sábado, 13 de agosto de 2011

Grande encontro cultural dos junqueses na capital baiana



Enquanto aguardava o preenchimento da nota fiscal na loja de material de informática, puxou conversa com o vendedor, que depois veio a saber tratar-se do proprietário. Entre a conveniência financeira de um “upgrade” do seu computador e o retorno do time do Bahia à primeira divisão do campeonato brasileiro, a conversa descambou para o São João, que se aproximava.

– Pretendo passar o São João em Santo Estevão, terra dos meus avós – falou o dono da loja.
– Eu vou para a minha terra, Sátiro Dias – disse o cliente.
– Sátiro Dias?! Você é de lá?
– Sou.
– Tenho um tio que é casado com uma moça de lá. Ela é da família Torres.
– Então eu devo conhecer.

Naquele instante descobrira a força da terra. Da sua terra. Em pleno centro nevrálgico de Salvador alguém que ele nunca vira tinha relações de afinidade com os seus parentes. Sim, porque lá no Junco todo mundo descende do mesmo saco genético, todo mundo é parente. Talvez esteja aí a razão do grande sucesso do primeiro encontro dos amigos e conterrâneos de Sátiro Dias, realizado por ele no ano passado. A terra é fértil e se ramificou em toda a parte, principalmente na capital do estado. Para cada habitante que ficou, há vinte que honram o nome do lugar em terras alhures.

Este ano o encontro será no próximo sábado, 20, no  Empório Arvoredo – Armazém do Interior, no Imbuí, a partir de uma e meia da tarde, onde haverá homenagens, shows musicais e o tão esperado lançamento do livro “Letras do Junco – antologia do conto sertanejo”, uma seleção de contos de treze autores da terra, idealizado por este escriba que vos escreve juntamente com o batalhador cultural Luiz Eudes, cuja responsabilidade da seleção, quanto da publicação ficou a cargo do mesmo. Com prefácio generoso do grande escritor da terra, Antonio Torres, orelha escrita pelo prefeito, um entusiasta das lides culturais, o livro conta com a participação de autores do velho Junco publicados Brasil adentro e até mesmo na Europa, como é o caso de Décio Torres, que atualmente faz pós-doutorado na Inglaterra e tem dois livros publicados na Alemanha e França. Tem também a estreia surpreendente de Nanty Andrade e Eryca Giuliany, que, na avaliação de Antonio Torres, são duas promessas na literatura sertaneja. 

Marcelo Torres, o jornalista e escritor radicado em Brasília e que atualmente não sai das páginas culturais do Planalto Central (ainda retumba seu livro “O bê-á-bá de Brasília”) faz participação especial e até mesmo Tico de Tiago, que assina José Pedreira da Cruz, deixou a garoa paulista pra narrar um conto do sertão.

O menino Evânio, lá das Gerais, Ademilton, em Conquista,  minha sobrinha Ana Lúcia, de Salvador, Alan Andrade, também responsável pela belíssima capa, a poetisa Cristiana Alves, levando a música erudita para o Junco e, como não poderia deixar de ser, Luiz Eudes, o qual lhe dedico umas mal traçadas linhas, por ser ele o responsável pela concretização dessa coletânea do conto sertanez, como diria Elomar.

Luiz Eudes é um paulista radicado no Junco desde quando usava fraldas. Descende das várias famílias que formaram o caldeirão genético junquês. Graças ao seu empenho incansável, o Junco tem hoje uma biblioteca pública e um departamento de cultura, que já teve seus grandes dias de glória. E, graças a ele, deve sair ainda este ano a primeira feira literária, coisa inédita no sertão do Nordeste.

Charles Cruz, o idealizador do encontro na Velhacap, é um junquês radicado em Salvador e que tem boa circulação entre os políticos, empresários e comunicadores, o tripé que garante o sucesso de qualquer evento. Assim, graças ao empenho desse ex-comedor de rapadura e de mangaba do tabuleiro, a capital baiana uma vez por ano é tomada festivamente pela alegria do reencontro de pessoas que foram separadas pelas necessidades da vida.

Vida longa ao evento e aos seus participantes.

Cineas Santos - A crueza dos contrastes

Na semana passada, presenciei dois fatos que, sem nada em comum, alertaram-me sobre os contrastes que marcam o cotidiano de Teresina. O primeiro: ao percorrer uma das avenidas mais agitadas da capital, ao meio-dia, me dei conta da loucura em que se transformou o trânsito da cidade. Ao longo de todo o trajeto, automóveis, ônibus, ciclistas e pedestres disputavam cada polegada de chão com aquela pressa suicida dos irresponsáveis. Buzinas, freadas, imprecações: um show imprudência e incivilidade. De repente, saído não se sabe de onde, um cidadão comum, encarapitado numa bicicleta desconjuntada, pedalava lentamente, alheio à fúria do trânsito. O sossego do ciclista já seria algo inusitado naquele universo caótico. Não bastasse isso, aquele homem, de idade inescrutável, transportava um jacá na garupa da bicicleta e, no jacá, cachos de tucum. Para os mais jovens, tucum é um coquinho delicioso, isso se o freguês conseguir quebrar-lhe a casca, dura como pedra. O ciclista era um prosaico vendedor de tucum. Até o início da década de 90, a cena nada teria de extraordinária: nas ruas de Teresina, vendedores de bacuri, bacupari, pequi, pitomba, umbu, cajá e outras frutas silvestres disputavam os fregueses no grito. Um comércio informal com cheiro, cor e gosto reconhecíveis à distância. Parei o carro e acompanhei a trajetória do vendedor até onde a vista me permitiu. Ninguém parecia interessado na sua “estranha” mercadoria.

O segundo fato, menos prosaico e mais preocupante: no domingo passado, saí com uma equipe de TV para fazer um documentário. Paramos numa rua, de aparência sossegada, no bairro São Pedro. Mal começamos a filmar, aproximou-se um cidadão que lavava um automóvel em frente a uma residência. Ao reconhecer-me, pediu desculpas por estar sem camisa, e me fez um pedido: Professor, faça uma matéria sobre o nosso bairro. Um pedido razoável que, sem maiores sacrifícios, poderia ser atendido na hora. Fiz apenas uma pergunta: Meu irmão, o que o seu bairro tem de interessante em matéria de arte, cultura? O cidadão, com um olhar de desespero, respondeu: Nada, professor. O que temos de sobra aqui é violência. Violência a qualquer hora do dia ou da noite. Minha mulher foi assaltada na porta de casa; uma sobrinha do diretor da Faculdade Santo Agostinho foi assaltada na entrada da garagem do prédio... E desandou a falar sobre a violência que aterroriza os moradores da rua. Até aí, nada de extraordinário: Teresina, hoje, é uma das capitais mais violentas do país, embora a propaganda oficial diga exatamente o contrário. Extraordinário foi saber que aquele cidadão aflito é um policial civil. Em tese, o policial deveria ser a presença, ainda que simbólica, da segurança pública naquela rua triste. Na prática, um homem apavorado, pedindo socorro a uma equipe de TV. Um tanto constrangido, expliquei-lhe que o programa que apresento – Feito em Casa – não tem o viés mundo-cão. Desacorçoado, o moço retirou-se, deixando no ar o lamento: Desculpe incomodá-lo, professor, eu tinha esperança de que o senhor pudesse fazer alguma coisa por nós. O desabafo daquele policial desarmado estragou-me o domingo.

Foi aí que me ocorreu a seguinte reflexão: os teresinenses vêm fazendo um esforço extraordinário para livrar Teresina do seu jeito provinciano de ser. Querem-na “moderna”: livre de quintais, de vendedores de frutas, de pipas no céu azul. Nada de cadeira na calçada, de bodega na esquina, de picolé caseiro, de banhos no Parnaíba... O que essa brava gente insiste em não ver é que o “progresso”, feito de concreto, de asfalto, de ruas entupidas de automóveis, de supermercados e shoppings, cobra um preço muito alto. A conta – o medo e o desassossego – será rateada entre todos nós.


quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O que sei de Lula

[Texto reencaminhado por Antonio Torres. Encaminhamento original: José Nêumanne Pinto]


O jornalista, comentarista de rádio e TV, escritor e poeta José Nêumanne Pinto conheceu Luiz Inácio Lula da Silva em maio de 1975, pouco depois de este haver assumido a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Desde então, tem mantido contato profissional e pessoal – de início, mais estreito, depois limitado ao noticiário – com o personagem que ele considera o maior líder político do Brasil em todos os tempos.

Nos últimos meses do segundo mandato do ex-dirigente sindical e do Partido dos Trabalhadores na Presidência da República, Nêumanne resolveu escrever seu testemunho, com o qual pretende esclarecer o que fez dele o primeiro representante autêntico do homem do povo no poder mais alto. O que sei de Lula relata episódios inéditos, como a reunião de Lula com um emissário do Planalto no governo Figueiredo, o major Gilberto Zenkner, que tinha montado a rede de espionagem do Exército contra a guerrilha do PCdoB no Araguaia, no apartamento do jornalista Alexandre von Baumgarten, vítima de um atentado em alto mar, cuja autoria foi atribuída à chamada “comunidade de informações”. E acompanha a trajetória do menino retirante do sertão de Pernambuco à Praça dos Três Poderes à luz de fatos reais, e não da poeira mitológica com que se tentou cobrir, ao longo dos últimos 36 anos, a verdade histórica, posta a serviço da doutrinação ideológica.

O Lula que emerge das páginas deste livro não é o socialista que trocou a revolução pela carreira política de sucesso na democracia, mas sim um gênio da comunicação que conseguiu falar diretamente à alma e ao coração do homem comum, com sua experiência de convívio com a fome, a humilhação e o desemprego. Admirador declarado de Mahatma Gandhi e de Adolf Hitler, como confessou a um entrevistador à época em que liderava os metalúrgicos do ABC em greves que ajudaram a derrubar a ditadura militar no Brasil, tornou-se amigo de revolucionários como o cubano Fidel Castro e chegou a ser publicamente elogiado pelo presidente dos EUA, Barack Obama, que o chamou de “o cara”.

O texto deste livro acompanha as mudanças da “metamorfose ambulante”, expressão inspirada na canção do roqueiro Raul Seixas que o próprio líder adotou para se definir, que começou se negando a participar da campanha pela anistia dos exilados, proposta pelo general Golbery do Couto e Silva, e terminou levando ao poder um dos mais notórios deles, o ex-líder estudantil José Dirceu. “Nêumanne escreve porque esteve lá, diante do evento que estava sendo gerado. É irretorquível, portanto, o caráter conservador de Lula e de sua turma. Não dá, depois das páginas deste livro, para tagarelar em ‘esquerdês’ no caso do gárrulo presidente”, escreveu o filósofo e professor de ética Roberto Romano.

O profissional de televisão José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, definiu o livro como “fascinante na forma de narrar, no conteúdo sólido e na construção precisa e detalhada do personagem. Transcende ao Lula. É uma aula de política brasileira”. Segundo o cientista social Leôncio Martins Rodrigues, “neste livro, Nêumanne nos dá uma contribuição extraordinária para entendermos as idas e vindas de quem se definiu como metamorfose ambulante.

LANÇAMENTO NO RIO:

Terça-feira, 16 de agosto, a partir das 19h
Livraria da Travessa
Rua Visconde de Pirajá, 572/ Ipanema
Tel.: (21) 3205.9002

LANÇAMENTO EM S. PAULO:

Terça-feira, 23 de agosto, a partir das 19h
Livraria da Vila
Rua Fradique Coutinho, 915/ Vila Madalena
Tel.: (11) 3814.5811

O QUE SEI DE LULA
Autor: José Nêumanne Pinto
Editora: Topbooks
Formato: 16x23cm
Páginas: 522
ISBN: 978-85-7475-188-7
Preço: R$69,00

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Maurício Melo Júnior - Renunciar palavras, frases inteiras

Nas mãos repousavam os originais de um clássico. Um papel amarelado pelo tempo, descolorido pela ação de tantos dias, iluminado pelo olhar atento de incontáveis leitores. Um clássico. Na página agora frágil e preciosa, num tempo de muito ontem, o autor, determinado e conciso, riscou o título já impresso com a força da máquina tipográfica: O Mundo Coberto de Penas. Sobre a frase riscada, a nomeação definitiva: Vidas Seccas. Assim mesmo, com dois cês, como exigia a gramática da época. 1938.

Alguma mensagem ainda oculta naquele caminho tantas vezes percorrido? Segui em frente debatendo-me com outras tantos riscos, outras tantas correções, outras várias necessidades de se apurar a linguagem, secá-la, enxugá-la, extrair de cada palavra o máximo de suco e delícia. Um ofício danado de incertezas e revisões este de botar no papel as vidas imaginadas.

No mesmo dia me deitei sobre outro emaranhado de palavras escritas numa letra miúda, maldita, ilegível. Um caderno escolar pautado e ocupado da primeira à última página em todos os espaços possíveis. O autor devia ser muito pobre, posto ter economizado cada milímetro do papel, como se temesse faltar brancura onde pontear suas idéias. Branco mesmo, de fato, somente parte da primeira página onde se podia ler com alguma clareza uma única frase: Memórias de um Menino de Engenho, com um risco forte cortando as três primeiras palavras.

Como daquele mato não me pareceu possível retirar algum coelho, parti para outro encanto. Um volume massudo, gordo, farto, coronelístico. A primeira palavra do texto datilografado com esmero foi preservada: Nonada. Também o título, desenhado com caneta colorida, em letra de forma, com certa simetria sobre o papel – Grande Sertão: Veredas.

O que se seguia depois do Nonada era um desembestar de riscos feitos com a precisão de uma régua. Cada uma daquelas frases renunciadas era encoberta pela fúria de muitos riscos, inviabilizando em definitivo sua leitura. Sobrevivia apenas aquilo que era do desejo do autor. Nada além disso deveria prosperar, entrar para eternidade. Nonada, senhor, apenas não se deve correr o risco de macular uma obra com os erros possíveis de serem corrigidos, encobertos.

Num outro caderno, este preenchido na solidão de uma fazenda sertaneja por uma mocinha que tentava se livrar da ameaça de uma tuberculose, a letra de professora bem aplicada foi me dando lições de humanismo e brasilidade. A tal moça, na verdade, de bem comportada tinha apenas a letra e carinha inocente. Era uma danada. Primeiro burlava a vigilância paterna que a queria muito cedo na cama. Quando todos dormiam, ela, sorrateira, acendia uma lamparina e deitada no chão da sala viajava com sua criação.



O curioso é que numa conversa meio antiga a moça agora amadurecida e consagrada confessou-me não saber o paradeiro dos originais daquele livro que não gozava de sua simpatia. “É um livrinho chinfrim”, dizia prenhe de injusta modéstia. Pergunto então ao novo dono como aquilo chegou a sua imensa biblioteca. Contou-me uma estranha saga. Comprou de uma viúva a quem prometeu só revelar sua existência depois que a autora tivesse ido para o sempre. Assim fez e assim pude contemplar a renúncia de uma nordestinada bonita. No título escrito à mão podemos ler A Quinze, e sobre o A inicial um O soberano e definitivo.

Ler todas aquelas pérolas preenchidas de vacilos e determinações nos aponta para a carga humana que pesa sobre os ombros de seus autores.

Há pouco, queimando pestana com um Juazeiro centenário, li emocionado um texto ditado a um datilógrafo pelo padre milagreiro. Depois o patriarca do Cariri fez algumas correções no texto e o assinou. Era uma carta dirigida a um amigo com sugestões à Constituinte de 1932, entre elas um artigo proibindo a venda de terras brasileiras a qualquer estrangeiro, sobretudo quando estas terras estivessem em áreas de interesse primário da nação, como as matas, as vazantes dos rios, o litoral.
Quanta atualidade.

Momento houve em que velho amigo retirou da prateleira um baú de madeira pejado de papéis soltos e aparentemente desconexos. Telegramas escritos no verso, guardanapos de hotéis e restaurantes, folhas avulsas, algumas páginas datilografadas, um carnaval, um cafarnaum desgraçado. Só identifiquei que dali surgiu um livro clássico, o início de uma série fundamental e incompleta, quando li o papel envelhecido que cobria tudo aquilo: Casa-Grande & Senzala.

Seu autor publicou outros dois volumes, como se sabe, e morreu jurando que tinha escrito o quarto tomo: Mausoléus e Covas-Rasas, que teria sido roubado de sua casa. Bem desgraçado o certo ladrão de sabedorias. Havia ainda um livro com a iconografia necessária para melhor se entender a formação social do Brasil, mas este o mestre não conseguiu levar adiante.

Mergulhado nestas lembranças, sentindo o cheiro dos velhos papéis, revejo a solidão necessária ao escritor. Lidar com a palavra e suas armadilhas é ofício para quem ousa desafiar a eternidade. Indubitavelmente a morte nos espreita numa esquina. Ficarão os sonhos que deitamos no papel, caso nenhum deus do esquecimento queira nos brindar com suas graças. Mesmo assim ainda corremos o risco de alguma viúva nos resgatar do limbo.

E como o futuro parece ser uma ordem, uma artimanha da arte e do conhecimento, vale a pena tomar precauções e reescrever, reescrever, reescrever. Literatura é labuta para quem sabe renunciar a facilidades.


domingo, 7 de agosto de 2011

Ordens são ordens






– Quantos maços de cigarro você fuma por dia, meu amigo? – perguntou o médico.
– Fumo quatro maços de Minister, doutor! – respondeu o paciente.
– Pois a partir de hoje você vai ter que reduzir pra apenas um maço de “Minister” por dia. E isso é uma ordem médica, entendeu?
– Sim senhor!

Saiu do consultório disposto a seguir à risca a ordem médica: entrou na primeira tabacaria que encontrou e comprou um maço de “Minister” e três de “Hollywood”.


sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Comer ou se envenenar? Bem vindo ao agrotóxico ao molho

Não só peixe morre pela boca. Nem Nelson Jobim. O viajante solitário perguntou à caveira recostada na pedra, sob um sol causticante:

- Caveira, quem te mandou?
- Foi a boca, meu senhor!

Pois é. Documentário de Sílvio Tendler coloca à mesa o veneno nosso de cada dia. A cada garfada dada na mesa, um dia a menos na nossa vida. Mas não deixe de comer só por causa disso. Como dizia o poeta, "Que me perdoem os famintos, mas comer é fundamental".

Sílvio Tendler teve a coragem de denunciar; tenha você a coragem de ver e divulgar.







terça-feira, 2 de agosto de 2011

Cineas Santos - Sanfonas no sertão

Graças ao talento e à competência do Sivuca, o Piauí perdeu um péssimo sanfoneiro: eu. Menino, a exemplo dos outros moleques da minha aldeia, eu tinha um sonho recorrente: ir a São Paulo, ganhar um dinheiro graúdo, comprar uma sanfona vistosa e voltar para o sertão. Por amor à verdade, devo confessar que não era exatamente a música que me atraía. Vogava entre nós a crença de que o caminho mais curto entre um homem e o coração de uma mulher era o toque de uma sanfona. Havia, contudo, um problema a ser resolvido: superar a minha indeclinável vocação para pedra, herança do velho Liberato. Assim, foram-se irmãos, primos, tios, amigos... Alguns voltaram com suas sanfonas escandalosas, ostentando dentes de ouro, anéis de rubi, sapatos bicolores; outros se converteram em notícias tristes. Quanto a mim, fui ficando, ficando... Um dia, o irmão mais velho regressou, trazendo uma Scandalli vermelha, de 120 baixos. Durante alguns meses, judiei do instrumento e o máximo que consegui foi rascunhar um bolero de contagiante tristura. Uma noite, ouvi no rádio, uma entrevista com o Sivuca. Quando lhe perguntaram se tocar daquele jeito era fácil ou difícil, o endiabrado sanfoneiro respondeu: “Ou é fácil ou impossível”. Entendi o recado: desisti de tornar-me sanfoneiro. Não deixei,contudo, de gostar de sanfona.

Mas toda essa arenga é apenas para dizer da minha satisfação por estar contribuindo, ainda que minimamente, para a realização do 1º Festival de Sanfona de São Raimundo Nonato, que acontecerá, entre os dias 25 e 28 de agosto do ano em curso, na sede do município. A iniciativa não poderia ser mais oportuna. Existem na região dezenas de sanfoneiros, alguns muito bons. No município de Dom Inocêncio, por exemplo, de cada dez garotos, nove aprendem a tocar sanfona. O décimo se faz zabumbeiro ou “cobrador de cota”. Entre as atrações que já confirmaram presença no festival, destacam-se: João Cláudio Moreno, Vagner Ribeiro e o Valor de PI, Ivan Silva e Josué Costa. Estamos negociando a vinda do Adelson Viana, um dos mais completos instrumentistas do Brasil. Durante o evento, haverá palestras, oficinas e workshops com as feras do acordeom. Dividido em duas categorias – amador e profissional – o festival tem como principal objetivo propiciar aos jovens sanfoneiros um estímulo para que possam dar continuidade a uma tradição que, a despeito das dificuldades, tem resistido bravamente. 

É louvável, sob todos os aspectos, a iniciativa da Prefeitura de São Raimundo Nonato ao estimular uma atividade que nunca deixou de ser praticada pelos catingueiros da região. Longa vida ao nosso Festival.


Nem tudo foi cordel encantado

sábado, 30 de julho de 2011

Eu danço, tu danças, todos dançam!


No último mês de junho, mês típico de licor, canjica e forró, o Ministério Público baiano, juntamente com o Tribunal de Contas dos Municípios, focaram seus rojões no excesso festeiro de alguns prefeitos, cujos municípios administrados pelos mesmos se encontram na rabada dos indicadores sociais.

Há uma verdadeira farra com o dinheiro público, principalmente na semana do São João. Justificam os envolvidos que é o desejo do povo, mas o povo também deseja uma boa escola pública para o filho, um atendimento desejável na área de saúde e, principalmente, circular nas ruas com segurança, porém, para isso, não existe dinheiro. 

Como dizia a Zélia Cardoso, figura de triste lembrança, o povo é só um detalhe. Não se vai aos grotões saber a verdadeira opinião daqueles cujo derrame de dinheiro vai fazer falta. O povo de que se fala e opina, é tão-somente meia dúzia de notáveis que, dos seus gabinetes, acha o que o povo deve achar e assim já está achado. E o dinheiro que se aplicaria em benefício duradouro da comunidade, se gasta em uma hora de entretenimento com cachês milionários.

O prefeito Joaquim Neto, do pequeno munícipio de Sátiro Dias, a 205 Km de Salvador, já foi um dos festeiros megalomaníacos, mas hoje reconhece que se gasta muito e desnecessariamente nessas festas por pressão de alguns. Disse que há um verdadeiro baque nas finanças do município e por isso, este ano, reduziu à metade os gastos com contratações e que pretende reduzir mais ainda no próximo ano. 

– É um gasto volátil, passado o evento ninguém mais se lembra. E não dá nem para o prefeito colocar uma placa com seu nome, mas quando a gente vê o saldo bancário da Prefeitura, no dia seguinte, fica arrepiado, com vontade de chorar – completou o alcaide.

O escritor baiano Antonio Torres observou que enquanto as cidades interioranas da Região Nordeste desfigura o regionalismo prestigiando apenas a cultura de consumo, o Sul e Sudeste mergulham cada vez mais de ponta-cabeça em eventos culturais e literários. “Há um fervilhamento cultural acontecendo nas pequenas e médias cidades sulistas que está mobilizando os jovens, as crianças e os adultos”, disse o escritor.

É uma verdade contundente que dói na alma dos operadores culturais nordestinos. Cito, como exemplo, o último acontecimento cultural: Piraí é uma cidade no Vale do Paraíba, estado do Rio de Janeiro, com uma população de pouco mais de 26 mil habitantes. No início deste mês promoveu seu projeto de artes e leituras, com a participação de grandes escritores brasileiros, como Antonio Torres, Ferreira Gullar, Martinho da Vila (como escritor) e Bia Bedran. 

Joaquim Neto, que tem livre acesso nas prefeituras da microrregião de Alagoinhas, disse que os jovens não se interessam por projetos culturais, no entanto reconhece que nunca houve enquete a esse respeito. Nunca foi dada oportunidade a eles de decidir sobre o que seria melhor. Já o professor, poeta e operador da cultura piauiense, Cineas Santos, afirmou que há uma grande má vontade dos prefeitos quando se trata de projetos culturais. Há 34 anos que ele mantém o projeto cultural A Cara Alegre do Piauí, e quando pensa em levar atividade cultural gratuita para o interior do estado, os prefeitos colocam dificuldade até para custear o transporte da trupe.

O poeta Salgado Maranhão, recém-premiado pela Academia Brasileira de Letras, e o escritor Luís Pimentel, também premiado pelo MEC, afirmaram ter participação literária relativamente ativa no eixo Sul-Sudeste, enquanto é baixíssima no Nordeste. “Afora Feira de Santana, a minha terra natal, nunca participei de qualquer atividade literária ou afim no interior baiano”, concluiu Luís Pimentel.

Por outro lado, o jornalista, escritor e apresentador do programa “Leituras”, da Tevê Senado e atual curador da Festa Literária de Marechal Deodoro, em Alagoas, Maurício Melo Júnior, aliviou um pouco a responsabilidade dos prefeitos nordestinos ao reconhecer que o sul maravilha abocanha quase tudo da Lei Rouanet, ficando o resto do país com menos de vinte por cento de projetos culturais patrocinados pela iniciativa privada através da Lei de incentivos fiscais. 

Mas, com Rouanet ou sem Rouanet, a conta vem mesmo é para o bolso do contribuinte. Nenhuma empresa privada patrocina algo se não houver alguma forma de compensação governamental. É o famoso toma lá, dá cá. Mas, perto do que algumas prefeituras do interior baiano gastam com festas, a Lei Rouanet torna-se insignificante. Em algumas cidades o São João é só uma desculpa para se jogar dinheiro fora com artistas midiáticos, de cachês absurdos que em nada tem a ver com o evento junino. Há uma desculturação total patrocinada com dinheiro público sob a complacência dos órgãos fiscalizadores que agora parecem ter acordado. Nada se justifica no mês típico da sanfona, zabumba e triângulo, se gastar fortunas com artistas top de linha da axé music e do sertanejo, em detrimento do bom forró a preço razoável. Foi o que Chico César fez na Paraíba no mês de junho passado. Como secretário da Cultura paraibana, proibiu qualquer contratação com dinheiro público de qualquer artista que não fizesse parte do circuito forrozeiro. Já no estado vizinho, Pernambuco, apesar de ser a terra de bons forrozeiros, a axé music e os sertanejos fizeram a festa. Mas em Pernambuco, ressalve-se, há um grande investimento em projetos culturais ao longo do ano.

Quanto custa uma hora de show do Menudo brasileiro Luan Santana? Quinhentos mil reais, livre de qualquer despesa. Quanto custa uma semana de atividade cultural e literária, com escritores de primeira grandeza? Menos de vinte mil reais. Apesar da diferença brutal entre um evento supérfluo e volátil e um de manifesta e permanente formação cultural, principalmente dos jovens, não há como não se indignar diante da apatia e inércia dos habitantes dessas cidades que a tudo assistem impávidos feito boi de canga.

E quando a banda toca desafinada, dançam todos, sem exceção.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Olimpíada Militar - Hino Nacional Brasileiro

O que é bonito é pra ser divulgado. Assistam à execução do Hino Nacional Brasileiro a seis pianos e com arranjo de Wagner Tiso no encerramento das olimpíadas militares.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Luís Pimentel - Luiz Gonzaga, rei do baião, do Nordeste, do Brasil

Se vivo fosse, ele estaria fazendo 100 anos em 2012. E cantando muito, enaltecendo a vida do homem do sertanejo, significando muito para o seu povo. Nenhum artista brasileiro foi tão importante para a cultura das regiões Nordeste e Norte do Brasil, para a divulgação de como vivia, trabalhava e sofria o trabalhador das roças quanto Luiz Gonzaga do Nascimento, filho do mestre sanfoneiro Januário e da roceira Ana Batista de Jesus, que um dia saiu da pequena cidade de Exu, região do Araripe, no sertão pernambucano, para conquistar o Brasil e fazer sua sanfona conhecida nos quatro cantos do país e também no exterior. A música de Luiz Gonzaga, que foi coroado “Rei do Baião”, tem para o povo do Norte e do Nordeste do Brasil a importância da fé no Padre Cícero Romão. E já subiu ao posto mais alto do pódio onde também merecem medalhas o xaxado de Jackson do Pandeiro, a arte de barro do mestre Vitalino, a poesia de Patativa do Assaré e de Azulão e a sabedoria moleque de Ariano Suassuna.

Foi um artista verdadeiramente popular e mambembe, que corria o Brasil inteiro, ano a ano, fazendo shows das grandes capitais aos municípios distantes e minúsculos. “Seu Luiz”, como era carinhosamente tratado pelos amigos, vivia repetindo que não poderia prescindir de parceiros (teve muitos, Humberto Teixeira e Zé Dantas foram os mais constantes), porque não sabia trabalhar sem um poeta do lado. Achava-se um homem rude e sem traquejo com as palavras, o que não era verdade. Gonzaga tinha, sim, um olhar extremamente poético sobre o mundo e o revelou diversas vezes em entrevistas, participações em programas de rádio e TV e no longo depoimento que deu à pesquisadora francesa Dominique Dreyfus, autora do livro Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga. Explicando a ela, por exemplo, a razão dos longos períodos de chuva que costumavam alegrar Exu, ele disse, em poucas palavras, o que um meteorologista gastaria muito verbo para dizer: “O pé de serra tem sempre essas matas, essas montanhas que atraem as chuvas. Tem um vento que desvia o rumo da chuva. Ela se forma, vem, e quando chega no alto da serra, se divide, parte pra tudo que é canto”.

Lindo. Como linda é toda a sua obra.


segunda-feira, 25 de julho de 2011

Cineas Santos - Aula de Cidadania


 Cineas e Niède

Pediram-me que traçasse um rápido perfil da arqueóloga Niède Guidon. Não precisei pensar muito para fazê-lo: é uma cidadã competente, obstinada e corajosa, cercada de problemas e incompreensões por todos os lados. Venho acompanhando, com o mais vivo interesse, a trajetória da Dra. Niède desde o início da década de 70. Nunca vi ninguém com maior capacidade de entregar-se, de corpo e alma, a uma causa que não é apenas dela; é da humanidade: a defesa incondicional do Parque Nacional da Serra da Capivara. Por ele, Niède morreria se necessário fosse. Aliás, em mais de uma oportunidade já foi ameaçada de morte. Com ardente paciência e com uma coragem que beira à insanidade, a pesquisadora não transige, não faz concessões nem conchavos. Exige que se cumpra a lei, que se respeitem a vida e os registros do que, um dia, foi vivo.

Os desafios e empecilhos, na vida da pesquisadora, apareceram antes mesmo de ela chegar à Serra da Capivara. No início da década de 60, ao ver algumas fotos das pinturas rupestres da serra, decidiu, por sua conta e risco, percorrer os 3.000 Km que separam São Paulo do Piauí encarapitada num bravo fusquinha. O transbordamento de um rio, na Bahia, impediu-lhe a passagem. Não desistiu do intento e já se preparava para fazer o mesmo percurso, quando ocorreu o golpe de 64. A arqueóloga teve de deixar o país às pressas para não ser presa. Na França, longe das garras dos generais de plantão, manteve aceso o sonho de voltar à Capivara. Em 1973, regressou ao Brasil e, finalmente, pôde defrontar-se com “a mais bela visão” de sua vida: os imensos paredões da serra, rendilhados de pinturas rupestres, únicas no mundo. Armou sua tenda no meio da caatinga e, ao longo desses 38 anos, só se afastou da Capivara para buscar recursos em Brasília e no exterior. Com o que conseguiu pôde viabilizar novas pesquisas e criar o Museu do Homem Americano.

É ocioso dizer que sempre conviveu com incompreensões de toda ordem. Se os são-raimundenses encaravam-na com desconfiança, acusando-a inclusive de “furtar peças para vender na França”, seus colegas de ofício não aceitavam sua tese de que, há mais 50 mil anos, humanos já povoavam aquela remota região do planeta. Impávida, lutou pela criação do Parque e vem lutando, obstinadamente, pela conclusão do aeroporto internacional de São Raimundo Nonato, “única forma de tornar o Parque Nacional da Serra da Capivara auto-sustentável”, acredita.

Na semana passada (30/06), na Academia de Medicina do Piauí, com voz cansada e gestos lentos, Niède Guidon ministrou uma magnífica aula de cidadania para uma plateia atenta e emocionada. Ao terminar, deixou em cada um de nós um sentimento contraditório, misto de alegria e tristeza. Alegria por sabermos que existem pessoas capazes de se doar a uma causa tão nobre; tristeza por não sabermos o que será do Parque quando ela se for.

sábado, 23 de julho de 2011

Edna Lopes - O chão de Graciliano


O chão de Graciliano é também o meu chão, não apenas porque nasci nas terras da Fazenda Serra Grande, no município de Quebrangulo, estado das Alagoas, mas porque é o chão dos meus afetos mais caros, da minha raiz brasileira.

O chão de Graciliano se estende para além das fronteiras do chão em que nasceu o Mestre. É o chão da nordestina adversidade, uma terra castigada por um sol inclemente, mas também abençoada com chuvas que fazem esse mesmo chão que racha, virar um tapete de flores.

O chão de Graciliano é um livro especial e deve ser lido com os cinco sentidos e o li assim. Li com os dedos ansiosos pela próxima página, pela próxima fotografia, pelo próximo relato do autor das palavras. Li com a sensação da traquinagem dos banhos escondidos numa cachoeira do Rio Paraíba.

Li com o ouvido da alma atento às lembranças do canto da acauã, do alvorecer entre cacarejos e mugidos, do bater das asas da garça nos açudes,  entre o entardecer de silêncio e solidão, na vermelhidão da boca da noite.

Li com os olhos encantados e às vezes tristes, pelas imagens tão cruas, tão reais, tão duras, mas ainda assim esperançosas, como a fé que anima os viventes das Alagoas, Fabianos e Sá Vitórias de vida severina, com seus corações de acolher o mundo.

Li com o coração saudoso do cheiro das primeiras gotas de chuva na terra ressequida, do cheiro do café torrado e moído por meu pai, do cheiro de estrume e leite fresco, do tacho de doce de leite e de queijo, no fogão de lenha.

Li com a mesma saudade do gosto desse doce e desse queijo, do vapor do milho cozido e da caneca de leite fresco na beira do curral, guardados como “comidas da alma”, na memória afetiva das lembranças mais caras e saborosas.

O chão de Graciliano é um livro especial não só por tudo que me fez sentir e lembrar, mas também por ter sido presente do autor dos textos, o jornalista e escritor Audálio Dantas, que juntamente com sua esposa e jornalista Vanira Dantas, amigos queridos, estiveram comigo no dia do meu aniversário, no dia de Santo Antonio, em São Paulo.
Vale à pena ler e se encantar com os detalhes desse Chão.

Serviço:
O livro de arte-reportagem, “O Chão de Graciliano”, editado pela Tempo d’Imagem, mostra, em texto de Audálio Dantas e fotografias de Tiago Santana, presidente do iFoto, a região de nascimento e criação literária de Graciliano Ramos.

O livro, com versão em inglês e espanhol, é o resultado de várias viagens ao sertão de Alagoas e Pernambuco, a partir de 2002, quando foi feito o primeiro ensaio fotográfico para a exposição “O Chão de Graciliano”, em 2003 (Sesc Pompéia, em São Paulo), considerada a mais importante até hoje realizada sobre a vida e a obra do escritor. O evento, com projeto e curadoria de Audálio Dantas, marcou a passagem dos 110 anos de nascimento de Graciliano e os 70 anos da publicação de seu primeiro romance, “Caetés”, e percorreu várias cidades, entre as quais Maceió (AL), Fortaleza (CE) e em Recife (PE), na Fundação Joaquim Nabuco, com palestra de abertura de Ariano Suassuna.

Os autores e o Chão

Os autores do livro têm em comum a origem nordestina. O jornalista Audálio Dantas nasceu na pequena cidade de Tanque d’Arca, Alagoas, a poucos quilômetros de Quebrangulo, terra natal de Graciliano. Seu texto, uma reportagem literária, registra o tempo e o espaço do escritor em sua região, o passado e o presente muitas vezes se confundem, pois em muitos aspectos as condições do homem que nela vive permanecem praticamente as mesmas.

Cearense do Crato, o fotógrafo Tiago Santana, cresceu vendo os romeiros que buscavam milagres em Juazeiro, cidade do Padre Cícero, ali perto.

Como a obra de Graciliano, o ensaio fotográfico de Tiago é centrado na figura do homem, tendo a paisagem como mero pano de fundo. Na apresentação do livro, o jornalista (também nordestino) Joel Silveira afirma: “O chão percorrido pelo fotógrafo é o mesmo sobre o qual Graciliano construiu a sua literatura, mas não é a paisagem, a terra quase sempre dura e seca, que Tiago recolhe em sua câmera; o que ele registra é o homem que nela vive, sobrevive ou dela se retira quando de todo perde a esperança – eterno Fabiano”.

O Chão de Graciliano é um projeto da Audálio Dantas Comunicação e Projetos Culturais e da Editora Tempo d’Imagem, com incentivo da Lei Rouanet (...)




quinta-feira, 21 de julho de 2011

MEA CULPA, MEA MÁXIMA CULPA


“A alegria é um dos mais reveladores traços humanos,
basta a alegria para revelar as pessoas dos pés à cabeça.”
Dostoievski, in 'O Adolescente'

Certa vez, quando eu escrevia em site coletivo, uma internauta me enviou um e-mail indignada por encontrar algumas piadas na minha página, cuja mensagem deixo abaixo, na íntegra:

“Li na sua pg algumas piadas que, naturalmente não são suas, muitas delas com arquétipos, ou que mesmo não têm nada a ver com cultura, literatura, inapropriadas, portanto, para estarem em páginas que aventam cultura literária, até pq tb e principalmente não são piadas suas. Isso é ético? Sim, pq é preciso ética acima de tudo, se não nunca podemos nos manifestar, principalmente criticando. Os seus textos, por outro lado, entre causos, contos, são razoáveis.”

Nos tempos em que eu andava pelos chamados e-groups, houve alguém que questionou a inserção de piadas na chamada lista, pois eu, todas as manhãs, saudava o povo contando uma piada. Achava ela que piada não era literatura e, para amenizar um pouco, fez uma concessão: piada só com autoria. Tal transigência, em que pese a generosidade da reclamante, por si só já era uma piada. 

Distimia é o nome para a doença chamada mau humor, uma forma light de depressão crônica. Um transtorno mental. Por causa desses transtornados que se escondem por trás de um monitor que meu gás acabou para esses grupos de bate-papo literário. Mas, antes de abandonar o barco das vaidades e veleidades, enviei meu recado ao grupo, cujo teor se enquadra na resposta da minha missivista virtual:

“Façamos um hiato nas nossas prolixas produções literárias e vejamos uma curiosidade obscena chamada de “Gênero Literário”. 

Gênero Literário é aquele negócio que faz você, leitor, identificar, sem medo de errar, o que é um poema, um conto, uma crônica e por aí vai. São quatro, os gêneros: Lírico; Épico; Dramático e Especiais. 

Mas aqui só me interessa um: o Épico.

A principal característica do Gênero Épico é o texto em forma de narração. Divide-se em: Romance; Novela; Conto; Crônica; Anedota; Fábula; Parábola.

Anedota????????????? Pois é. Anedota.

E assim nos ensina o professor Wilson Roberto C. Almeida, em seu livro “Língua e Linguagem”:

“Anedota:
Tem por finalidade despertar graça e seu significado literal é ‘algo inédito’. Hoje, anedota é uma pequena história de conteúdo humorístico”.

Por outro lado, o Aurélio diz:  Anedota -  P. ext. Piada (3).   E o Houaiss? Que será que diz o  grande Houaiss em seu dicionário com mais de duzentos e cinqüenta mil verbetes e que me custou cem reais o cd-rom? Vejamos o que diz em “sinônimos variantes” de anedota: conto, episódio, historieta, piada”. Piada???? Esse Houaiss maluqueceu! Acho que joguei meu dinheiro fora!”

Decerto que as piadas não são minhas, conforme dedução da reclamante. Como não existia o gênero “piada”, no referido site, fiz uso repetido do título daquela revista americana “Seleções Readers Digest” para o tópico de piadas: “Rir é o melhor remédio”. A primeira vez que li a Seleções tinha dez anos de idade, e tenho certeza que a maioria dos internautas já leu uma, alguma vez na vida. E, apesar de ter muitas piadas, é uma revista mais séria do que qualquer site de Literatura. E eles ainda pagam por uma boa piada. A revista Playboy, cuja essência é a nudez feminina, também paga bem por uma piada. E eu escrevia de graça.  A reclamante, em vez de me acusar de aético, devia me agradecer por ter alegrado um instante de sua existência.

As piadas são de domínio público, não têm autoria, e são os textos mais corrompidos que se tem notícia. Cada um conta ou escreve a seu modo e jeito: um, mais engraçado; outro, menos. Nenhum autor se sente diminuído por escrever piada, principalmente os cronistas, quando lhes falta inspiração. Quem nunca viu uma piada em gibi, em algum livro, em alguns contistas e cronistas famosos? No dia que alguém se intitular dono de uma piada, outro anunciará de algum lugar, entristecido com o fenômeno: “Este É o Dia Que o Riso Acabou”.

O riso é sagrado. São Tomás de Aquino, o santo filósofo, dizia que "brincar é necessário para levar uma vida humana".  O riso é uma coisa tão séria que mereceram estudos de Platão e Freud. Desopila o fígado, faz fluir o sangue pelas veias aliviando a pressão arterial, fertilizando a mente e o espírito. Mas, rir ou não, é um direito de cada um. Ninguém é obrigado a rir ou a gostar de piadas. Mas não reconhecer nenhum mérito literário nelas, é negar o obvio e comprometer-se em teorias esdrúxulas, embasadas no desconhecimento ou na pura ignorância dos enunciados da teoria literária.

Quero aproveitar o ensejo e agradecer à minha leitora que, dentro de seu vasto mar de conhecimento crítico, teve a generosidade de achar os meus textos razoáveis.


terça-feira, 19 de julho de 2011

Maurício Melo Júnior - O reino do invisível

Foi assim. Um auditório repleto, coisa de difícil enfrentamento. Neste caso, no entanto, estamos num estágio ainda pior. Um auditório repleto de crianças, quase adolescentes ávidos para trucidar o coitado de um escritor desguarnecido de imaginação e esperanças. Uma horda de canibais modernos vazando curiosidade por todos os poros. O desespero aumentou quando percebi que era eu a vítima do delírio famélico daquela gente miúda, liliputianos a transpirarem sangue pelos olhos. Meu desespero aumentou quando descobri que não transitava no espaço do onírico. Na mais cruel das verdades percebi que não havia saída de emergência. Juro que invejei Hans Staden.

Como um herói despido, pisei o primeiro degrau da escada. Entrei no palco e, ateu convicto, apelei para o Senhor das Esferas – Seja o Deus quiser. E Ele foi generoso com este seu filho desgarrado. As crianças e adolescentes ansiavam que eu falasse de literatura, criação literária, essas coisas que edulcoram nossas vidas tão insossas.

Por que o senhor escreve?

Diante da primeira pergunta não temi, ao contrário desandei um rosário. Escrevo por um motivo muito simples: sou, em verdade, um grande mentiroso, e isso pode ser uma imensa mentira, afinal quem em sã consciência acredita em um embromador? Fato mesmo, buscando os cânones da veracidade, é que a fama de escritor é mais salutar que a de simulador, daí escrevo todas as minhas inexatidões e atendo convites para parolar com pubescentes hodiernos.

O diálogo não se deu desta maneira, afinal muitas das palavras aqui empregadas apanhei agora no dicionário, esse companheiro de horas infindas, mas o tom foi este mesmo. Além do mais quem falar daquela maneira, num arremedo danado do velho Camões, merece bons safanões, imensos apupos.

Esgotadas todas as agressões possíveis aos dicionários, voltemos à frieza dos fatos. Nós escritores – tenho a pretensão de ser um deles – somos vendedores de mentiras. Durantes horas, dias, meses, anos convivemos com pessoas que não existem. Mesmo assim conversamos com elas, compartilhamos todas as suas angústias, todas as suas esperanças. Choramos suas dores, rimos suas felicidades. E se por ventura algum desavisado aventureiro desdizer a mais vil e canalha destas criaturas nos tomamos de mágoas maternais e defendemos estes seres imateriais como quem se bate em favor de um filho.

Somos estranhos, reconheço.

O danado é que quase sempre nos apanhamos em dúvidas: Isso de fato aconteceu?

Ainda outra hora lembrei uma tarde vadia na Câmara dos Deputados. Sempre que conseguia estes espaços corria para a sala onde trabalhava Luiz Berto. E ficávamos ali a falar da vida alheia, mas posando de intelectuais a discutir os destinos artísticos da nação. Foi então que surgiu uma bela e jovem vate abraçada às suas produções. Era de fato uma moça interessada nos meandros da literatura tanto que, informaram-me, cursava letras numa faculdade qualquer. Berto leu as estrofes e, com uma incolor pergunta: o que você acha?, passou-me as folhas. Li. Levemente constrangido sentenciei: Lembra-me o poema Menina e Moça, de Machado de Assis. E a novel bardo pergunta com serenidade: Quem é Machado de Assis?

Terá sido isto verdade?

Vivo com meus comparsas o mundo das inverdades, mas mentimos apenas para a folha em branco. Ou a tela em branco. Resguardamo-nos numa ética que pode parecer estranha. E nos alimentamos de fantasias amando a veracidade, por isso desconfiamos sempre da vida. Ela nos espreita e nos surpreende em cada nova esquina. E há fatos que contamos desconfiando de nós mesmos, afinal a vida também é uma grande mentirosa.

Há tempos, num tempo onde ganhava o necessário para a sobrevivência dando aulas numa faculdade, fui abordado por um rapaz. Sou seu aluno, me garantia. Minha memória não chega a ser uma maravilha, mas também não costuma falhar com freqüência. E como tinha outras atividades profissionais, era fácil lembrar o rosto de cada freqüentador das poucas salas onde ministrava a ciência do jornalismo. Aquela cara, tinha certeza, me era totalmente desconhecida. E o moço insistia: sou seu aluno.

Depois de um breve interrogatório descobri o fato. O rapaz havia se matriculado em minha disciplina, mas já estávamos no final do semestre e ele não comparecera a nenhuma aula. E fazia um pedido singelo, que lhe aplicasse um teste capaz de o aprovar na matéria, pois, segundo me garantia, mesmo faltando a todas as aulas, conhecia em profundidade a matéria.

Que diploma de jornalismo eu poderia dar aquele moço?

Radicalizei. Fale-me sobre Ionesco.

Sobre quem, professor?

Eugène Ionesco.

Diante da cara de espanto do aluno retruquei. Ionesco, um dos pais do teatro do absurdo, era romeno e escreveu um clássico, A Cantora Careca, onde durante todo o espetáculo se procura a tal cantora que nunca aparece, pois simplesmente não existe. Meu caro, você é minha cantora careca. Você não existe.

Vivemos num mundo de delírios, mas procuramos sempre o caminho da sinceridade. É que ler mentiras nos parece um exercício bem honesto.