminho do consultório para a casa onde nos hospedáramos, no Terreiro de Jesus, havia uma praça muito bonita, de onde se via a Baía de Todos os Santos. A Praça do Poeta, disse meu irmão. Existiam outras praças, mas não eram tão bonitas quanto aquela. Perto de casa havia uma igreja toda de ouro e outra chamada de catedral basílica. Sair da roça diretamente para a capital foi um choque cultural imensurável. Sequer imaginava haver vida além da Ladeira Grande, o caminho de saída ou de retorno da pequena cidade, o limite entre o real e os sonhos dos do lugar. Não conhecia água encanada, dormia à luz de candeeiro, acordava mal o sol raiava para rezar a Ladainha de Nossa Senhora, andava em garupa de jegue e agora estava ali, no coração da velha Cidade da Bahia, e tudo era novo, tudo era um deslumbramento total. No dia anterior meu irmão me levou para conhecer o mar. Não consegui articular palavra diante daquela visão extraordinária. Léguas e léguas a perder de vista de um tapete azul-marinho. O meu irmão me contou que existiam milhares de mares como aquele e que eles se uniam e davam a volta ao mundo. Como era possível tanta água num lugar só e gente morrendo de sede em outros? Na minha terra, andava-se quilômetros por um pote d’água. O padre, que obrigava o povo a subir de joelhos a ladeira íngreme e encascalhada do Cruzeiro dos Montes em remissão dos pecados, devia saber que Deus privilegiou alguns nas Suas sublimes escolhas.

Chegando a casa meu irmão me chamou a um canto e me falou que precisaria retornar a São Paulo e que eu ficaria aos cuidados dos donos da casa, que eram seus amigos desde os tempos de foca no Jornal da Bahia. A cirurgia aconteceria duas semanas depois, que não me preocupasse não, ia dar tudo certo, confiava no médico, e que no final do mês seu amigo Giese se encarregaria de me levar embora.

Acordei no dia seguinte e não encontrei meu irmão, como nos dias anteriores. “Viajou logo cedo, no escuro”, me disse D. Maria, sorriso bondoso nos lábios. Ela passara de nossa anfitriã a responsável direta por mim. Disfarcei a apreensão de me ver sem nenhum parente em terras alhures, mas, com o passar do tempo, não conseguia disfarçar a tristeza pelos dias iguais que vivia. A casa era um puxadinho no fundo de um sobrado no Terreiro de Jesus, reduto de velhos marinheiros, proxenetas e putas. Dois quartos minúsculos e uma sala que mal cabia a mesa de jantar. O sofá ficava do lado de fora, na varanda sombria, protegida por um muro espremido entre dois velhos prédios. O bem mais valioso da casa era um rádio de pilha que seu Petrônio, o marido de D. Maria, levava todos os dias para o trabalho. No portão, um letreiro avisava tratar-se de casa de família.

Havia mais duas mulheres na casa: Lucy e Judith, filhas de D. Maria. Ambas trabalhavam no comércio da Avenida Sete e, como seu Petrônio, saíam cedo e voltavam à noite, reclamando do cansaço. Somente D. Maria não trabalhava fora e eu passava o dia remoendo saudades pelos cantos. Não havia nenhuma criança para brincar, nem podia sair à porta de casa sozinho. À noite, depois do jantar, as duas mocinhas me contavam histórias e me faziam afagos até dormir em uma cama improvisada na sala, desfazendo a carranca que aumentava com o passar dos dias.

No domingo levaram-me a passear. A solidão era tanta que a Velha Bahia perdera o encantamento. Subir e descer o Elevador Lacerda, andar de bonde ao léu, admirar o pôr do sol da balaustrada da Praça do Poeta já não me fascinavam mais. Ao retornarmos a casa, pensei nos meus irmãos Guidório e Badego, o primeiro, mais velho, o segundo, mais novo que eu. Que estariam fazendo àquela hora? Será que sentiam a minha falta do mesmo jeito que eu sentia a deles? Súbito, ouvi os apelos de minha mãe ecoar na memória:

– Desça dessa jega, menino! Se lembre que seu primo Jucinaldo caiu de uma e quebrou o braço!

Preocupação de mãe é vaticínio. Entre o falar e o cair foi só piscar e coçar. Badego meteu um pau no cu da jega e ela empinou, se contorceu, deu uma upa e fui ao chão, batendo o cotovelo numa pedra. Uma dor aguda e o braço balançando, sem obedecer ao meu comando. Ouvindo os gritos de dor, minha mãe adivinhou o sucedido e mandou Guidório chamar o farmacêutico na rua. Era o único que encanava braço nas redondezas. Hospital, só em Alagoinhas, cem quilômetros além da Ladeira Grande.

O farmacêutico chegou montando um jegue. Caindo de bêbado. Ele e o jegue. Mesmo assim encanou o meu braço, improvisou uma tala com pedaços de ripa, fez uma tipoia com um pedaço de toalha e foi embora, sem receitar um analgésico ou anti-inflamatório. Um mês depois, quando a tala foi removida, minha mãe compreendeu que não se deve confiar serviço ortopédico a um alcóolatra, principalmente em se tratando de luxação: o meu braço não dobrava no cotovelo. Segundo o Dr. Alberto, o encanamento mal feito causou uma sub-luxação, mas a minha mãe nunca soube disso. Para ela, era braço mal encanado mesmo.

Depois do passeio, Lucy, a filha mais nova de D. Maria, me chamou a um canto, perscrutou o ambiente à caça de algum ouvido indiscreto, e depois falou baixinho, quase em cochicho:

– Morro de pena de lhe ver nessa tristeza sem fim, Tonico. Você deve sentir muita falta de seus irmãos e seus amigos, né? E ainda falta uma semana pra você ser operado. Parece pouco tempo, mas quando o sofrimento é muito a dor paralisa as horas. Juntei um dinheirinho e se você aceitar eu lhe dou pra você ir embora pra sua casa.

Olhei-a num misto de espanto e contentamento. A esperança renascia naquele oferecimento. Estaria falando sério ou apenas me provocando?

– Você fala a vera? Você me deixaria ir embora?
– Deixaria, não; deixo. Se eu lhe ensinar como pegar o trem para Alagoinhas, você sabe chegar em casa sozinho?
– Em casa não, mas em Alagoinhas tenho alguns parentes. Também, na vinda, dormimos na casa da mãe de Giese, o amigo do meu irmão que nos trouxe até aqui. Não sei o endereço, mas meu pai fala aos amigos que fica na Rua do Cruzeiro, perto do Jardim dos Macacos. Na estação de Alagoinhas eu pergunto. E a casa da mãe dele eu sei qual é.
– Então vamos fazer assim: amanhã eu venho pra casa meio-dia, digo que vou dar uma volta com você, lhe deixo no bonde que vai pra estação de trem da Calçada, e de lá você segue seu caminho. Já me informei na estação: o trem sai às quatro horas da tarde e chega em Alagoinhas por volta das sete horas da noite. Combinado?
– Combinado!

No outro dia, saciada a fome do meio-dia, arrumei a minha maleta e passei às escondidas a Lucy. Ela saiu furtivamente e retornou, instante depois, sorridente e sem a maleta. Puxou-me pela mão e avisou à mãe que iríamos dar um passeio. Acenei um adeus tímido a D. Maria e apressei os passos antes que o remorso pela minha saída sorrateira me impedisse de levar adiante a minha fuga.

Na rua, pela primeira vez, desde a minha chegada, senti o contraste entre o deslumbramento e a realidade. Vi a imponência da Igreja de São Francisco no final da rua e confidenciei a Lucy minha incompreensão em ver tanto ouro dentro da igreja e a grande miséria do lado de fora. Ela disse que também não entendia a diferença entre a humildade que os padres pregavam e a ostentação que a Igreja praticava.

– É por isso que sou de Oxalá e um dia você vai saber o que quero dizer – completou.

Caminhamos de mãos dadas em direção do Elevador Lacerda, onde nossos destinos se separariam para sempre. Os olhos marejados de Lucy no abraço de despedida foram a única imagem da Cidade da Bahia que conservei na parede da memória.


domingo, 3 de abril de 2011

Maurício Melo Júnior - A infância invisível

Foi Jorge Amado quem primeiro me deu notícia deles.

Era um romance meio proibido, apesar de sua longa idade. Beirava os quarenta anos quando a década de 1970 estava pelo meio, ainda era lido com olhos de escândalo e seu texto somente falava de uma tensa questão social. Pelo sim pelo não foram as palavras que eu podia ler sem medos ou restrições – não me lembro de meus pais terem me proibido nenhum leitura; eu que cheguei, por influência de Tim Maia, a ler O Universo em Desencanto, bíblia de uma seita meio hippie de então –, pelo sim pelo não, dizia, foi Jorge Amado e seu romance que levaram meus olhos a enxergar a infância invisível que circundava minha quase adolescência.

Eram meninos afoitos e libertos, mas não tinham o heroísmo vadio dos personagens jorgeanos e moravam em Palmares. O líder do grupo chamava-se Calango, um homossexual ingênuo, com voz de comando e uma indizível capacidade de revestir todas as atitudes com uma capa lúdica. Gostava de nos mostrar como batia a carteira dos matutos e roubava o relógio dos cidadãos.

A rigor não temia nada, só Luiz Guarda, um policial arbitrário que costumava matar todos os ladrões que encontrava. E enquanto não se deparava com seu destino fatal, Calango se divertia correndo e brincando nas ruas da cidade. Poderia ter presença no romance de Jorge, mas seu tempo era outro, e os capitães da areia me parecem mais reais que a realidade vista de minha janela adolescente.

Não sei o fim de Calango. Acho que quando sai de Palmares ele já não andava pelas ruas. Foi pro Recife? Morreu? Ajustou-se? Impossível saber. Sua invisibilidade ganhou densidade e ele não pertencia ao grupo de meninos que tentava nos arrancar algum trocado enquanto bebíamos pelos bares da Boa Vista. E sempre duvidávamos de seus apelos.

Certa feita um deles se achegou à mesa pedindo dinheiro para comprar comida. Desconfiando de seu pedido, oferecemos sanduiche. E o menino devorou. Agradeceu olhando com olhos súplices para nosso petisco. Oferecemos outro sanduíche. Devorou três ao todo.

Em sua invisibilidade tinha fome e nenhum futuro.

Seus pares espalhavam-se por todos os cantos.

Conheci um deles em Matriz de Camaragibe. Era prestativo, carregava as compras de quem se dispunha a dar-lhe algumas moedas na feira da cidade. Como o morador do cais da Bahia, Perna-Seca, tinha um perna comida pela poliomielite, mancava e chamava-se Pé-de-Bombo. Mais do que viver, brincava pelas ruas escaldantes da cidade, pela praça Bom Jesus, um descampado onde nas festas de Ano-Novo se armavam barracas de madeira para as funções da pândega, os jogos e as bebidas.

Dia dois de janeiro, passada a procissão e fechadas as barracas, sobravam as armações de madeira. Liderando um bando de cangaceiros lúdicos, Pé-de-Bombo se encarregava de derrubar os restos. Aquelas estranhas ruínas que ainda recendiam a madeira nova caiam, uma a uma, na força lúdica do lazer dos meninos que logo sumiam, iam brincar noutros terreiros, deixando aos garis a necessidade de recolher os novos restos.

Eu que os aprendi a olhar nas páginas da literatura, sem cheiros desagradáveis e com o futuro trágico ou glorioso descrito no final do volume, ainda me surpreendo.

Ceio que o precursor de todos eles, pelo menos nos livros, foi Leonardo, o herói de Manuel Antônio de Almeida, das Memórias de um Sargento de Milícia. Era no tempo do rei Dom João VI que ele reinava no Rio de Janeiro. Abandonado por pai e mãe, vivia entre a liberdade das ruas e o pouco rigor da casa do padrinho, o barbeiro que “arranjou-se”. O mundo era tão outro que das ruas Leonardo também “arranjou-se”.

De outras leituras – dos jornais, das revistas – vejo crescer a invisibilidade dessa gente e os alertas vêm de longe, muito longe.

“E o garoto de doze anos, raquítico e cínico, encostado num poste, escolhe entre os passantes precisamente aquele que sabe ingênuo e facilmente enganável. É um psicólogo instintivo, no excesso de pó que cobre o rosto de certa senhora descobre a infalível beata, a dona da bolsa cheia de níqueis destinados aos mendigos que possa encontrar no caminho…”

Eu ainda encontro esse garoto de doze anos, não cresceu, embora José Carlos Oliveira o tenha visto nas ruas do Rio de Janeiro e era novembro de 1953. O tempo teima em não passar para essa gente invisível. Continuam vagando na vastidão, Carlinhos, pois “sobre os desmandos e a insensatez dos adultos paira a inocência infantil”.

Enquanto isso fazemos literatura, enquanto isso o real escarra em nossos rostos escanhoados todas as manhãs.

Pouco antes das seis da madrugada, no Núcleo Bandeirante, cidade-satélite de Brasília, um menino brincava com uma cadeira de rodas. Descia na disparada possível a rua de baixo declive. Estava feliz. Disse um galanteio chulo para duas senhoras que passavam de roupa justa com destino à academia. Elas não deram bola. “Coitado, deve estar varado de crak”, diagnosticaram. E o menino, nem-aí-seu-souza. Corria com a cadeira que tomara emprestado a outro miserável. Já estava invisível.

Os olhos bem formados somente costumam enxergá-los nos noticiários, na narrativa de tragédias que nenhum Sófocles escreveu.

Todos perderam a ingenuidade, já não se assinam Pedro Bala, Calango, Leonardo, Pé-de-Bombo, não esperam a senhora maquiada nas esquinas, não pedem sanduíches. Cresceram suas necessidades e suas encruzilhadas são bem mais cruéis e doloridas.

Cresceu também nosso distanciamento.

Pela televisão, impotentes, ou indiferentes, assistimos o balé macabro. Vestidos de trapos, andrajos, jogaram fora as latas de cola que já nos chocou e fumam crak com o prazer danado de quem caminha para a indesejada. A certeza de que não chegam a lugar nenhum nos transmite a segurança de que não carece enxergá-los. Até a lei os apaga da vida. São inimputáveis, não são responsáveis, e nesta condição, são canteiros férteis para a criminalidade de outros tantos.

E no meio do desalento, na calçada de um edifício em Maceió, por esses dias, esperando um amigo, vi a polícia acossando essa infância invisível. Um deles, idade indefinida, talvez doze anos, levantava com seus trapos. Dormia sob uma árvore. Caminhou até a árvore mais próxima. Voltou a dormir. Seu amigo, um pouco mais velho, ensaiou um discurso. Deus está vendo. Chamou a polícia para nos expulsar daqui. Nós não roubamos, queremos só viver. E porque estão na rua? Minha mãe morreu. Não tenho pai nem para onde ir. E essa corda aí na árvore? Só um balanço; a gente precisa se distrair, né? É.

A ausência do espaço lúdico, da solidariedade, da esperança.

E aí fechamos a porta e abrimos um livro. A legião de excluídos, espectros vivos, ganha a rua na solidão da madrugada fria.

O mundo pode dormir em paz.


sábado, 2 de abril de 2011

Cineas Santos - A celebração da amizade


Corria o ano da graça de 77 e, apesar da ditadura, imperava entre nós a crença na “salvação” do planeta, na iminência de uma luminosa revolução cultural e, principalmente, na construção de um mundo mais justo e mais fraterno. Sonhos juvenis, irrealizáveis, mas necessários. Movido por esse desejo de mudanças, juntei um grupo de jovens – Paulo Machado, Fernando Costa, Alcide Filho, Rogério Newton e Margarete Coelho – e decidimos construir uma ponte cultural entre Teresina e o sertão do Piauí. Amontoados num velho fusca verde-sonho, iniciamos nossa peregrinação por São Raimundo Nonato onde, anualmente, realizava-se uma semana universitária. Levamos uma bela exposição do pintor Fernando Costa que, sozinha, falava mais que a nossa arenga de pregadores. Animados com os resultados, fomos a Oeiras, Floriano e já nos preparávamos para ir a Corrente, quando a gasolina do fusca acabou. Como não éramos financiados por ninguém, encerramos nossa errática aventura na vizinha cidade de José de Freitas.

O projeto durou pouco, mas as sementes foram lançadas em terreno fértil. 34 anos depois, aqui estamos lançando o CD A Cara Alegre do Piauí – a celebração da amizade. Hoje, com mais de 30 integrantes, o Cara Alegre pode orgulhar-se de sua trajetória festiva e consequente. Percorremos praticamente o Piauí inteiro, de Teresina a Guaribas, ensinando, aprendendo, convivendo, compartilhando. A filosofia do projeto continua a mesma: o saber não compartilhado é inútil. Para mim, é motivo de orgulho coordenar uma caravana que conta com a participação de figuras do porte de Raimundo Nonato Monteiro de Santana, Fonseca Neto, Paulo Machado, Erisvaldo Borges, Maristela Gruber, Luíza Miranda, Rosinha Amorim, Wilker Marques, Vanda Queiroz, Carlos Martins, Carla Fonseca, Gabriel Archanjo, Adriana Medeiros, Josafá,Catarina Santos,Geni Costa, Graça Vilhena,Agostinho Ferraz, Margareth Leite, Jeferson Barbosa, Rosinha Pereira, Gílson Fernandes, Tânia Martins, Antônio Amaral, Sid Ribeiro, Ilza Bezerra, Vagner Ribeiro, Wanya Sales, Josué Costa, Beto Boreno, Gílson Caland, Adelino Frazão, entre outros.

O nome do projeto foi sugestão do professor e poeta Fernando Ferraz que, com um argumento irrefutável, nos convenceu: “Ao longo dos séculos, o Piauí sempre se mostrou triste, pobre, acanhado. O máximo que conseguimos foi a piedade de alguns e o escárnio de outros. É hora de mostrarmos a face alegre e luminosa do nosso estado: a cultura e a arte que dão brilho à nossa existência”.

Por oportuno, vale lembrar: o projeto continua com as portas abertas. Para integrar a caravana, basta disposição para servir e alegria de compartilhar. Vinde, pois, “que a messe é muita e os trabalhadores poucos”.



quinta-feira, 31 de março de 2011

Edna Lopes - Roubo de Merenda Escolar em Alagoas

Nós vos pedimos com insistência
não digam nunca:
isso é natural!
diante dos acontecimentos de cada dia
numa época em que reina a confusão
em que corre o sangue
em que o arbítrio tem força de lei
em que a humanidade se desumaniza
não digam nunca:
isso é natural!
para que nada possa ser imutável!
Bertolt Brecht


Certamente muitos conhecem a expressão "Mais fácil que roubar pirulito de criança". Graças à impunidade que grassa em Alagoas é possilvel que mude para "Tão fácil quanto roubar merenda escolar de criança "...

Todos nós já vimos esse filme de horror pelo menos mais de uma vez e nem é preciso ter boa memória... A Operação Guabiru, há sete anos atrás, prendeu vários prefeitos alagoanos, secretários municipais, empresários e indiciou outros tantos envolvidos no desvio da verba da merenda escolar, mas ninguém foi julgado até agora.

A falta de caráter e escrúpulo de vários dirigentes e suas famílias, pessoas que abusam da boa fé, que enriquecem com expedientes desse tipo, parece ser algo natural por essas bandas.

"Em um estado, o nosso, em que mais da metade a população apenas sobrevive, chamar os que roubam o dinheiro da merenda escolar de ladrões é apenas elogiá-los. Repito: em um estado com pouco mais de três milhões de habitantes, registrando uma pobreza de 900 mil pessoas, que se somam a 760 mil miseráveis, os tais a quem nos referimos acima devem ser tratados por assassinos, homicidas, ou – talvez a melhor definição: latrocidas – aqueles que matam suas vítimas depois de roubar." (Ricardo Mota) leia mais http://blog.tudonahora.com.br/ricardomota/

Tem razão, meu caro! E a minha cota diária de indignação transborda! Como cidadã que paga seus impostos, portanto banca a farra dessa corja, e também como educadora, é meu dever botar a boca no trombone, anunciar, denunciar, exigir que a justiça se faça, pois em todos os municípios alvo da ação da PF e da CGU, a merenda escolar tem um peso fundamental para garantir os estudantes na sala de aula.

Sim, eu sei que escola não é "restaurante mirim", mas a desnutrição é uma das causas da não aprendizagem dos alunos e não vamos fingir que não sabemos que há familias que sobrevivem (?) com meio salário mínimo. Não vamos achar que uma corrupçãozinha aqui, um desviozinho de recurso alí não é nada demais, que ninguém é honesto mesmo.

Que a justiça se faça para que essa corja possas refrear seus instintos. Dinheiro PÚBLICO não é pasto e muitos de nós, eu, particularmente, não naturalizou a falta de decencia e caráter como marca para os gestores de nossos municípios.

Leiam mais detalhes:

Operação Mascotch prende em Alagoas suspeitos de desviar dinheiro da merenda escolar para gastos pessoais

Por Gilberto Costa, Agência Brasil

A Polícia Federal (PF) prendeu hoje (30), em Alagoas, nove pessoas envolvidas com desvio de dinheiro público da merenda escolar. O recurso, originário do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), foi desviado em 13 municípios para o pagamento de compras pessoais, como bebidas alcoólicas (uísque 12 anos, vinho) e até ração para cachorro.
A operação, intitulada Mascotch, é feita em conjunto com a Controladoria-Geral da União (CGU) e com o Ministério Público Federal (MPF), nas cidades de Maceió, Arapiraca, Limoeiro de Anadia, Lagoa da Canoa, Girau do Ponciano, Poço das Trincheiras, Senador Rui Palmeira, Belo Monte, Estrela de Alagoas, Jacaré dos Homens, Quebrangulo, Feira Grande e Traipu.
Fiscalização da CGU contabiliza que R$ 8 milhões podem ter sido desviados, entre 2007 e 2009, por meio de contratos fraudulentos com o grupo empresarial que venceu 13 licitações no período.
Sete mandatos de prisão temporária ainda não foram cumpridos. Três pessoas prometeram se entregar nesta tarde à Polícia Federal. Além das prisões, a PF cumpre 28 mandados de busca e apreensão nos municípios, inclusive na sede de cinco prefeituras (Girau do Ponciano, Poço das Trincheiras, Senador Rui Palmeira, Belo Monte e Estrela de Alagoas).
A PF e a CGU não informaram o nome das pessoas presas, mas divulgaram que as autoridades com mandado de prisão expedido são: a primeira-dama e um ex-secretário municipal de Finanças de Belo Monte; a secretária de Educação de Craíbas; a ex-prefeita e a secretária de Educação de Estrela de Alagoas; a primeira-dama e secretária de Assistência Social, a secretária de Educação e uma ex-secretária de Finanças de Lagoa da Canoa; a primeira-dama e o secretário de Administração de Limoeiro de Anadia; a vice-prefeita, a primeira-dama e secretária de Assistência Social, o secretário de Indústria e Comércio e um ex-secretário de Administração de Traipu.
A Operação Mascotch é um desdobramento da Operação Caetés, executada em outubro do ano passado e que também investigou esquema de desvio de recursos da alimentação escolar, prendeu oito pessoas e cumpriu 16 mandados de busca e apreensão nos municípios de Maceió, Arapiraca, Craíbas, Limoeiro de Anadia, Lagoa da Canoa e Traipu.
De acordo com dados do Ministério da Educação, o estado de Alagoas tem desempenho educacional abaixo da média nacional e da média da Região Nordeste. Um em cada quatro alunos de 10 a 14 anos estão atrasados no fluxo escolar e quase 80% dos alunos do ensino fundamental estão defasados em relação à série que cursam.
A taxa de abandono dos estudos em Alagoas é de 9,1% no ensino fundamental. O Índice do Desenvolvimento da Educação Básico (Ideb) de Alagoas é 3,7 pontos (contra 4,6 pontos da média brasileira).

Grifos meus!


quarta-feira, 30 de março de 2011

Luís Pimentel - O homem bom e o vestido de flores


– Primeiro mesmo, de fazer as coisas para valer, foi o Toni. Eu até tive alguns namoradinhos antes dele, sim. Coisa de criança, sem compromisso e sem deixar marcas profundas. Foi mais ou menos nessa época que o estraga-prazeres do meu primo se infiltrou em minha vida. Chamava-se Lourival e não serviu para nada. Pequeno e inseguro, porém pretensioso. Só falava em dinheiro, futebol e corridas de cavalo. Curto que só vendo. Uma besta.
“Ela jamais saberá, mas eu gostaria muito de conhecer o primo Lourival. Gosto de pessoas assim, que não servem para nada. Também gosto de pessoas que só falam em dinheiro, sobretudo quando não têm dinheiro nenhum. E gosto, sobretudo, dessas pessoas que as outras consideram verdadeiras bestas.”
– Coitado do Lourival.
– Coitado nada.
– Tá certa. Não chega aos pés do Toni.
– Também não posso dizer que o Toni tenha representado grande coisa. Não me deu nada, mas pelo menos tirou o que tinha se prontificado a tirar.
– Alguém tem que fazer o trabalho sujo.
– Eu já tinha quase dezoito anos. Passava da hora.
– Parabéns, Toni.
“Eu tinha quase dezoito anos quando fui para a cama com uma mulher. Uma prostituta, como não poderia deixar de ser. Criado em roça, meio do mato, a iniciação se deu mesmo foi com cabras, porcas, novilhas, éguas, cadelas e companhia. Só mais tarde, na cidade, conheci fêmeas de duas pernas, dois braços e dois peitos. Não conseguia me entender com namoradas, sempre difíceis e certinhas. Tinha que ser mesmo com mulheres de vida torta e nenhuma complicação existencial. Dizia apenas conta aí a bela história e não se preocupa comigo, baby. Elas obedeciam, sem remorsos.”
– Aí veio o Jonas.
– Grande Jonas.
– O grande amor de minha vida. Dessa história você vai gostar.
“Gosto das histórias delas. De todas as histórias de todas elas. Quanto mais absurdas, mais eu gosto. Às vezes me dão vontade de rir, mas em geral me dão muito prazer.”
– Como era o Jonas?
– Forte, inteligente, extremamente sensual e educado. Gostava de fazer amor na sala, no velho sofá, enquanto mamãe ouvia rádio e passava roupas na cozinha. Dizia que o excitava, tinha cada idéia de maluco. A qualquer movimento suspeito na cozinha acelerava o ritmo. E como eu gostava.
– Também estou gostando.
– Me mordia toda. Jonas tinha coxas grossas e braços firmes. Mexia com contrabando e um dia evaporou, sumiu do mapa, desapareceu no mundo.
“Lurdes. Era esse o nome dela. Tinha peitos caídos e um sorriso horroroso, forrado de dentes de ouro. Exagerava na pintura e parecia mais uma caricatura malfeita. Cobrava menos do que as outras e tinha histórias interessantíssimas, além de não me considerar um alucinado. Foi compreensiva quando eu disse que gostaria de fazer amor ouvindo histórias malucas. Aceitou de pronto, sem cobrar um tostão a mais. Tentamos muitas vezes até eu ter certeza de que gostaria de fazer sozinho, ouvindo mentiras cabeludas.”
– Fale mais.
– Do sumiço do Jonas?
– Da cama, do sofá, mordendo você todinha.
– Você não presta.
“Eu não presto, nem te amo, não sei nem quero saber o teu nome. Não quero saber dos teus problemas, só das tuas mentiras.”
– Repete tudo. O que ele fazia com você no velho sofá, enquanto a mamãe passava roupas?
– Me beijava dos pés à cabeça. Fazia tudo o que queria comigo.
– Grande Jonas. Fazia tudo, tudinho?
– As coisas que me envergonhavam fazíamos de luz apagada. Chega, não gosto nem de lembrar.
– Esquece.
– Aí conheci o Rodolfo.
– Também contrabandista?
– Não. Motorista de ônibus.
– Rodolfo é um bonito nome.
– De artista. A mãe era apaixonada por um tal de Rodolfo Valentino, do cinema. Só que não se parecia nada com o outro. O meu Rodolfo era magro, desdentado e tossia até não se agüentar, principalmente naquela hora.
– Que horror.
– Fica quietinho, senão desconcentra.
“A vida é assim, feita de pequenas crueldades.”
– Gostava dele?
– Não. Usava como remédio barato, só para tentar esquecer o Jonas. Ia para a cama com ele pensando no Jonas, enquanto ouvia coisas. Sempre desatenta.
– Que coisas?
– Coisas, ora. Coisas que se dizem na cama.
“A vida também é feita de pequenas coisas. Coisas sem sentido, coisas importantes, coisas e coisas. Coisas que se dizem na cama, que se cochicham em enterros, outras que só em comemorações de aniversários. Coisas que só se dizem aos grandes amigos e coisas que não se diz nem aos piores inimigos.”
– E você, o que dizia para ele?
– Coisas também. Bobagens. E cravava as unhas nas costas cheias de espinhas do pobre. Acabou?
– Não. Mas não demora.
– Então vou falar do Júlio.
– O que tinha o Júlio?
– Um olho cego e uma mancha enorme do lado direito do peito.
– Também gostava no sofá?
– Não. De pé, encostado na parede. Ele era muito alto e eu tinha que ficar na ponta dos pés. Mas era bom.
– Sei.
– Era muito bom.
“Não duvido. Todos eles são muito bons para elas e também para mim. Também não tenho queixas das mulheres com as quais sonhei. Todas são boas e não têm culpa de nada.”
– Viu onde coloquei minhas chaves?
– Em cima da mesinha de cabeceira. Nem falei do Alfredo, o que era da polícia.
– Da próxima vez começaremos por ele.
– Você promete?
– Claro. Temos que começar por alguém.
– Jura que gostou?
– Eu gosto sempre. Tome.
– Pode deixar aí.
– Está em cima da cômoda. Tem um pouco mais, para o vestido de flores.
– Não acredito. Enfim, o vestido de flores. Que homem bom, meu Deus.
“Olho para ela e penso: ainda existem pessoas boas neste mundo.”






terça-feira, 29 de março de 2011

Edna Lopes - Memórias de um aprendiz de escritor



Certamente que quem escreve tem na ponta da língua o modo como se iniciou no mundo das letras, como leitor e escritor. O fato é que há sempre o que aprender, o que melhorar, seja como leitor que lê o mundo e a palavra ou como escritor, em forma e conteúdo.

Neste livro, de maneira leve e delicada, o autor nos conta numa “ficção autobiográfica” da infância como foi aprendendo a ser escritor. Um menino apaixonado por livros, um escritor apaixonado por livros.

O livro é classificado como infantojuvenil, mas boa leitura não tem idade ou classificação. As dicas são valiosas para quem, como eu, brinca de escrever, ou para qualquer escritor/a mais tarimbado, que se preocupa em escrever com clareza e alguma emoção.

Da vez que ouvi Scliar numa dessas Bienais da vida, guardo a firmeza da palavra, o encantamento com que falava das leituras que fizera ao longo da vida, a delicadeza poética como demonstrava observar o cotidiano.

Por diversas vezes “pesquei” da Folha online crônicas suas, inspiradas em notícias do jornal para abrir reuniões de trabalho, aulas, seminários de formação de educadores. Nos elementos do cotidiano, provocações, reflexões... Nenhum sentimento banalizado, tudo tão humano, tão real, tão poético.

Dias antes de sua morte, reli Memórias e sugeri que Vinícius, meu adolescente tirado a filósofo o lesse...

- Não pretendo ser escritor - respondeu.
- Nunca se sabe...

Transcrevo a primeira parte do livro... Um carinho imenso por cada lembrança de leitura, cada pensamento articulado. Fisicamente não está mais entre nós, mas sua obra estará.

Eternamente, Moacyr.




Memórias de um aprendiz de escritor
Moacyr Scliar

Escrevo há muito tempo. Costumo dizer que, se ainda não aprendi – e acho mesmo que não aprendi, a gente nunca para de aprender -, não foi por falta de prática. Porque comecei muito cedo. Na verdade, todas as minhas recordações estão ligadas a isso, a ouvir e contar histórias. Não só as histórias dos personagens que me encantaram, o Saci-Pererê, o Negrinho do Pastoreio, a Cuca, Hércules, Tarzan, os piratas, Tom Sawayer, Sacco e Vanzetti. Mas também as minhas próprias histórias, as histórias de meus personagens, essas criaturas reais ou imaginárias, com quem convivi desde a infância.

Na verdade, eu escrevi ali em cima. Verdade é uma palavra muito relativa para um escritor de ficção. O que é verdade, o que é imaginação? No colégio onde fiz o segundo grau, havia um rapaz que tinha fama de mentiroso. Fama, não; ele era mentiroso. Todo mundo sabia que ele era um mentiroso.

Uma vez, o rádio deu uma notícia alarmante: um avião em dificuldades sobrevoava Porto Alegre. Podia cair a qualquer momento. Fomos para o colégio, naquele dia, preocupados; e conversávamos sobre o assunto, quando apareceu ele, o Mentiroso. Pálido:

— Vocês nem podem imaginar!
Uma pausa dramática e logo em seguida:
— Sabem esse avião que estava em perigo? Caiu perto da minha casa. Escapamos por pouco.
Gente, que coisa horrível!

E começou a descrever o avião incendiando, o piloto gritando por socorro… Uma cena impressionante. Aí veio um colega correndo, com a notícia: o avião acabara de aterrizar, são e salvo. Todo mundo começou a rir. Todo mundo, menos o Mentiroso:

— Não pode ser!– repetia, incrédulo, irritado.
— Eu vi o avião cair!

Agora, quando lembro este fato, concluo que não estava mentindo. Ele vira, realmente, o avião cair. Com os olhos da imaginação, decerto; mas para ele o avião tinha caído, e tinha incendiado, e tudo o mais. E ele acreditava no que dizia, porque era um ficcionista. Tudo que precisava, naquele momento, era um lápis e um papel. Se tivesse escrito o que dizia, seria um escritor; como não escrevera, tratava-se de um mentiroso. Uma questão de nomes, de palavras.

Palavras. São tudo, para quem escreve. Ou quase tudo. Como a serra, o martelo, a plaina, a madeira, a cola e os pregos para o marceneiro; como a colher, o prumo, os tijolos e a argamassa para o pedreiro; como a fazenda, a linha, a tesoura e a agulha para o alfaiate. Estou falando em instrumentos de trabalho, porque literatura nem sempre parece trabalho. Há uma história (sempre contando histórias, Moacyr Scliar! Sempre contando histórias!) sobre um escritor e seu vizinho. O vizinho olhava o escritor que estava sentado, quieto, no jardim, e perguntava: Descansando, senhor escritor? Ao que o escritor respondia: Não, trabalhando. Daí a pouco o vizinho via o escritor mexendo na terra, cuidando das plantas: Trabalhando? Não, respondia o escritor, descansando. As aparências enganam; enganaram até o próprio escritor.

Gabriel Garcia Marques conta que, quando senta para escrever, gosta de estar rodeado dos mais variados instrumentos: a máquina, vários lápis, tesoura, cola, borracha, grampeador – para sentir como um operário que vai empreender a tarefa; o operário em construção, de Vinícius de Moraes: “Era ele quem fazia casas/Onde antes só havia chão”.

As Palavras são tudo, você disse, Moacyr? Você mentiu, Moacyr. Mais uma vez você mentiu. As palavras não são tudo, e disso você bem sabe. A emoção conta, caro Moacyr. A Emoção, as idéias, as lembranças. Fale um pouco sobre você Moacyr.(...)

Moacyr Scliar

Nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu em fevereiro de 2011. Autor de mais de 70 livros, uma obra que abrange vários gêneros: ficção, ensaio, crônica e literatura juvenil. Muitos destes foram publicados nos Estados Unidos, França, Alemanha, Espanha, Portugal, Suécia, Argentina, Colômbia, Israel e outros países, com grande repercussão crítica. É detentor dos seguintes prêmios, entre outros: Prêmio Joaquim Manoel de Mace­do (1974), Prêmio Erico Veríssimo (1976), Prêmio Ci­da­de de Porto Alegre (1976), Prêmio Guimarães Rosa (1977), Prêmio Brasília (1977), Prêmio Jabuti (1988, 1993 e 2000), Prêmio Associa­ção Paulista de Críticos de Arte (1989), Prêmio Casa de las Américas (1989), Prêmio Pen Clube do Brasil (1990), Prêmio José Lins do Rego (Academia Brasileira de Letras, 1998). Formou-se em medicina em 1962, especializando-se em saúde pública. Viajava frequentemente, tanto no país como no exterior, para congressos e conferên­cias; em 1993 e 1997 foi professor visitante na Brown University (Departament for Portuguese and Brazilian Studies), nos Estados Unidos.

Moacyr Scliar foi colunista dos jornais Zero Hora e Folha de S. Paulo e também colaborou em vários órgãos da imprensa no país e no exterior. Muitos de seus textos foram adaptados para cinema, teatro, tevê e rádio, inclusive no ex­te­rior. Em 2003, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Adaptado por mim do site http://www.lpm-editores.com.br/




domingo, 27 de março de 2011

O COMÍCIO


[Minha homenagem ao poeta pantaneiro Zé do Mato, eleito presidente da Câmara de Vereadores de Santa Rita do Pardo]

Santa Rita do Pardo é uma cidade de pouco mais de seis mil habitantes, encravada em pleno coração do Mato Grosso do Sul. Sua maior diversão são as eleições municipais, onde rola comida e cachaça de graça para os eleitores. Quanto mais polarizada estiver a campanha, melhor a festa para os eleitores, disputados a tapas pelos candidatos. Cem votos transformam o candidato no vereador mais votado da região.

Zé do Mato prometia fazer história nas eleições daquele ano. Seria uma versão alfabetizada de Tiririca e especulava-se que a sua votação seria tão magnífica tal qual a do palhaço paulista. Ao contrário do que aconteceria em uma eleição normal, a majoritária puxar voto para o vereador, Zé do Mato é quem iria decidir a eleição para prefeito e é por isso que o seu cunhado, candidato à reeleição, gastava mundos e fundos na campanha do edil.

Poeta das onças apaixonadas, funcionário público responsável, pai de família exemplar, amigo dos amigos, companheiro de não abandonar o barco, esperava-se uma estréia triunfal no primeiro comício na Praça da Prefeitura, única praça da cidade, cuja expectativa do discurso afligira a imensa maioria dos moradores por mais de um mês, ansiosa para ouvir os versos, as rimas e as versões de sua prosopopéia política.

Normalmente o candidato da majoritária é o último a discursar, sendo que os candidatos a vereador enchem linguiça até a chegada do candidato a prefeito que, via de regra, sempre atrasa. Mas em Santa Rita do Pardo aconteceria o inverso: Zé do Mato faria o seu discurso por derradeiro, para não dispersar a multidão. E assim, depois de um falatório vazio do prefeito-candidato, chegou o momento tão esperado. E o locutor não economizou efes e erres:

- E agora, com vocês, o momento tão esperado, o candidato sensação desta eleição, o nosso glorioso poeta Zéééééééé do Maaaatoo!”

A multidão foi ao delírio e uma saraivada ensurdecedora de fogos de artifício se fez ouvir. O povo gritava em êxtase:

– Já ganhou! Já ganhou! Já ganhou!

Uma senhora grávida não resistiu à emoção e deu a luz ali mesmo, na praça, e o nenê nasceu batendo palmas. Era o milagre da Criação aplaudindo o milagre da perversão poética.

Zé do Mato, depois de cumprimentar as autoridades constituídas presentes ao comício, pegou o microfone, pigarreou, fez um pouco de suspense e depois abriu a verborragia:

– Meus concidadãos e concidadãs, como diz o poeta Salgado Maranhão, eu sou de quem me ama, portanto, se vocês me amam, eu amo vocês porque a recíproca é verdadeira e ponto final. Mas é chegada a hora de refletirmos no nosso introspectivo interior a respeito do desrespeito ao nosso cotidiano incerto e que gerou os meus questionamentos reflexivos a respeito de nosso torrão natal. Meus amigos, eu vos humildemente pergunto: nossa querida, amada e sofrida cidade, Santa Rita do Pardo, está no mapa do Brasil?

– Nãao! – respondeu metade dos participantes.

– Está no Guia Quatro Rodas?

Guia Quatro Rodas? Que bichéesse? Pela entonação...

– Nããão!

– Meus amigos, nesta cidade tem luz?

Começava a falar a língua do povo.

– Nãããão! – respondeu uníssona uma gente esperançosa de mudanças. Estava ouvindo a voz de quem tudo podia, de quem tudo sabia, de quem tudo faria.

– Tem água encanada?

– Nããããão! – mais entusiasmo do povo. Este é o homem certo. Já ganhou!

– Tem médico?

– Nããããããão! – tava eleito. Seria a solução para os principais problemas da cidade.

– Tem emprego?

– Nããããããããão! – foram tantos e tão forte que ecoou a quilômetros de distância.

Não restava mais dúvida: era um estadista. O homem certo para ser o mais votado. Presidente da Câmara. Dariam um jeito de cassar o mandato do prefeito para ele assumir.

Zé do Mato, empolgado com a reação emocionante do povo, lançou toda sua indignação na última pergunta:

– Já que esta cidade não existe no mapa do Brasil, não tem médico, não tem luz, não tem água, não tem emprego, então eu pergunto a vocês: por que então vocês não se mudam desta porcaria de cidade?!

– ?????????????


sexta-feira, 25 de março de 2011

Maurício Melo Júnior - A Ancestralidade Nordestina

O primeiro milagre se deu em 1872. Francisca Belmira era prostituta numa currutela perdida no sertão, nos pés da Chapada do Araripe, um pouso de tropeiros, povoado sem eira, com cinco casas de telha, trinta choupanas e uma capela. O padre veio para celebrar a Missa do Galo no ano anterior e sonhou com o próprio Cristo ordenando que ele se entregasse à tarefa de pastorear aquele rebanho de pouca crença e muita iniqüidade. Ficou. Aceitou a peleja. Num dia de céu claro e luz intensa deu-se o encontro. A mulher, enlouquecida, corria praguejando contra Deus e o mundo. Desafiava valente, desacatava a todos. Até ver o padre que pôs as mãos em sua cabeça abençoando-a.

Ela caiu em choro convulsivo pedindo perdão pelos tantos pecados. Nunca mais bebeu, nunca mais se prostituiu. Morreu como matrona, venerada e respeitada por todo Juazeiro. O padre seguiu obrando seus milagres, livrando flagelados da seca, construindo uma civilização no coração do Cariri. Vinha de uma tradição de fé intensa. Isolado de tudo, sem lei nem rei, os primeiro colonizados daquelas brenhas se entregavam à proteção de Deus e só com ele contavam.

Na ausência de padres regulares, se valiam dos beatos, dos andarilhos que falavam em bonanças e anunciavam apocalipses. Essa tradição de tão forte, norteou o Padre Ibiapina, um advogado que abandonou as leis dos homens e se dedicou à lei de Deus. Fez-se padre no Seminário de Olinda e saiu a pregar pelos sertões. Tinha um discurso tão afinado e belo que encantou o menino Cícero que se fez padre e milagreiro, um santo nordestino, no dizer do povo.

Ninguém sabe quando se deu o primeiro tiro. O fato está perdido nos esteios do tempo. E depois dele viram muitos, tantos que nenhuma tabuada é capaz de contar, mas tem um desses tiros que se fez definitivo. Era um rapaz de 17 anos, conta-se, e já estava, junto com outros dois irmãos, metido com bando de cangaceiros e era um atirador de respeito. Um estrategista, embora nunca tivesse pensado no ofício da guerra. Era tropeiro e artífice do couro, tocador de sanfona também.

Na volta de uma viagem encontra o pai em desespero: tinham lhe roubado umas cabras. Descobriu o ladrão, mas este era protegido do coronel do lugar. Mesmo assim buscou a única justiça possível nos sertões: a lei do próprio braço. Para colonizar aquelas brenhas os homens traziam um pouco de gado e muito de coragem. Não podiam contar com ninguém. E se desavença houvesse, essa teria que ser resolvida no disparo da própria bala. Assim fez o moço, mas precisou viajar e na volta o sítio da família era cinza e os pais, cadáveres. Caiu no cangaço. Numa noite de breu intenso, num combate de grande monta seu tiro clareou o mundo. Isso não é tiro, é lampião, alguém gritou e Lampião ficou sendo desde então; é o que se conta. Certeza mesmo são sua coragem e sua disposição de justiçar o mundo. Mais que homem de carne e osso, Virgulino fez-se lenda.

A música estava no embalo do berço. A mãe era conhecida cantadeira de novenas e incelenças. O pai consertava sanfona e animava forró tocando pé-de-bode. Fazia miséria nos oito baixos. E levava pelo braço, escondido da mulher, o filho, um menino de calças curtas. Nesta transgressão aprendeu a passear os dedos pelo teclado daquele instrumento mágico. Inventada nas brenhas da Europa, a sanfona desembarcou no sertão na bagagem dos judeus errantes, os fugitivos das fúrias governamentais, os cristão-novos.

Para se livrar da melancolia, o homem do sertão puxava o fole nos sambas de latada que o bispo de Olinda proibiu dizendo ser aquela uma festa imoral, isso nos idos de 1735. Tornou-se o instrumento tão íntimo do sertanejo que o menino, crescido, soldado do Exército, tentou dedilhar violão. Faltou jeito, ou foi a sanfona quem falou mais alta, sabe-se lá. O certo é que tirou a farda, botou paletó e gravata e foi tocar valsas e mazurcas nas rádios do Rio de Janeiro. Um dia, livrando uns trocados num cabaré da zona do Mangue, o sanfoneiro ouviu um bando de estudantes pedir para ele tocar alguma coisa do Norte.

Tocou e o sucesso foi imenso. Pelejou com os poderosos da rádio. Pelejou, pelejou. Até que se botou diante do imenso Ary Barroso. “O que o senhor vai tocar?” “Vira e Mexe, uma música do Norte.” “É cada uma que me aparece. Então toque logo essa besteira.” Tocou e o auditório, eufórico, pediu bis. Foi contratado e nunca mais parou de tocar e cantar as coisas do Norte. Criou toda uma estética musical, influenciou uma imensa legião de novos músicos, tocou nas praças nordestinas e nos auditórios do exterior, se fez rei. Distribuiu muitas sanfonas. Honrou um home: Luiz, por que nasceu em 13 de dezembro, dia de Santa Luzia; Gonzaga, por que a mãe, Santana, era devota de São Luiz Gonzaga; do Nascimento, por que dezembro é o mês do nascimento de Jesus.

A ancestralidade nordestina e sertaneja tem base no triângulo fé, resistência e musicalidade. Ela nasce da solidão, do trabalho com o gado, da necessidade de se construir sozinho, de ser forte em tudo. Cícero, Virgulino e Luiz.

Um dia os sociólogos entrarão pela história e descobrirão que esta fé não é fanática. Ela nasce do apega à crença ancestral que reza: mais que a justiça dos homens, o sertanejo em sua solidão carece da força divina para aplacar suas revoltas e privilegiar a labutar, o martelar cotidiano sobre a pedra áspera do chão. Também a violência não é gratuita. Ela é colheita que se faz na precisão de defender a honra e a posse. Sozinho, sem lei nem rei, o homem do sertão tinha Deus no céu e o bacamarte na terra. E para aplacar as fúrias do chão pedregoso e dos homens injustos, nas noites de fogueira e lua tocava viola, dedilhava sanfona, cantava suas mágoas e alegria. E nos dias de sol inclemente, tocava o gado, domava a terra, entoava o aboio. Cícero, Virgulino, Luiz.

O Nordeste mudou. O jumento deu lugar às motos. A polícia e a justiça se espalham por todos os cantos. As igrejas milenaristas e protestantes se desenham em todas as paisagens. A sanfona hoje tem a companhia de guitarras e a zabumba é uma bateria completa. O homem é que é o mesmo em sua ancestralidade. Se não é possível aboiar sobre uma moto, canta pelas porteiras e latadas; se a missa abriu espaço para o culto evangélico, no quarto dos santos tem uma imagem do Padre Cícero; se as rádios empesteiam os ouvidos com gritos breganejos e baladas americanizadas, repinicam uma viola, puxam uma sanfona e cantam para a lua. E como essa gente sabe sorrir com honesta sinceridade.

Não se enganem: Em sua ancestralidade o Nordeste continua sendo Cícero, Virgulino e Luiz.