sábado, 28 de abril de 2012

Luís Pimentel - Pixinguinha, pioneiro e agregador

Um dia, para traduzir uma emoção, uma situação ou um alumbramento, Gilberto Gil cantou assim: “Parecia um prelúdio bachiano, um frevo pernambucano, um choro de Pixinguinha...”. 

 Alfredo da Rocha Vianna Jr. (1897–1973), o Pixinguinha, é em tudo e por tudo um pioneiro. Por isso que o dia do seu nascimento, 23 de abril, foi transformado em Dia Nacional do Choro. Morreu dentro de uma igreja (após participar de um batizado), num dia 17 de fevereiro (será que foi durante o carnaval?) no que pode ser considerado também um desencarne verdadeiramente original e pioneiro. 

Um dos pioneiros da música brasileira, entre os primeiros a popularizar o sopro e o choro, é chamado por alguns de “pai da música brasileira”. Flautista virtuoso, agregador de talentos, maestro soberano antes de Tom ganhar o título, arranjador que já era moderno no início do século passado e compositor genial, Pixinguinha é o nome por trás e à frente de nossas emoções mais genuínas, mais brejeiras, mais carinhosas. Soube misturar, com humildade e elegância, a modernidade de Ernesto Nazareh, Chiquinha Gonzaga e Antônio Callado com os ritmos africanos, estilos europeus e a música negra americana – num lamento batuta, que atravessa gerações. Os maiores sucessos da chamada época de ouro da música popular brasileira tem arranjos, ou acompanhamentos, ou até mesmo inspiração de Pixinguinha.

Pioneiro em tudo, foi o primeiro maestro-arranjador contratado por uma gravadora no Brasil. Puxou o cordão da profissionalização do músico brasileiro, reuniu o que havia de melhor no regional Oito Batutas e foi pioneiro em sair pelo mundo, mostrando o que a Praça Onze, o Catumbi e a Rádio Nacional tinham. 

Todo músico brasileiro sabe. Todo amante da música sabe. Pixinguinha – antes de Noel, de Cartola, de Tom e de Chico – mostrou ao mundo que no samba, no maxixe, no lundu, no jongo ou no choro também somos muito bons de bola. 


quinta-feira, 26 de abril de 2012

Das coisas que não entendo e não encontro explicação

O Museu do Descobrimento do Brasil, na cidade de Belmonte, Portugal, conforme alguns vídeos, é coisa do primeiro mundo – só tinha que ser, né? Totalmente interativo, contém um erro histórico: o índio que recebeu Cabral usa roupa de tecido industrializado e o arco e flecha é de um primoroso acabamento a torno. 

No entroncamento da AL-101 com a cidade histórica de Marechal Deodoro e a paradisíaca Praia do Francês, o prefeito resolveu erguer um painel em tamanho natural representando o dia que Marechal Deodoro tirou o chapéu e gritou “Viva a República.” O tal painel foi feito em segredo, coberto por tapumes. No dia da inauguração, o prefeito, orgulhoso e sorridente, pôs abaixo os tapumes sob aplausos e hurras. Eis que o grito de um gaiato no meio da multidão pois limão no sorriso do prefeito e dos seus puxa-sacos: 

- Mas esse aí é Dom Pedro no Grito do Ipiranga! 


Na Salvador de ACM prefeito, ele contratou os serviços profissionais do escultor Mário Cravo para fazer um monumento à mulher baiana no pé do Elevador Lacerda. No dia da inauguração Mário Cravo anunciou orgulhosamente sua obra de arte como “a sensualidade da mulher baiana” e foi muito aplaudido pelos puxa-sacos de ACM. Os que não tinham o que fazer e foram ver a inauguração, juntamente com alguns bêbados do Mercado Modelo, só conseguiam enxergar dois pares de sacos escrotais em oposição. Um gaiato resolveu quebrar o clima de beija-mão de ACM: 

- Mas isso aí tá parecendo os culhões de ACM! 

E, durante décadas, o que valeu foi o grito do gaiato. 

Não sou especialista em arte, principalmente, pintura, mas tenho por mania ser escravo da linha do tempo. A foto acima é de um quadro de um famoso pintor lá pras bandas do chão de Graciliano Ramos, afixado na antiga estação de trem de Quebrangulo onde hoje funciona um restaurante, e retrata bem a falta de compromisso do artista em ser fiel ao espaço-tempo, principalmente quando se pinta de memória. 

O trem deixou de correr nos trilhos nos anos setenta, portanto, o pintor deveria tomar essa década como referência, mas maculou sua obra de arte ao colocar a logomarca dos Correios e Telégrafos criada em 1990. E mais: pôs um orelhão de telefone público na porta da agência postal, coisa inexistente na cidade à época das locomotivas. 

É como diz o ditado: de bunda de nenê, da caneta do juiz e da cabeça do artista a gente nunca sabe o que vai sair. 


quarta-feira, 25 de abril de 2012

Ibys Maceioh com Heródoto Barbeiro no Jornal da Record News

Grande momento de Ibys Maceioh com Heródoto Barbeiro na abertura e encerramento do Jornal da Record News no dia 09 de abril de 2012. 
Para ver em tela cheia, click nas setinhas.


segunda-feira, 23 de abril de 2012

Cineas Santos - Das coisas impossíveis

         Sempre que faz referência ao Salão do Livro do Piauí, o escritor Edmílson Caminha, citando autor que desconheço, afirma: “Se os meninos soubessem que era impossível, não teriam feito”. Exagero à parte, a sentença contém muita verdade. Quando, em 2003, os professores  Wellington Soares, Luiz Romero e Nilson Ferreira me propuseram participar do que, à época, me pareceu uma  aventura errante, fui taxativo: estou fora! Eu tinha as minhas razões. Durante cinco anos, a duras penas, realizei, praticamente sozinho, cinco edições do  Seminário Língua Viva, tarefa para Hércules nenhum botar defeito. Por minha conta e risco, eu convidava grandes autores (Celso Pedro Luft, Antônio Houaiss, Evanildo Bechara, Napoleão Mendes de Almeida, Celso Cunha, entre outros), alugava espaço, contratava som e, como um camelô, saía pelos colégios de Teresina tentando convencer os diretores das escolas a liberarem (na verdade, libertarem) os professores para que pudessem participar do evento. Colecionei toneladas de nãos. Eu estava farto daquilo.

    Os três mosqueteiros voltaram à carga e, desta feita, já me trouxeram um projeto formatado, muito embora nenhum deles tivesse a menor ideia do custo de um salão e, menos ainda, de onde sairiam os recursos para bancá-lo. A bem da verdade, nenhum de nós tinha qualquer experiência na realização de grandes eventos. Não bastasse isso, éramos (somos ainda) apenas um punhado de duros. Mas o Wellington é movido a desafios e acabou me arrastando para a empreitada. Assim, na primeira semana de julho de 2003, realizamos a primeira edição do SALIPI no velho Centro de Convenções de Teresina. De todas as dificuldades, a maior foi convencer os livreiros a participar. Com a colaboração de alguns  parceiros – Governo do Estado e Prefeitura de Teresina, desde a primeira hora – realizamos o que, aos olhos de muitos, parecia impossível: um grande e belo salão. Eu não teria a menor dúvida em afirmar que o SALIPI só se viabilizou porque os teresinenses adonaram-se dele. Aspiração antiga, o público compareceu em peso, obrigando os incrédulos a prestarem atenção nele. A mídia piauiense, por seu turno, acreditou no Salão e deu-lhe a necessária visibilidade.

    Ao longo desses anos, tivemos muitas decepções e grandes alegrias. Para mim, a maior delas foi receber de uma cidadã do povo um cofrinho de barro com um punhado de moedas e o pedido de desculpas: “O senhor me desculpe, mas espero que dê para pagar o almoço de um dos convidados”. Não deu porque aquele cofrinho continua fechado: tornou-se uma espécie de amuleto. Como um objeto sagrado, é inviolável.

    Aos trancos e barrancos, chegamos à 10ª edição do SALIPI, enfrentando as mesmas dificuldades  da primeira: excesso de problemas e escassez de recursos. Ainda assim, podem apostar que faremos o melhor que pudermos. O Salão já não nos pertence, o que significa dizer: já nem podemos pensar em desistir.

    Impossível saber aonde essa aventura vai dar, mas parece que até a grande mídia já descobriu que a SALIPI existe. Para mim, que ultimamente tenho participado pouco, ver milhares de crianças da periferia da cidade chegarem ao Salão, como gralhas felizes, já me diz que valeu a pena. O Poeta tem razão: “Tudo vale a pena/ se a alma não é pequena”. A nossa é do tamanho do universo.
   

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Luís Pimentel - No Bip Bip, onde se resolve tudo

Copacabana – como se sabe e reproduziram os cronistas desde os tempos de Rubem Braga – tem muitas histórias. As melhores, como é tradição em qualquer bairro, aconteceram nos bares. As melhores entre as melhores, no balcão, nas mesas ou na calçada do Bip Bip. 

Ouvi muitas, vi algumas, essa eu guardei.

A roda de samba domingueira corria no melhor dos mundos, com os violões do Chico Genu, do Gomide, do Fernando Falcão e do Flávio Feitosa; cavaquinhos do Paulinho, do Ari Miranda e do Alex; percussão sob a batuta e o batuque do Jenner, do Bené, do Jovem, do Marcelinho, do Ismael, do Tibau, da Aretha e da Manu. Luxo só.

Alfredinho acabara de dar um esporro num cliente e Paulinho do Cavaco repetia “no alto São Jorge matando um dragão”, do seu samba-hit Saudades dos meus botequins, quando a deusa invadiu o recinto. Blusinha decotada, saiotinha modelo abajur-de-periquita, um sorriso-implante de mudar qualquer repertório. Alguém se lembrou do Geraldo Pereira (ô, ô, ô, que samba bom!) e puxaram Chegou a bonitona. (“Olha só, ô pessoal, que bonitona/Olha o pedaço que acabou de chegar...”). A homenageada rodopiou o balaio entre as cadeiras e todos fizeram Ooooooohhh! Todos. Até Aretha e Manu.

A moça se informou sobre as regras da casa – o freguês se serve à vontade, Alfredinho anota o nome num pedaço de papel de pão e depois, se ainda não estiver de porre, cobra a conta – e soltou a voz na cantoria, rebolando mais que ministro na hora de explicar o inexplicável. Final dos trabalhos, após perguntar quanto devia, ela falou baixinho no ouvido do Alfredo, molhando os lábios com a língua e acomodando um peito em seu ombro:

– Desculpa, Ném, mas é que estou desprevenida.
– Sem problemas – disse ele, dando um golaço no vinho sagrado. – Aqui nós resolvemos tudo. 

E chamando duas auxiliares voluntárias:

– Kátia e Simone, minhas filhas, peguem a caixa de calcinhas lá em cima. Escolham uma tamanho GG aqui para a nossa amiga.


terça-feira, 17 de abril de 2012

Maria Helena Bandeira - Muito louco, bicho!

A carta que mais amo no Tarô é o Louco. Ele é também o andarilho, o que não tem regras fixas, e permaneceu, até hoje, como o coringa - o que não se enquadra a nada e se adapta a tudo, a que muda o jogo.

No livro "Jung e o Tarô - uma jornada arquetípica" , da Sallie Nichols, a epígrafe do capítulo sobre o Louco é um verso do William Blake - " Se o homem persistisse em sua loucura, tornar-se-ia sábio" Só que eu discordo da idéia de tornar-se sábio. A loucura em si é o caminho. O meio é a mensagem.

O louco tem a função do bobo da corte, mostra que o rei está nu. Mas como é muito desagradável este desnudamento, a sociedade estabelecida o veste com roupas de palhaço. Eis porque o humor pode ser tão corrosivo. É permitido a ele ser Louco. O Louco diz o que ninguém quer ouvir, faz o que ninguém se permite, vai onde outros tem medo de ir.

É o outro que nos rotula loucos. Somos o que somos, mais o que nos colocaram como sendo. Sem o outro talvez eu não fosse totalmente. Sei lá. Este negócio de acerto e erro acaba nos enredando. Se acerto, mas penso que erro, estou errada ou certa? Estou errada, porque penso que erro quando acerto. Mas estou certa porque acertei. Então errei em me achar errada.

Melhor deixar estes conceitos de lado. Não existe certo e errado em si, mas no contexto. Há um excelente conto russo - A conversão do diabo, de Andreiev - em que um diabo já velho e cansado tenta se converter ao catolicismo com a ajuda de um, inocente e também velho, pároco de aldeia. Os dois quase se matam porque é impossível explicar para a lógica racional do diabo as contradições da ética cristã. Tudo depende do contexto - matar, roubar, trair. Não há atiradores de pedra imunes ao erro.

Minha corda bamba é o paradoxo da loucura que se pensa desde sempre - manter controlado o delírio, enquadrá-la no racionalismo sem deixar que ele me manipule, entender meus demônios. Há uma lógica desagradável e implacável por trás da loucura. Talvez ela tenha me impedido de ser maior do que eu.

Ser racional é basicamente filtro. A loucura é a expansão da mente a um nível além do permitido para bem viver. O racional peneira o trigo e nos vende as lentilhas da realidade. Trocamos o paraíso pelo possível. Mas é o único jeito. A loucura é solitária.

O discurso do Louco é a não-linguagem. O discurso do Eu livre da realidade imposta.
O Eu experimenta Eu e os Outros. O Louco talvez se aproxime do bebê que ainda não separou sujeito de objeto. O sentimento oceânico da expansão de consciência pode ser uma memória desta fase.

Enfim, tudo não precisa ser como sempre foi. Existem outras formas de perceber.
Existe uma velha piada que diz - O normal sabe que dois mais dois são quatro. O psicótico pensa que dois mais dois são cinco. O neurótico sabe que dois mais dois
são quatro, mas é isto que ele não pode suportar.

A loucura pode ser nossa moeda para sobreviver num mundo sem sentido. Ou paga ou desce.


sábado, 14 de abril de 2012

Luís Pimentel - Garras

A senhoria tinha garras afiadas, sempre pintadas de um vermelho sangue, da mesma cor dos lábios que ela vivia mordendo e exibindo, fazendo beicinhos.

O que matava era o cheiro de vodca barata.

– Quero que você seja muito feliz aqui.

É possível ser feliz dentro de um quarto minúsculo no Catumbi? Engoli em seco:

– Não tenho do que me queixar.

Estava quase na hora em que o amante da senhoria costumava chegar. Era enorme. Dava dois de mim.

– Você tem uns olhos lindos – ela gemeu.

Ele empurrava a porta sempre a essa hora, com cara de poucos amigos. Às vezes dizia uns palavrões. Às vezes cobria a infeliz de pancada.

– Gosto muito desse seu sorrisinho safado – ela insistiu.

O amante era cabo ou soldado da polícia, encostado por
invalidez: perturbações mentais.

Tem hora que parece que Deus abandonou a gente.

– Não precisa ficar nervoso, seu bobo – a mão melosa em minha perna trêmula.

– Seu marido deve estar chegando a qualquer momento.
– Não é meu marido. E hoje ele chega mais tarde.

As garras no meu queixo, tentando me beijar à força. O cheiro e o gosto de vodca me deixavam tonto. A língua no meu pescoço, o joelho esfregando no meu colo.

– Essa coisa não fica dura?

Fechou as janelinhas do cubículo e arrancou as roupas às pressas. Muito feia, coitada. Me fechei, as mãos protegendo as partes ameaçadas. Fez pose de zangadinha:

– Não me quer?
– Não é bem isso.

A chave na porta, graças a Deus. O amante chegando do bar, se arrastando pesado. A infiel correndo para o seu quarto, catando roupas íntimas pelo chão. Tranquei a porta por dentro e respirei fundo. Só consegui ouvir o grito, cadela, e o som do que deve ter sido um soco. Ou um chute no armário.

Tomara que não tenha matado a pobrezinha.

Do livro “Um cometa cravado em tua coxa” (Editora Record, 2003)

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Roberval Pereyr lança livro de poesias: Mirantes

O MAC (Museu de Arte Contemporânea de Feira de Santana) abre seu espaço para o lançamento do livro Mirantes, do poeta Roberval Pereyr, o evento ainda conta com a participação musical de Camila Gonçalves, Tito Pereira e Lucas Pereira. Vencedor do prêmio Braskem 2012, oferecido pela Academia de Letras da Bahia, Roberval Pereyer brinda os leitores com as paisagens poéticas de Mirantes. Com uma índole profundamente lírica, seus versos primam pelo refinamento com que transformam a matéria-prima das emoções em poesia. Como diz Antonio Carlos Secchin: “Mirantes é cabal demonstração de como é possível conciliar, em alto nível, despojamento verbal e densidade reflexiva”.

No próximo dia 13/04 (sex) à partir das 20h... Não percam!!!


De Mirantes, de Roberval Pereyr

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Daquilo que não entendo, desentendido está


Certa vez, visitando o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, havia uma exposição cujo nome do pintor me foge à memória. Lembro-me que havia um quadro totalmente em branco com um minúsculo ponto preto no centro. Os visitantes se babavam e diziam “ooooohhh” de admiração. Lembrei-me de uma piada que cabia certinho para o momento. Em uma exposição de um artista louco, ele tentava explicar sua obra-prima, um quadro também em branco, mas sem o ponto do meio:

– Este é o quadro do Mar Vermelho quando Moisés conduzia os judeus na fuga do Egito – disse o pintor.
– Mas cadê o Mar Vermelho? – perguntou alguém no meio dos visitantes.
– Aqui foi na hora que Moisés abriu as águas do Mar Vermelho. Você nunca leu a Bíblia não?
– E cadê Moisés?
– Está à frente dos judeus.
– E cadê os judeus?
– Já passaram.
– E cadê os egípcios?
– Ainda não chegaram.

Se essa exposição fosse aquela do MAM carioca, ainda haveria uma última pergunta:

– E esse ponto preto aí no meio?
– Ah! Isso aí é o cotoco do lápis que Moisés escreveu Os Dez Mandamentos – responderia o pintor doido, cheio de razão. 


terça-feira, 10 de abril de 2012

Cineas Santos - Fama e brilhareco

Adoniram Barbosa era uma figura singular: sendo um dos maiores compositores da MPB, comportava-se como um cidadão comum. Meio triste, um tantinho irônico, percorria os bairros de sua predileção – Brás e Bexiga – com seu indefectível chapéu de feltro, bigodinho cafona, gravatinha borboleta e paletó de cor inescrutável. Gostava de fumar, beber e prosear com gente do povo. Foi, seguramente, o maior cronista musical de São Paulo. O homem que deu voz aos “despossuídos”, inclusive, aos vagabundos.

Conta-se que, certa vez, a Prefeitura de São Paulo resolveu homenageá-lo por um motivo qualquer. Armou-se um belo palco, convidaram-se intérpretes famosos, autoridades, imprensa e picaretas em geral. Meio deslocado, Adoniram recebia cumprimentos e empurrões. Lá pelas tantas, o homenageado já estava no fundo do palco. De repente, passa por ele o secretário de cultura do município. Sem elevar a voz rouca, o compositor teria perguntado: “Ô meu, não dá pra transformar isso tudo em...” e fez o gesto inconfundível de esfregar o indicador no polegar. O secretário sorriu amarelo, deu um tapinha nas costas do compositor e misturou-se aos notáveis. Sem ter o que fazer naquele palco estrelado, o autor de Saudosa Maloca desceu, procurou o botequim mais próximo e foi tomar sua cerveja e pitar seu cigarrinho sossegado. Na hora de pagar a conta, comentou, irônico: “Tudo isso não me rendeu uma birita”.

Por que me lembrei disso? Bem, na semana passada, fui procurado por uma cidadã jovial, elegante, loquaz. Depois dos elogios de praxe, o pedido: “Professor, o senhor poderia me indicar um bom professor de português? Com essas novas regras, está todo mundo confuso. Queremos oferecer um curso básico de português aos nossos funcionários”. A cidadã é diretora de uma instituição. Provoquei-a com a pergunta: pode ser velho?. A moça sorriu: “Claro, professor”. Fechei o diálogo: estou à mão. Contrate-me e começaremos amanhã mesmo. A jovem senhora não escondeu o espanto: “O senhor?! Impossível: o senhor é famoso e não podemos pagar-lhe”.

Sem querer comparar-me ao Adoniram: ele era um gênio; eu, um simples come-giz, repito, com outras palavras, o que ele afirmou: a minha ‘fama’ não me rende um mísero contrato temporário de trabalho. Curiosamente, sou solicitado a cada instante para proferir palestras, escrever prefácios, e “abrilhantar” festa de formatura; de batizado de cachorro; de casamento de boneca; de enterro de anão... De graça, é claro!

Minhas irmãs, meus irmãos, espalhem aos quatros ventos: sou apenas um professor. Não quero cargos, homenagens, louvações. Quero apenas que me contratem para ministrar aulas. É certo que não sei muito, mas como já errei o bastante, posso evitar que meus alunos cometam os erros que cometi. Posso ensinar-lhes, por exemplo, distinguir fama de brilhareco.


segunda-feira, 2 de abril de 2012

Genivaldo do Nascimento - O sertão amaldiçoado

No universo da magia, geralmente o feitiço só dá certo se for acompanhado por palavras. Elas funcionam como a ponte entre o mágico e a ação a ser realizada por ele. Não raro são termos estranhos ao nosso cotidiano, como se servissem para simbolizar a superioridade de quem as profere. Na construção dos enunciados, pode acontecer também esse jogo de feitiço entre os interlocutores. Vejamos, mesmo que brevemente, o caso da invenção do Sertão brasileiro nos últimos 100 anos a partir do “feitiço” de Euclides da Cunha.

É consenso no meio acadêmico que o ponto de partida para a construção imagético-discursiva do Sertão foi o livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Nessa obra, como se estivesse a fazer um feitiço, esse escritor do Sudeste, o qual passou menos de dois meses na Bahia, sentenciou: “Intentamos esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil. E fazemo-lo porque a sua instabilidade de complexos, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem, as tornam talvez destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização” (grifo nosso). Essa obra, que faz 110 anos agora em 2012, enfeitiçou quase tudo que se escreveu depois sobre o Sertão e o sertanejo, jogando uma “maldição” sobre essa terra e esse povo. Falamos maldição porque, numa perspectiva racional, fica difícil compreender como o Sertão caminhou/avançou e ainda existem muitas pessoas que só conseguem vê-lo como se estivessem em 1900.
Vejamos alguns exemplos que comprovam o feitiço exercido por Euclides da Cunha sobre diversas gerações de escritores, pensadores, artistas e cidadãos comuns. Exemplo 1: “Você é um bicho, Fabiano [...] Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos” (trechos do livro Vidas Secas, de 1938, do nordestino Graciliano Ramos). Exemplo 2: “O principal meio de transporte no Sertão é o jegue”; o sertanejo é “de aparência indolente e tostado pelo sol, com pele esturricada como as próprias plantas espinhentas e retorcidas que o cercam”; “Como não possui automóvel, o sertanejo leva um dia inteiro transportando, sobre a cabeça ou no lombo do jegue, uma lata de água que mal dá para saciar a sede da família” (trechos do livro A Caatinga: a paisagem e o homem sertanejo, de 1994, de Samuel Murgel Branco, premiado professor da USP morto em 2003). Exemplo III: “No Sertão encontramos o silêncio. Lá falta tudo. É um limite imposto por Deus aos sertanejos, mas, ao mesmo tempo é um lugar amado por eles” (trecho da fala de Maria Bethânia publicada pelo Jornal do Commercio no dia 29 de março de 2012. Repetimos: 2012, ou seja, 110 anos depois de Euclides da Cunha! A propósito, o título da matéria é “O Sertão fértil de Maria Bethânia”-grifo nosso).

Como, do ponto de vista racional, entender a afirmação de Bethânia, nordestina e intelectual, de que no Sertão “falta tudo” e que há “um limite imposto por Deus aos sertanejos”. Como assim “limite imposto por Deus”? O que os sertanejos fizeram a Deus para terem um “limite/castigo”. Falta tudo no Sertão, Bethânia? E o vinho, a uva e a manga do Vale do São Francisco que você consome no camarim antes e depois dos seus shows? 
Portanto, é preciso destruir o feitiço que Euclides da Cunha, há 110 anos, jogou sobre o Sertão. Obviamente não podemos ignorar os fabianos ainda existentes nessa região. Porém, é necessário, sim, uma atualização discursiva para quebrar essa maldição. Se isso não acontecer, dificilmente impediremos certas pessoas de dizerem coisas do tipo: "Nordestino não é gente. Faça um favor a São Paulo, mate um nordestino afogado" (Mayara Petruso, enfeitiçada em 2010).

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Genival do Nascimento é mestre em Educação. Assessor Pedagógico do Geo Petrolina. Professor da UPE e FACAPE.

domingo, 1 de abril de 2012

A Paixão de Cristo em Nova Jerusalém

Fazenda Nova, Pernambuco, a um passo de Caruaru e a quatro horas de Maceió. É lá que fica Nova Jerusalém, o maior teatro ao ar livre do mundo, onde é encenada a concorridíssima peça “Paixão de Cristo”. Até certo tempo atrás o elenco era formado por atores locais, amadores, que ganharam prestígio e fama Brasil afora. E, como tudo que é bom e faz sucesso a Globo compra para poder estragar, o que se vê, hoje, é um desfile de estrelas globais ofuscando o brilho da encenação.

No ano passado eu estava lá, andando de um lado para o outro, acompanhando o calvário de Cristo, torcendo e sofrendo com a sorte ingrata do filho do Todo-Poderoso. Entra ano e sai ano, a mesma cena, os mesmos argumentos, o mesmo roteiro, e o povo sofrendo na expectativa de um novo final. O julgamento, Pilatos lavando as mãos, o povo gritando Barrabás, Cristo cabisbaixo, sem entender sua sina, e a choradeira sincera dos mais sensíveis, incompreendidos com a falta de ação do Salvador. Se nem a si próprio Ele salva, como pode salvar a humanidade? E os judeus, como puderam entregar um inocente ao carrasco só por questão de birra religiosa? Pilatos não queria assumir o ônus da condenação ou de se comprometer com a História e por isso deu-lhes a chance de salvar a pele do seu Messias, mas não quiseram.

- Solto Jesus de Nazaré ou o ladrão Barrabás? – perguntou o Pilatos de Nova Jerusalém, um ator global cujo nome me foge à memória. Os figurantes do espetáculo uniram a voz aos espectadores e um coro retumbou forte e uníssono, se espalhando pela imensidão da caatinga, feito trovão em raras noites de tempestade:

- Solta os dois e prende o Tom! Solta os dois e prende o Tom!

sábado, 31 de março de 2012

Cineas Santos - A vida sem Chico Anysio

Tivesse de definir Chico Anysio numa única frase, eu recorreria a Mário de Andrade: “Uma tempestade de homem”. Chico não era um; era uma legião. Locutor, roteirista, compositor, poeta, contista, ator, pintor e, acima de tudo, humorista. Se o humor é, como afirmava Millôr Fernandes, a quinta-essência da arte, Chico Anysio era a quinta-essência do humor brasileiro. Quando falo humor, estou pensando naquele conceito magistralmente concebido por Ziraldo: O humor, numa concepção mais exigente, não é apenas a arte de fazer rir. Isso é comicidade, ou qualquer outro nome que se escolha. Na verdade, o humor é uma análise crítica do homem e da vida. Uma análise não necessariamente comprometida com o riso; uma análise desmistificadora, reveladora, cáustica. Humor é uma forma de tirar a roupa da mentira, e o seu êxito está na alegria que ele provoca pela descoberta inesperada da verdade. (Veja-1969).

Há quem afirme que Chico Anysio foi apenas um “criador de personagens engraçados”: ao todo, criou 209. Permitam-me discordar. A exemplo de Fernando Pessoa, Chico criou heterônimos, se é que se pode aplicar o termo ao caso. Como bem afirma Boni: “Seus personagens não eram uma peruca e uma maquilagem; eram uma maneira de sentir”. Poderia ter acrescentado: personagens com identidade, história de vida, virtudes e defeitos, como qualquer ser humano. Ao encarnar Azambuja ou Popó, para citar apenas dois exemplos, Chico comportava-se como o cavalo, naquela acepção usada na umbanda, a conduzir criaturas com existência própria.

Mestre do humor, Chico Anysio foi também um exemplo de generosidade: na famosa “Escolinha do Professor Raimundo” acolhia os humoristas mais velhos, alguns em dificuldades financeiras, e, ao mesmo tempo, abria caminho para os novos. O depoimento emocionado da atriz Cláudia Gimenez o confirma: “Ele me inventou. Eu era inexperiente e ele me colocava em frente à câmera e dizia: ‘eu sou mais você’. Nunca existiu um artista maior que o Chico. Era completo”. Chico que, às vezes, se comportava como um ressentido, merecia estar vivo para ver o quanto é amado do povo brasileiro. Não fosse lugar comum, diríamos: a vida perdeu muito de sua graça com o silêncio de Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho. Que fique o exemplo.


quinta-feira, 29 de março de 2012

Antonio Risério - Primavera baiana

Embora o meu sentimento seja de urgência, quero conversar com calma, que o assunto é sério: Salvador.

Numa de suas peças de teatro, Shakespeare faz a pergunta fundamental: “O que é a cidade, a não ser as pessoas?”.

E me lembro disso porque nesta semana um amigo me disse, em tom de quase desencanto: “Nosso maior problema, em Salvador, é que não sabemos nos ver como cidadãos”. Está certo. E, neste sentido, o maior problema atual de Salvador somos nós mesmos.

A cara de Salvador não pode ser a da “grand vendeuse”, a da balconista-mor Ivete Sangalo, em pose autoritária, dizendo a frase imbecil: “Quem tem força, tem preço”.

Em Salvador, hoje, devemos dizer coisa bem diferente: precisamos levantar a cabeça, recuperar a disposição, buscar o entusiasmo, nos mobilizar para dizer, alto e bom som, que não aceitamos o que estão fazendo com a nossa cidade. Chega de passividade. Se o que está acontecendo com Salvador (avacalhação e destruição da cidade) estivesse acontecendo em Porto Alegre, Curitiba ou São Paulo, não tenham dúvida: gaúchos, curitibanos e paulistanos teriam subido nas tamancas e saltado na goela da prefeitura.

E nós, não vamos fazer nada? Felizmente, parece que sim, que é possível. As pessoas começam a protestar aqui e ali. Exemplo disso, entre outros, foi o artigo que Fredie Didier Jr. publicou neste jornal, no domingo passado. “Salvador não passa por um bom momento histórico”, escreveu Didier. “Não falo da crise em sua monumentalidade: Pelourinho abandonado, metrô inacabado, ruas sujas. Embora grave, este tipo de problema é de solução mais fácil. Não me refiro, igualmente, à violência que nos assola. A violência impressiona, mas não destoa do que acontece em outras metrópoles. Falo de outra espécie de crise, mais profunda e de efeitos mais deletérios. Salvador está em crise existencial”.

A cidade apequenou-se, conclui Didier. Para, então, incitar: “Temos de retomar a nossa caminhada e refundar a cidade. Dar início a uma espécie de Renascença baiana”.

Mais: “Salvador merece que façamos tudo isso por ela e a gente merece voltar a sentir orgulho da nossa cidade”. Perfeito. Já um outro amigo meu, apropriando-se da expressão hoje em voga para falar das grandes transformações que rolam no mundo árabe, me apareceu com uma frase ótima: “Precisamos promover alguma espécie de primavera baiana”. Sim, acho que está mais do que na hora de começar isso. É claro que não se trata de nenhuma comparação com o Oriente Médio.

O que queremos é dar um jeito na cidade. Salvador sofre, hoje, com uma coincidência infeliz: uma desprefeitura que mescla estupidez e incompetência e um governo estadual omisso diante dos problemas da cidade (e, como me diz ainda um outro amigo: “Menos com menos só dá mais na abstração matemática; na vida real, menos com menos dá menos ainda”). Mas não estamos condenados a assistir a isso sem dizer ou fazer nada. Em nome de nossas melhores tradições contestadoras, estamos na obrigação de nos mobilizar. Podemos, sim, promover uma primavera baiana.

Basta querer. Somar as nossas vozes nessa direção. Na mídia tradicional e na internet. Em blogs, no facebook, no twitter. Vamos bater na mesa e dizer que cidade nós queremos. Salvador, hoje, não é somente uma cidade abandonada, que está sendo progressivamente destruída. Mais que isso: é uma cidade humilhada. E não temos razão alguma – existencial, cultural, política ou histórica – para engolir esta humilhação. A hora é de aglutinar protestos isolados, manifestações soltas, vozes pontuais.

Ou nos aproximamos e batemos na mesa, para reverter a situação atual e escorraçar a estupidez e a inércia, ou a cidade vai naufragar de vez. É hora de Salvador voltar a ser ativa, altiva e criativa – como já foi em outros momentos.

Em nossa história, temos diversos exemplos de enfrentamento e superação de reveses e crises. Não é agora que vamos nos comportar frouxamente, como se esta cidade fosse uma cadela trêmula, com o rabo entre as pernas – e não o lugar onde teve início a aventura civilizacional brasileira.

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