domingo, 9 de fevereiro de 2014

4 As lendas de Aruanda - Nascem as Religiões Híbridas Brasileiras



A pajelança era o culto praticado pelos índios que os europeus encontraram quando aportaram nas terras de Pindorama. Vistos como “selvagens” pelos invasores, um batalhão de padres jesuítas invadiu suas tribos para levar a “luz” dos ensinamentos cristãos. Dessa catequese feita a ferro e a fogo, nasceu o primeiro culto dito sincrético brasileiro, chamado de Caboclos Encantados, Encantamento ou Encantaria. Era uma mistura de espíritos caboclos cristianizados com o transe mediúnico dos pajés.

Os negros escravos fugitivos encontraram acolhimento no culto dos Encantados, onde identificaram certa semelhança cerimonial com sua religiosidade africana, principalmente no trabalho de entidades incorporadas e do culto aos espíritos. Também encontraram guarida nos cultos indígenas os praticantes de outros cultos proibidos e perseguidos pela Inquisição, como a bruxaria e a magia. Esse contato inter-racial e multicultural resultou na primeira miscigenação brasileira e no surgimento do primeiro culto híbrido do Brasil: o Catimbó.

A palavra “catimbó” tem origem controvertida, que pode ter vindo do “catimbau”, prática de feitiçaria ou espiritismo grosseiro, do “catimbao”, palavra de origem Banto cáatin-imbai, que quer dizer folha, mato, catinga ruim e ainda do indígena KAA = folhagem, erva, mato e TIMBO (Ó) = vegetal com propriedades entorpecentes, utilizada para imobilizar os peixes tornando assim mais fácil a pesca. 

O Catimbó nasceu da mistura da pajelança, dos santos católicos populares, da magia e bruxaria europeia e do culto aos orixás. Cultuava-se a jurema, árvore sagrada dos índios, cuja bebida extraída da raiz tinha alto poder de transe mediúnico, e o fumo, cuja fumaça expelida pelos pajés possuía o poder de curar as doenças. Durante o transe, a alma viajava pelo mundo dos espíritos, onde o pajé interagia com eles no processo de cura.

Assim como a cultura indígena foi massacrada pelos colonizadores, sua teogonia também foi pulverizada na desintegração das tribos primitivas pela cultura dos brancos, tal qual o que se deu e ainda se dá com o embranquecimento das religiões africanas. Como o índio transmitia seus ensinamentos religiosos e tradições culturais através da oralidade, não há registro escrito e pouco se sabe de suas práticas culturais e religiosas durante o período de colonização. Sabe-se, porém, que o Catimbó de hoje perdeu o ideário religioso de matriz indígena e passou a ser um culto mágico, cujos rituais de magia se aproximam da prática Wicca, (religião neo-pagã europeia, influenciada por crenças pré-cristãs, existência de poder sobrenatural e dos princípios físico-espirituais do feminino e masculino que integram a natureza e celebram o ciclo da vida), e sua base religiosa passou a ser os preceitos e santos católicos, onde se usa óleos, água benta e objetos litúrgicos. Mantiveram a prática do culto aos espíritos, porém os pajés foram substituídos por Mestres que incorporam eguns (espíritos dos mortos). 

Dos rituais indígenas primitivos foram preservados o trabalho com folhas, a fumigação com fumaça de cachimbos e fumos preparados com elemento mágico de difusão e o culto à árvore Jurema, o que levou a ser rebatizado para Catimbó-Jurema. 

Essa árvore sagrada não se trata da Jurema Cabocla da Umbanda. Esta é uma entidade vibratória, filha do Caboclo Tupinambá e que trabalha em ambientes da Natureza. O Catimbó se difundiu dos sertões e agrestes nordestinos para o litoral, enquanto a Umbanda é uma religião genuinamente urbana.

Apesar de hoje não haver elementos ou ritos que incluam o Catimbó como um culto afro-brasileiro, foi do Catimbó primitivo que derivou a maioria das religiões de culto aos orixás, tais quais, o Tambor de Minas, o Babaçuê e o Batuque. 

N.A. - Aqui encerro as considerações sobre os precursores da afro-religiosidade brasileira. A partir dos próximos tópicos, trataremos das religiões propriamente ditas e depois, dos orixás. A intenção deste escriba não é a de discutir dogmas ou entrar na seara ideológica religiosa, mas apenas de trazer à tona a parte histórica existente a cada toque dos tambores nos terreiros ou tendas espíritas.

Besta... eu?!

Há aqueles que pensam que o besta já nasce besta. E que o sabido, já nasce sabido. E ainda há quem afirme que existem casos piores, como o tal da besta quadrada. Nem uma coisa, nem outra. Todo mundo nasce besta. Besta quadrada. O mundo é que nos arredonda. Ou não. Há sempre os “sem-jeito”, descrito em belas palavras por Nosso senhor Jesus Cristo em uma das suas parábolas.

Eu nasci besta. Depois de muito apanhar, virei um “sem-jeito”. Já o meu irmão mais velho...

- Cadê o carrinho de madeira que seu tio Ascendino fez pra você? – perguntou a mãe.
- Eu vendi pro Dilso.
- Você teve a coragem de vender um presente?! Cadê o dinheiro?
- Taqui!  – Tirou do bolso um monte de cédulas e entregou à mãe. Ela conferiu, aplicou um cascudo nele e esbravejou:
- Seu moleque besta! E isso é dinheiro?! Isso aqui é só papel de carteira de cigarro! Vá atrás do Dilson e pegue seu carrinho de volta. E vai ficar uma semana de castigo pra deixar de ser uma besta quadrada!

O castigo surtiu efeito. No dia nove de abril de 2014 ele vestiu o fardão da Academia Brasileira de Letras.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Uma short story na paulicéia

Tirou o dia para conhecer São Paulo. Seis meses na cidade e só conhecia os botequins do bairro onde morava. Pegou um ônibus e deixou se conduzir pelas ruas e avenidas da cidade, sem traçar destino. Curtiria a cidade pela janela. Se acaso se agradasse dalgum lugar, desceria para esmiuçar seus detalhes. O cidadão sentado ao seu lado puxou conversa: 

- O senhor é daqui mesmo?
- Não. Sou baiano.
- Que coincidência! Eu também sou baiano.
- É? de onde?
- Sou de Caruaru, em Pernambuco.
- ?!

Se todos os brasileiros fossem baianos, quiçá, este seria um país mais alegre. 

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Odoyá, rainha das águas!


3 AS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS (Introdução)


“Deus existe, mesmo quando não há.”
Riobaldo, in Grande Sertão, Veredas - Guimarães Rosa

Deus existe, porém, para se chegar a Ele, é preciso ter fé. A fé é que religa o homem a Deus, o humano ao sagrado, através da oração, música, arte ou até mesmo pelo silêncio meditativo. A esse canal transcendente da Fé foi dado o nome de Religião.

Cada povo com seu deus, seu santo, seu mito. Cada religião com seu padre, seu rabino, seu xamã, os guias espirituais entre o plano cósmico e o plano terreno, entre matéria e espírito, e assim, seja branco, seja preto, seja índio, seja oriental ou mongol, todos traçam seu código de conduta ética, moral e espiritual baseado em seus livros sagrados. Apesar de divergentes entre si, todas as religiões convergem para um mesmo fim: Deus, um Ser Supremo, Onisciente e Transcendente.

Foi assim há milênios. É assim hoje. E sempre será assim porque o homem necessita de um deus para preencher seu vazio interior. Mas não será assim, num repente de palavras, que iremos compreender ou praticar alguma das muitas religiões africanas que por aqui aportaram. Os orixás que vieram nos tumbeiros não vieram com as mesmas regalias e prerrogativas dos santos católicos. Aqui, eles foram oprimidos e humilhados pela intolerância do Deus conquistador e manifestar-se aos seus seguidores era infligir-lhes cruéis castigos no pelourinho.   

Ao desembarcarem em terras brasilis, os orixás foram metidos numa torre de Babel doutrinária e encontraram grande dificuldade de comunicação com seus seguidores. Os negros eram separados dos seus e colocados nas senzalas onde não havia afinidades culturais, muito menos religiosas. Sequer falavam a mesma língua, pois na África continental havia milhões de falares nas múltiplas nações tribais e várias eram as culturas e religiões praticadas pelo seu povo. Por analogia, a Europa é um continente, mas cada país europeu tem a sua língua e a sua própria cultura.

Quando os brancos, e depois os negros, aqui chegaram, encontraram uma cultura dominante do Tupi, Guarani e Tupinambás. Essas nações indígenas formavam sociedades organizadas nos princípios da solidariedade e da partilha e totalmente harmonizadas com a Natureza. Os tupis e os guaranis, nações ocupantes do litoral à época da colonização e que tiveram os primeiros contatos com os europeus, acreditavam em um mundo espiritual e povoado de divindades. Eram os espíritos dos seus ancestrais, da floresta, das ervas medicinais, e também adoravam a um deus Transcendente, Tupã, e reconheciam a Trindade manifestadora do poder divino, Guaracy, Yacy e Rudá. Havia também Yurupari, o Messias, filho da virgem Chiucy. Essas divindades, análogas à Trindade do Novo Testamento, serviram de plugues na catequese dos índios pelos jesuítas, que os cristianizavam a ferro e a fogo.    

Os pajés (ou xamãs) eram os mediadores entre a comunidade e os espíritos, em ritual de transe mediúnica, conhecido como pajelança. Exerciam a função de sacerdotes, médicos, adivinhos e também era o responsável por transmitir oralmente às gerações futuras a cultura, a história e as tradições do seu povo, pois não havia escrita nas tribos. Os índios acreditavam que eles, os pajés, detinham o poder de entrar em contato com os espíritos dos mortos, dos animais ou objetos que promoviam a cura.

Da imposição religiosa dos portugueses, principalmente dos jesuítas, originou-se o culto dos Caboclos Encantados, ou Encantaria, que eram espíritos mestiços e cristianizados. O transe era alcançado pela ingestão de infusão da raiz da jurema, árvore considerada sagrada pelos indígenas muito antes da chegada do europeu, por causa do seu alto poder medicinal e, principalmente, por suas propriedades psicoativas.    

Os escravos fugitivos de suas senzalas adentravam o interior e encontravam proteção nas diversas nações indígenas. Quando tiveram contato com os rituais da pajelança e do encantamento, encontraram afinidades cerimoniais com os orixás nesses dois cultos místicos indígenas e desse modo surgiu um novo culto sincrético afro-ameríndio e impregnado de santos católicos, chamado Catimbó.

O Catimbó foi a primeira religião híbrida do Brasil, onde se misturavam as crenças indígenas, a religiosidade africana, a magia europeia e os santos católicos. Foi a base dogmática da maioria das religiões afro-brasileiras e precursora da Umbanda.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Audálio Dantas na TV Justiça

Uma excelente entrevista do jornalista e escritor alagoano Audálio Dantas ao programa Iluminuras, da TV Justiça, no dia 17 de janeiro de 2014.

Cineas Santos - Previsões provisórias de um falastrão

       Desde muito pequeno, sofro de uma enfermidade bastante grave: incontinência verbal. Falo muito além do necessário e, como qualquer falastrão, acabo dizendo bobagens. Acidentalmente, digo coisas que deveriam ser levadas a sério, mas quem daria crédito a um boquirroto?  Um exemplo: há uns 30 anos, numa aula de redação, conversávamos sobre a má distribuição da renda no Brasil. Lá pelas tantas, afirmei: as elites brasileiras (a expressão estava na ordem do dia) têm sido bastante competentes na defesa dos seus interesses. Desde a época das capitanias hereditárias, governam o país como se estivéssemos na Idade Média. Aos bem-nascidos, tudo; aos outros, as sobras gerais. A despeito disso, também cometem erros graves. No meu entender, estão subestimando o poder dos meios de comunicação de massa, notadamente o rádio e a TV. (à época, não existiam as redes sociais). Em curto espaço de tempo, os desvalidos não se contentarão com as migalhas atiradas da mesa da casa grande. Se essa gente se insurgir contra a “ordem estabelecida”, as coisas poderão complicar-se. A insurgência, por uma série de razões, começará no Rio de Janeiro. Por oportuno, uma observação: um ex-aluno, que assistira àquela aula, publicou o que estou afirmando no jornal Diário do Povo.

          Pouco tempo depois, li uma entrevista com o sociólogo Marcos Alvito, autor de “As cores do Acari”, na qual ele afirmava que os filhos dos favelados, ao contrário dos pais, já não se contentam com o rádio, a televisão, a geladeiras e outras pequenas “conquistas”. Querem mais, muito mais.   

          Infelizmente, os dois estávamos certos. A moçada da periferia resolveu demonstrar que os Titãs tinham razão: “A gente não quer só comida/a gente quer comida/diversão e arte”. De repente, como uma torrente incontrolável, resolveu ocupar todos os espaços: praias, ruas, praças e, agora, “o espaço seguro” dos shoppings. Com a utilização das redes sociais, mobilizam-se e derrubam a última muralha a separar os bem-nascidos da ralé.  Os “rolezinhos” estão tirando o sono de muita gente: comerciantes, industriais, governantes. A classe média está em polvorosa. Quando questionada, a molecada recorre à Constituição que garante a todos o direito de ir e vir. Não há como impedi-la de circular livremente sem o uso da força.

          Não quero bancar o profeta do apocalipse, mas podem apostar que este ano o bicho vai pegar: a combinação copa do mundo + eleições é nitroglicerina pura, como afirmava aquele ministro que (como direi?) papava a colega de ministério. Não fosse ano de eleição, a polícia desceria o porrete sem pena nem dó. Mas, à cata de votos, que candidato vai querer assumir o papel de truculento? Por falta de coisa melhor, deixo aqui a sugestão para o título de um documentário: a hora e a vez dos que nunca tiveram voz nem vez. Quem sobreviver, verá.
         


domingo, 26 de janeiro de 2014

2 As Lendas de Aruanda - Teogonia e as religiões tradicionais aficanas



AS RELIGIÕES TRADICIONAIS AFRICANAS

Em tempos longínquos, quando o homem engatinhava e vivia em harmonia com a Natureza por não existir diferenças notáveis, nem estresse, nem vírus ou doenças como as existentes hoje, os seres espirituais habitantes da Terra, encarnados ou não, adquiriram os segredos estruturais dos elementos da Natureza e, através da encarnação, alcançaram percepção e sensibilidade astrais que as conduziriam de volta às suas origens no plano astral superior.

Seres espirituais de outros sistemas planetários mais evoluídos vieram até a Terra e se encarregaram de transmitir suas experiências aos seres menos evoluídos e ensinar tudo sobre a divindade suprema, os seres espirituais, o espaço cósmico, a criação e as leis que regiam a evolução do Universo. A esse conhecimento foi chamado de Aumbandhã, que no passar do tempo se tornou um mantra na iniciação hindu.

Aumbandhã é uma palavra sânscrita, formada pelo prefixo Aum, de alta significação espiritual, sagrada, a sonorização da Trindade Universal, Espírito, Energia e Matéria, e pelo sufixo Bandhã, cujo significado místico é a força emanada do Criador sobre as criaturas para o despertar cósmico. Assim, a síntese lexical de modo simplificado, Aumbandhã que dizer o finito do infinito, o limite do ilimitado, ou simplesmente o humano no divino.

O planeta Terra ganhou fama esotérica e seres vindos de outras regiões siderais, doentes da alma e do espírito, procuravam a cura nos aprendizes dos tubaguaçus (grandes condutores da raça), porém nem todos os aprendizes conseguiram absorver os ensinamentos do dom da cura e acabaram se contaminando com a doença que deviam curar. Esses aprendizes contaminados transmitiram seus males às gerações futuras e suas sequelas perduram até os dias de hoje. São as doenças primitivas as responsáveis por todas as doenças do mundo, conhecidas ou não, e atendem pelo exótico nome de “Os Sete Pecados Capitais” e o considerado o maior mal de todos os males: o Egoísmo.


RELIGIÃO TRADICIONAL AFRICANA

Para se compreender a religiosidade africana, primeiro precisamos voltar os olhos para a África através de sua dimensão continental e não apenas vê-la erroneamente como um país. Quando falamos de outros povos, simplesmente tratamos pelo seu gentílico, confinados nas fronteiras físicas que delimitam seus países. Assim, dizemos, os “portugueses”, os “espanhóis”, os “franceses”, os “norte-americanos”, mas nunca dizemos “os sul-africanos”, “os congoleses”, “os angolanos”, mas apenas colocamos todos na vala comum do gentílico continental, tratando os africanos como uma nação única e igual.

As religiões tradicionais africanas, também chamadas de “religiões indígenas africanas”, aquelas que ainda não se deixaram contaminar pelo islamismo, judaísmo, catolicismo, e outros “ismos”, são religiões definidas, em sua maioria, por linhagens étnicas e tribais e engloba uma grande variedade de crenças e mitos, se distinguindo em dois aspectos fundamentais: o visível e o invisível. A matéria e o espírito. Estima-se que cerca de cem milhões de africanos praticam a religião tradicional e mesmo aquelas que se tornaram sincréticas com outras religiões ainda mantém alguns ritos da religião africana.

Apesar da amplidão continental e dessa multiplicidade religiosa, há vários pontos em comum na religiosidade tribal que envolve ensinamentos, práticas e rituais em busca da compreensão do divino. Reconhecem um Deus Supremo, criador do Universo, e chamam-no de Olodumaré (Senhor Supremo) e Olorum (Senhor do Céu), seus nomes mais conhecidos. Olodumaré vive em outra dimensão paralela à nossa, conhecida como Òrun, o Céu dos cristãos.

Segundo a religião tradicional africana, foi Olodumaré quem criou o Universo e tudo que nele está. Explica a lenda teogônica que Olodumaré aproveitou as forças sobrenaturais encontradas em Òrun para criar os orixás, cuja principal missão seria a de auxiliá-lo na criação e ordenação do novo mundo material que ele iria criar. Os orixás, depois, associaram-se às forças da natureza e dos seus elementos e só por elas podem se manifestar.

No princípio original existiam dois mundos: Òrun, onde habitavam os orixás, e o Aiyê, onde só existia água. Um dia Olodumaré resolveu criar um espaço para a humanidade que ele criaria. Incumbiu Orixanilá, nome mais sagrado de Oxalá, o primeiro orixá criado por ele, de pôr a termo a sua vontade. Entregou-lhe uma cabaça contendo terra escura, galinha de cinco dedos, uma pomba e um camaleão. A terra deveria ser lançada sobre as águas, a galinha espalharia a terra, a pomba voaria e criaria o ar e o camaleão retornaria por terra para colocar Olodumaré a par da tarefa atribuída a Orixanilá.

E partiu Orixanilá em direção de Aiyê para dar cabo de sua incumbência, levando seu cajado, o opaxorô, e a cabaça da Criação. Era costume em Òrun    se fazer sacrifícios à divindade Bará, mas Orixanilá era muito orgulhoso e se recusou a fazer tal oferenda. Então Bará, ressentido, fez o primogênito de Olodumaré sentir muita sede no caminho de Aiyê. Sem alternativa, Orixanilá pegou seu cajado e furou o tronco de uma palmeira e dele escorreu um delicioso vinho de palma. Orixanilá encheu a cara e dormiu o sono dos orixás. 

Olodumaré enviou o irmão caçula dos orixás, Oduduá, para saber o que havia acontecido com Orixanilá. Ao retornar com a cabaça da criação, Oduduá pediu ao pai que o deixasse cumprir aquela tarefa de suma importância. E assim, enquanto Orixanilá dormia, Oduduá criava o mundo e as coisas vivas, exceto o homem. Mostrando-se arrependido ao acordar e ver o mundo criado pelo seu irmão caçula, Olodumaré resolveu dar uma nova tarefa de extrema importância a Orixanilá: a criação do homem que habitaria Aiyê.

Então Oxalá moldou vários bonecos de argila e água e Olodumaré soprou nas suas narinas fazendo surgir a vida humana na face da Terra.  

domingo, 19 de janeiro de 2014

Domingo de Futebol

Eu não matei Joana d’Arc. Nem poderia. Na hora do óbito eu estava no Estádio Rei Pelé vendo o Esquadrão de Aço levar uma lapada de um time de várzea. Não direi o placar que é muito vergonhoso, mas a surra foi merecida.

Teria matado Joana d’Arc se ela já não tivesse morrido depois do jogo. A vingança é um prato que se come frio. Gelado. Congelado. A minha sorte foi ter ido de carona e ainda ter ganhado o ingresso, cortesia da Pitú, via Categoria, o dono de bar mais simpático de Maceió. Se assim não fosse, teria morrido de raiva. Morte matada. O culpado: Esporte Clube Bahia.

Joana d’Arc morreu sem que se saiba sua causa mortis. A polícia descartou homicídio, apesar das sete facadas e dois tiros no peito. É bem provável que ela tentou o suicídio, disse o delegado.

Na entrada do estádio encontrei um amigo coronel da PM e entramos conversando. Além de não ser revistado, o soldado ainda bateu continência para mim. E me permitiram ver o jogo no meio da torcida do CSA, único lugar que fazia sombra. Meu telefone não parava de tocar e eu sem poder atender. É que o display do aparelho é um escudo do Bahia. Se tiro do bolso, ia fazer companhia a Joana d’Arc.

Certa vez uma moça muito linda me perguntou:

- Você sabe de que morreu Ana Neri, Tom?
- E Ana Neri não é a patrona das enfermeiras?
- É.
- E tu não é enfermeira?
- Sou.
- E não sabe e pergunta logo a um ignorante que não sabe nem pra que serve a água oxigenada?
- É que você sabe de um bocado de coisas.

Dizem que a curiosidade matou o burro. Fui pesquisar. Vasculhei a internet, subi dez mil escadas de bibliotecas, varei noites vadias debruçado em enciclopédias e não consegui saber de nada. Como não podia deixar sem resposta uma moça linda que me achava inteligente, liguei para ela:

- Olha, você não vai acreditar, mas Ana Neri morreu de morte natural.
- Tem certeza?
- Absoluta. Morrer é coisa natural. Viver eternamente é que é coisa do outro mundo.
- Puxa. Bem que eu sabia que você não ia me deixar sem resposta. Você é tão inteligente, sabe de tanta coisa...

Sou não, baby. Se fosse, não teria deixado o meu sossego duma tarde de domingo para ir ver o meu time levar uma surra de um time peladeiro.

E foi como dizia o meu pai depois que eu levava uma surra da minha mãe:

- Se apanhou é porque mereceu.

1 AS LENDAS DE ARUANDA - O INÍCIO DE TUDO

O INÍCIO DE TUDO
      
“Nem o Não-Ser existia então. Nem o Ser.
Não existia espaço, nem o firmamento além dele.
Quem se movia então? E onde? Sob a guarda de quem?
Seria a água insondavelmente profunda?
Não existia a morte. Nem a não-morte.
Não havia nenhum sinal separando a noite e o dia.
Só o Uno respirava sua própria força,
Sem que houvesse Sopro.
Fora disso, nada havia.
Nada, nada.
No começo as trevas estavam escondidas pelas trevas,
Este universo era somente onda indistinta...”
(A Origem Rigveda – 1º milênio a/C - Índia)

No início era o Verbo. O Verbo e todo o Universo que ocupava um espaço do tamanho da cabeça de um alfinete. E Deus olhou ao redor e só viu o vazio soberano e o maciço da escuridão. Não havia o abaixo nem o acima. Nem o lado esquerdo, nem o lado direito. Era a desolação em sua total plenitude. O Princípio Original, sem começo, meio e fim. Não existia o Tempo. Não havia ontem nem amanhã. Passado, presente e futuro eram um só tempo. E Deus se sentiu o mais solitário dos imortais. A solidão era a solidez do vazio. A luz não existia porque não existia o amanhecer e a insônia era eterna. Então Deus, consciente da sua imensurável força e do seu poder infinito, disse: “Faça-se o Tempo!” e o estopim do Universo foi aceso, irradiando uma colossal energia, criando as galáxias, os astros e as estrelas, vagando em harmonia etérea em volta de sua magnífica solitude, moldando um espelho da Sua paranormalidade existencial, refletindo a grandeza diáfana de Sua Consciência Cósmica.  O Tempo passou a existir e todas as coisas criadas por Ele se tornaram evanescentes sob o seu domínio, tendo início, meio e fim, sendo que esta seria uma Lei Universal, plena e irrevogável. Somente o Tempo seria infinito e Ele, o criador do Universo, era o próprio Tempo, transcendente no tempo e espaço, imutável e eterno, senhor absoluto sobre todas as coisas.

Deus nasceu no exato instante em que o homem passou a andar sobre duas pernas, tomou consciência de sua existência na Terra e viu o Sol surgir no horizonte para afugentar as trevas. Compreendeu, com indubitável clareza, o poder supremo da luz sobre a escuridão.

Deus tomou forma incognoscível e metafísica quando o homem olhou para o céu tentando interpretar o arcano do Universo e admirou o resplendor de milhões de estrelas cintilantes e cometas errantes bailando no vasto infinito. Então ele sentiu que não estava sozinho e que uma força invisível e superior ordenava e harmonizava as galáxias em torno de um eixo transcendente.

Finalmente, o homem orou a Deus quando veio a noite e ele acreditou no sobrenatural, sentiu medo da sombra projetada pelo clarão da lua, temeu os raios e as tempestades e carregou a morte em seus braços, o que seria a irrefutável prova da sua fragilidade material. Instintivamente recuou apavorado e clamou por um deus onipresente, onisciente e desmaterializado, que se tornasse dono do seu corpo e de sua mente e se fizesse à sua imagem e semelhança.  

A partir daquele instante estava criada a religião. A Natureza e o Cosmo manifestaram-se como realidades sagradas (hierofanias) e o homem então, desde esse momento primitivo, em qualquer parte da Terra, usando os mais diversos nomes, imagens e crenças, procura, na religião em si, a verdadeira face de Deus, por acreditar piamente ser esta a resposta para a sua própria eternidade.

          Podemos definir a religião, hoje, como um canal metafísico para se atingir o Sagrado e a Realidade, não importando qual caminho devamos seguir, pois o Sagrado é a espiritualidade que reina dentro de cada um de nós e a Realidade manifesta-se no grito assustado da criança em contato com a água batismal, na queima de incenso e nas oferendas à imagem do Buda nos mosteiros monásticos, na leitura do Torá nas sinagogas, no peregrinar em penitência à cidade de Meca e no jogo de búzios e passes espirituais nos terreiros. Cada povo com sua deidade, cada deidade com sua religião, cada religião com o seu deus e os homens, tomados pela vaidade de serem Sua imagem e semelhança, desdenham do livre arbítrio e digladiam em nome do mesmo deus, que, onipresente, a tudo assiste entristecido com a soberbia intolerante de Sua criação.  

N.A. - Etimologicamente ainda é indefinida a origem da palavra “religião”, havendo várias propostas históricas, sendo que a primeira definição ocorreu na obra de Cícero, “De natura deorum”, (45 a.C.) e a última por Macróbio, no século V, d.C.