sábado, 5 de janeiro de 2019

Quer namorar comigo? (II)

Quer namorar comigo? era a pergunta mais difícil de se fazer e a mais fácil de se responder, mas as garotas faziam beicinhos, charminho, e em vez de um sim ou não, preferiam outra pergunta:
- Posso responder daqui a cinco dias? É que vou pensar.
E pensava, pensava, os cinco dias pareciam cinco séculos, e no sexto a resposta tão ansiosamente esperada:
- Posso pensar mais um pouco?
E quando vinha um sim, o mundo desabava em felicidade. Primeiro pegava timidamente na mão. Depois dava um abraço. E quando tudo caminhava para a normalidade de um romance, ela sentenciava:
- Beijo só depois que você pedir ao meu pai para namorar na porta!
Deus do Céu, que tortura! Mil vezes o pau-de-arara aplicado pela ditadura!
- É pegar ou largar! Não sou moça de namorar na rua pra ficar falada.
- Eu pego!
E lá vai o Romeu numa noite de sábado falar com o inquisidor. Pernas bambas, lábios ressabiados, coração acelerado.
- Então, o que o senhor pretende para a minha filha?
Não pretendo nada, só dar uns amassos. Ainda nem fiz dezoito anos. Será que esse coroa nunca foi adolescente?
- Eu pretendo me casar com ela quando me formar.
- Está bem. Mas não deixe de estudar pra ficar namorando.
Vencido uma etapa, beijos de boca, beijos de língua, nascia o desejo de ir avante. Pegar nos seios da namorada era o suprassumo da masculinidade. Eram os famosos amassos. Sem eles, namoro nenhum tinha credibilidade
- Nos seios não, benzinho! Só depois de casar.
Ele não iria esperar tanto tempo.  Insistia todo santo dia, até que numa noite de lua cheia ela aquiesceu:
- Está bem, eu deixo, mas só e somente só se você me prometer de que não vai contar pra ninguém.
- Ah! Então não quero!
- Por que não, meu amor?
- Porque contar pros amigos é o mais gostoso.

Quer namorar comigo?

Já que existe a probabilidade de retornamos aos tempos medievais, há coisas do século passado que adoraria que o Coiso trouxesse de volta para que os coxinhas solteiros sentissem na pele a ditadura das garotas sobre os garotos na hora da paquera. Nada de peguete ou ficante, piriguete ou santinha do pau oco, muito menos sirigaitice. Nada de se ir ao cinema sem levar à tiracolo o irmão pirralho da pretendente. Na roda gigante, cada um na lateral e o pirralho no meio (isso quando a mãe tinha medo de altura) chupando algodão doce. E nada ainda estava certo. Era só distrações para engabelar a garota enquanto a resposta de uma proposta feita dias antes não chegava.
- Quer namorar comigo?
- Não sei... Posso pensar um pouco?
- Quanto tempo?
- Cinco dias.
E o domingo no parque era o quinto dia aprazado para o sim ou o não, duas palavrinhas com o poder de transformar ou destruir o mundo. E a garota era a única com a chave das ilusões. No raro momento de "enfim sós", hora de tirar a prova dos nove:
- E aí, pensou na resposta?
- Que resposta?
- Se quer namorar comigo.
- Ah! Nem tive tempo de pensar! Posso lhe responder daqui a dez dias?
Que fazer!? Enquanto há vida, há esperança. Pior deve ser na guerra. Enquanto isso, a roda gigante sobe e desce em trajetória circular tal qual a Terra em rotação. Quando para no alto, o Diabo se apodera dos desejos, mas falta coragem para jogar o pirralho no vazio. O pretendente olha a mocinha com olhar de peixe morto, apelativo, e suspira resignado. Sente vontade de beijá-la, tirar o vermelho da maçã do amor manchando os lábios, mas o pirralho tá no meio comendo algodão doce, atrapalhando o romance. A roda gigante para, eles descem, os pais da garota aparecem e ele vai para casa dormir sem saber a resposta. É dia de Reis e no outro dia o parque estará desmontado e seguindo viagem na direção dos sonhos. E com muita sorte, no natal seguinte, a garota já terá a resposta.

Menino que fui menina

Quando eu estava para vir ao mundo, a minha mãe quis que eu nascesse igual a Jesus Cristo. Na hora do parto mandou chamar a parteira Tindole e correu para o curral. E assim, conforme as Sagradas Escrituras, o meu berço foi uma manjedoura, que lá no Junco era conhecida como "coxo". Como não havia roupa de príncipe para me vestir, ela me cobriu com uma toalha vermelha comprada na quermesse do Natal para ajudar nas obras da igreja. Quando comecei a caminhar com as próprias pernas (perdoem o pleonasmo, pois, afora os seguidores do Cramulhão, todo mundo caminha com as próprias pernas, por isso se faz necessário reforçar a ideia para não me confundirem com os sem pernas) a minha mãe me olhou carinhosamente, me abraçou chorando e disse:
- Vai, meu filho, ser guache na vida!
E eis-me aqui, séculos depois, refletindo sobre o poder alucinógeno do chá da goiabeira e da capacidade de destruição do cérebro dos seguidores desse que não se deve falar o nome. São tão ignorantes que não sabem que acabar com a ideologia de gênero é justamente destruir esse conceito arcaico de que menino veste azul e menina veste rosa. Acabar com ideologia de gênero é pôr a pique essa história de que menino brinca de bola e menina de boneca.
E viva Marta, a rainha do futebol!

Eu vi Jesus

Hoje eu vi Jesus. É difícil de acreditar, mas vi Jesus de Nazaré. Por coincidência, ele estava encostado em um pé de goiabeira, comendo umas goiabas amarelinhas e que pareciam saborosas, pois Jesus não parava de comê-las. Satisfação total. Até babava e lambia os beiços. Fiquei compenetrado, em êxtase, ao vê-lo na minha frente em carne e osso. Parei o carro, desci e me ajoelhei aos seus pés em súplica de milagre:

- Jesus, pelo amor do pai e do espírito santo, atende a um pedido meu! 

Ele me olhou com estranheza e me falou com uma voz de pai ralhando com o filho:

- Nem meio pedido! A borracharia já fechou e agora eu não conserto furo de pneu de senhor ninguém! Logo ali na frente tem outra, vá lá e me deixe comer minhas goiabas sossegado.

Quer saber? Nunca confie na solidariedade de borracheiro de Nazaré das Farinhas.

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Como descobrir se é amor o que você sente


         Se ao sentar à mesa com o seu namorado o seu olhar de peixe morto lacrimejar de emoção, seu coração acelerar em ritmo de samba do crioulo doido na terça-feira de carnaval, seu estômago revirar como nau desgovernada em tempestade em alto-mar, suas pernas fraquejarem em firmeza do andar de bêbado... sorria! Isso que você sente não é amor. Isso é o Sazon apimentado que sua sogra colocou na comida. Mas se depois que a SAMU chegar e lhe levar para o pronto-socorro superlotado e lhe deixar por engano numa unidade de doenças infecciosas, você continuar achando que ela ainda é a melhor sogra do mundo, aí, sim, podemos dizer com toda a certeza de que isso que você sente NÃO é amor. É loucura. E você precisa urgentemente pedir transferência para o setor de psiquiatria.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Deixa que eu pago!

Queixava-se do assédio ou cobranças sem a contrapartida. Nenhum homem lhe perguntava quando vencia sua conta de luz ou outra conta qualquer. Exigiam, exigiam sem nenhum retorno. No dia de Ação de Graças um milagre aconteceu:

- Quando vence seu condomínio, gata?


Aleluia! Finalmente apareceu o homem da sua vida! Agora era fazer charminho e marcar a data do casamento.


- No dia quinze, amore. Por quê?
- Nada. Então só venho lhe ver depois do dia dezesseis.

sábado, 22 de dezembro de 2018

Então é Natal


Não gosto de Papai Noel. Nem do jingolbéu. Os sinos da minha infância faziam ding-dong. Ding era o repique, dizia o sineiro aos meninos amarelos de pés descalços. Na véspera do Natal o galo cantava e o sino fazia bléim, bléim e o padre chegava na porta da igreja e anunciava:

- Cristo nasceu!
- Aonde?
- Em Belém.
- E onde fica isso?
- No Pará.
- E onde fica o Pará?
- No cu da sua mãe!
- No seu! E perdeu o dízimo!

E o povo seguia em procissão para ver a lapinha de tia Pureza, tão pura quanto o nome, e a todos recebia com um largo sorriso no rosto. Era a única lapinha que merecia ser visitada. Não porque as outras não prestassem, não era nada disso. É porque não havia outras. O povo não era chegado a certas tradições consumistas. O Natal era só um motivo para se ir à missa do galo. Enquanto isso, os solteiros se divertiam na paquera num parque mambembe que sempre aparecia.

Quando o sino tocava três vezes era hora de se ir à missa. O padre aproveitava o momento fraterno para contar o nascimento de Jesus numa manjedoura e a matança que Herodes promoveu. O povo chorava penalizado das criancinhas passadas a facão, mas logo esquecia quando os Reis Magos chegavam com presentes. Presente é presente, mesmo não servindo para nada, como era o caso da mirra e do incenso.  Essa era a parte que o padre mais gostava de contar porque comovia os fiéis e eles não mediam sacrifícios na hora de colaborar com o enxoval do menino santo. E foi num momento assim que o padre se empolgou e revelou um dos mistérios de Deus:

- Imaginem que castigo para uma criança ter que nascer num coxo de se colocar comida pra cavalo.
- Coxo?
- Sim. Coxo. Manjedoura é coxo.
- Que padre mentiroso da gota serena! O rei dos reis ia nascer num coxo?! O senhor é um herege, um comunista! Quem nasceu num coxo foi a sua mãe! E me dê meu dinheiro de volta que não vou ficar num conluio com comunista numa noite de Natal!

Estava formada a confusão. O sacristão, que tinha a mesma cara do padre, não gostou da ofensa à mãe do sacerdote e meteu o castiçal na cabeça da ovelha rebelde, que caiu desacordada e jorrando sangue. O delegado, que estava na missa, deu voz de prisão ao sacristão, o padre não gostou e chamou o delegado de “chumbeta de Belzebu”. Sem alternativa, o delegado levou o padre também preso, por desacato à autoridade. A minha mãe, que a tudo assistia horrorizada, fez pelo-sinal, me pegou nos braços, me fez entrar na Rural da Prefeitura e me levou para a emergência médica antes que eu tivesse uma hemorragia.

sábado, 25 de agosto de 2018

Cristo já voltou

Jesus resolveu descer à Terra novamente e, aqui chegando, se disfarçou de médico. Vestiu branco, colocou avental e entrou no primeiro hospital que encontrou. Mandou o médico plantonista embora e chamou o primeiro paciente. Entrou um paralítico na cadeira de rodas. Jesus olhou para ele e ordenou:
- Levanta-te e vai embora!
O paralítico se levantou e saiu empurrando sua cadeira de rodas. Na sala, um curioso quis saber como era o novo médico:
- É igual aos outros. Nem me examinou. Assim que entrei me mandou levantar e ir embora. São todos uns enrolões!

sábado, 18 de agosto de 2018

A mulher perfeita

Ele vê uma mulher perfeita desfilando pela calçada; corpo escultural, sensualidade de ninfa e quando ela deixa cair o lenço dois passos adiante, ele diz:
- Ei... fofinha!
Ela se abaixa bruscamente, recolhe o lenço à bolsa, vira para trás e diz:
- Fofinha é a puta que lhe pariu!
E segue em frente com seu andar provocante em busca de uma alma que saiba a diferença entre um corpo de mulher e uma almofada.

A primeira vez a gente nunca esquece

Era a primeira vez que ia ao brega. Na parede, a tabela de preços:
"Sem sacanagem - R$ 30,00"
"Com sacanagem - R$ 100,00"
Conferiu a carteira e optou pelo último. Com sacanagem é melhor. Pagou e adentrou um corredor que lhe indicaram. Havia uma porta para outro corredor, e mais outra e quando abriu a terceira, viu que estava na rua. A porta fechou atrás dele. Um grito de revolta quebrou o silêncio da noite:
- Mas que sacanagem!!!

Em caminho de paca...

- Está em Campo Grande?
- Estou. E vim com meu namorado.
- Então dê cabeça de pacu a ele.
- Certo, tia.
...
- E aí, seu namorado gostou?
- De que, tia?
- Da cabeça de pacu.
- Xiiiii! E era pacu?! Entendi errado e dei outra coisa!

Dos nomes que a gente tem

Aqueles que nunca tiveram um apelido na infância, jamais terão uma boa história para contar. Se batizar João, se crismar João, se formar João e morrer João ou outro nome qualquer, que graça tem? Êta vida besta, meu Deus! A verdadeira felicidade consiste em se ter um nome para cada ocasião. Quem não tem, trate de inventar um.

Jorge Silva Pacoa, o dileto sobrinho de Maricas Coxeba, empacou ao ler um livro meu e descobrir que a sua tia, uma Guimarães de rocha, tinha esse apelido. Ao contrário do povo do Junco que todo mundo foi, é ou será Cruz e o que diferencia uns dos outros são só os apelidos, o povo de Inhambupe tem essa mania de grandeza com o nome e sobrenome, apesar de agora abundar os “dos Santos” e “da Silva”. Vou lhe processar! disse-me ele com todos os sinais gráficos do mundo. Desafiei-o: vamos ao Junco saber se lá existiu alguma Maria José Guimarães. Ele foi. Andamos de boteco em boteco entrevistando o povo, pagando cachaça a uns, tira-gosto a outros, e ninguém nunca ouvira falar nesse nome. Nem os mais velhos, nem os mais moços, nem os que ainda iam nascer. Mas quando a pergunta era sobre Maricas Coxeba, ah! todo mundo abria um largo sorriso: foi uma grande mulher! Até os fedelhos diziam que sabiam quem era. Ou melhor, quem foi.

Maricas Coxeba foi a mulher mais importante do Junco, depois da primeira-dama e da esposa de Zé do Padre, o motorista do ônibus que acordava o povo às cinco da manhã para conduzi-lo até Alagoinhas. Escrivã da terra, aquela que escrevia “é verdade e dou fé”, se se candidatasse a prefeita ganhava de lavagem. Mas como a política é machista, nunca lhe deram essa chance.

Devo a ela a minha sobrevivência. Sem ela, seria um moço mais triste do que sou hoje. Ou melhor, já teria morrido de tristeza. O que ela fez por mim é digno de entrar nos anais da história.

Era um dia de sol, como todos os dias eram, e o meu irmão mais velho, famoso no lugar por ser jornalista em São Paulo, chegou na surdina para tomar um copo de umbuzada, coisa que em São Paulo não tem, disse ele. Quer dizer, acho que disse, pois eu era pequeno e não me lembro bem. Foi uma festança. Meu pai mandou matar um carneiro e as mulheres da redondeza ocuparam o terreiro. Era mulher que não acabava mais, cada uma carregando uma cesta de umbu.
No auge da festa, ele prestou atenção em mim. Era a primeira vez que eu o via. Perguntou à minha mãe:


- Mamãe, como é o nome desse moleque?
- Moleque – respondeu ela, carinhosamente sentido asco.
- Não. Falo do nome de registro.
- Tonho de Lisboa.
- Tonho de Lisboa?! A senhora não sabe que isso não é nome de gente?
- Olhe pra ele: vê se isso é gente!
Ele me olhou penalizado, me deu um cascudo que afundou a minha moleira e retomou a conversa.
- A senhora não sabe que maltratar animal é crime?
- Mas ele não é um animal. É só um coisa. E Tonho de Lisboa é só um nome.
- A maioria dos Tonhos de Lisboa se suicida antes de completar os quinze anos.
- Sei disso. Foi por isso mesmo que dei esse nome a ele.
- E papai, o que diz?
- Toda vez que olha pro moleque, ele diz: “Se tivesse nascido mais feio podia matar que era monstro”. Satisfeito?
- Não. O moleque ainda tem jeito. Vou falar com Maricas Coxeba. 


Assim falou Zaratustra. Não sei o que ele fez para convencer a escrivã a mudar o meu nome, só sei que, graças a ela, consegui me livrar de ser um Tonho de Lisboa e transpor a adolescência sem a vontade de me matar.

domingo, 29 de julho de 2018

O dia que Maomé foi à montanha

No tempo dos faraós, Maomé subiu na montanha e admirou-se com a multidão lá embaixo parecendo um rebanho de ovelhas pastando. Encheu os pulmões de ar e iniciou o seu sermão tão esperado pelo povo escolhido de Allah (naquele tempo não havia evangélicos):

- Se algum de vocês aí embaixo disser que se eu não subir nessa montanha ela vai a mim, é um grandíssimo mentiroso e vai ferver no mármore do Inferno até virar torresmo numa bodega mineira! Essa montanha não vai a porra de lugar nenhum! 

Dito isso, desceu lentamente e cuidadoso para não escorregar, e caminhou na direção dos seus seguidores para sentir o efeito de suas palavras. Então, quando ele viu de perto aquela multidão que lá de cima da montanha parecia um rebanho de ovelhas pastando, percebeu que era, na verdade, um rebanho de ovelhas pastando.

Moral da história: Até Maomé precisa fazer exame de vista de vez em quando.

sexta-feira, 6 de julho de 2018

Linha do Horizonte

Eram tempos de sonhos, de se montar na cauda de um cometa e cavalgar pelo infinito em busca do pote de ouro no fim do arco-íris das galáxias.

1975, ano em que Josafá desmaiou de tanto caçar guerrilheiro no sol escaldante de céu límpido de abril nas ruas solitárias de Alagoinhas. Teve o azar de quebrar a coronha do fuzil na quina do meio fio e morreu de tanto apanhar para confessar quem era seu contato de Cuba que mandou destruir as armas do quartel. E quando cheguei em casa, atordoado com a notícia, a minha vizinha tocou essa música na sua radiola Taterka Linear estereofônica e automática, não sei se foi por sacanagem, mas a música foi repetida cinco vezes, e a cada vez ela aumentava o volume. Tirei a verde-oliva do corpo e fui para Zefão afogar as minhas angústias, porque os puteiros eram os melhores lugares para se sossegar um coração inquieto e uma alma em revolução. E lá, com certeza, não tocaria Azimuth.

Descansa em paz, Josafá!


quarta-feira, 9 de maio de 2018

A Gramática que estudei


Onde eu nasci, a Gramática desfilava no lombo de jegue. Eram meus bisavós que vieram importados de Portugal pelo Imperador Pedro II para elitizar o sertão. A elite falida portuguesa que tinha o sertão nordestino como opção para não apodrecer nas masmorras del-rey. Não trouxeram mulheres e, aqui chegando, se acasalaram com as índias, todas elas por livre e espontânea vontade do invasor.
Em tempos que não havia anticoncepcional, camisa de vênus e a Igreja não concebia o sexo com as índias um pecado carnal, a prole se tornou grande. Tão grande que faltou índia para os herdeiros e o cruzamento passou a ser entre primos, tios e sobrinhos.
Assim, se é que veio alguma gramática normativa com os aborígenes, essa perdeu-se no meio da caatinga onde brancos e índios conjugavam o Verbo Amar.
A comunidade cresceu. Virou arraial. Depois distrito. Abriram-se estradas e o povo descobriu outro povo além do horizonte. Um povo que lia livros, lia histórias, e mandava seus filhos para a escola. Sabia fazer conta de somar e dividir sem precisar usar pedrinhas ou os dedos. Seriam eles uns alienígenas?
Depois dessa descoberta a cidade nunca mais foi a mesma. Os filhos questionavam os pais, que questionavam o prefeito, que questionava a mulher e, esta, muito católica e devota de Nossa Senhora, perguntava ao padre, que ia lá de mês em mês rezar uma missa e extorquir os dízimos. “O que somos? de onde viemos? Para onde Vamos? E o padre respondia: “Há mais mistério entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”. E todos se ajoelhavam e diziam “amém!” Em seguida faziam fila para dar dinheiro ao padre e depois beijar suas mãos sagradas.
O meu avô, cujo pai exibia sua gramática normatiza num lombo de um jegue, era o chefe político do lugar e ficou matutando como resolver aquele dilema. Pensou dois anos e três meses e finalmente estalou uma ideia nos miolos: “Vou contratar um professor!”
Contratou um professor chamado Laudelino Mendonça, que ficou conhecido como “Professor Lau”, especialista em Gramática e doutor em tortura por palmatória. Sentia um prazer imenso ouvir os gritos de dor da molecada. E ai de quem gaguejasse na hora de conjugar o verbo sofrer!
Depois chegou a professora Tereza. Veio a Professora Serafina. Exigente feito o diabo, mas só usava a violência da palmatória como último recurso didático. E nos colocava pra ler. Ler, ler e ler. Aos seis anos de idade eu sabia Castro Alves de cor e salteado. Todas as fábulas de Esopo, Andersen, Irmãos Grimm e outros mais. Não nos ensinou Gramática normativa, mas lemos tanto que aprendemos a pôr os pontos nos is.
No ano seguinte nos mudamos para uma cidade maior. Estranhamento total. Parecia que o povo falava outra língua. Fui estudar em uma escola que ficava no fundo da igreja do bairro. Duas semanas depois a professora chamou a minha mãe para uma conversa muito séria:
- O que foi que esse moleque andou aprontando? – não esperou nem a resposta e já me deu um cachação.
- Calma, dona Durvalice, ele não fez nada! Chamei a senhora aqui porque seu filho está muito adiantado e vai ser transferido para outra escola.
A minha mãe me olhou penalizada, arrependida, e sussurrou carinhosamente no meu ouvido: “Se não fez nada desta vez, mais tarde fará. Me lembre pra descontar esse cachação”.
Fui estudar numa escola bem maior, mais bonita, e cheia de meninas de cabelos cacheados, arrumadinhas, e usavam perfume vagabundo. Foi amor à primeira vista. Nessa escola aprendi que Deus era substantivo abstrato e o que vinha depois era o verbo. Morfologia. Quem jia é sapo e a rã caminha. O que você disse? Vou mandar um bilhete pra sua mãe! Eu disse que estou sentindo falta do professor Lau.
Sintaticamente falando, eu era um sujeito simples perdido no meio de um mundo composto de bacanas. Se era táxi, por que não dizer “sintáxi”? Porque o nome dessa coisa é “sintache” e vou mandar outro bilhete para a sua mãe!
Nessa época os linguistas brasileiros ainda não eram nascidos e o que a professora dizia era lei. Quando a gente questionava alguma coisa, ela respondia “que era assim que estava na Gramática e vou mandar um bilhete pra sua mãe”. Ainda bem que não mandava pro meu pai.
Fui para o ginásio depois de passar por uma maratona de exames de admissão ao ginásio. No primeiro ano a professora de Português nos ensinou que o melhor caminho para se aprender o português era a leitura. Leiam! Leiam! Leiam!, dizia um tanto alucinada. “Leiam bula de remédio, leiam carteira de cigarro, leiam a Bíblia, leiam até o catecismo de Zéfiro!” Louca. O catecismo de Zéfiro era um gibi de sacanagem.
No quarto ano, pegamos um professor de Português rigoroso com a língua culta e bela, conforme Bilac. Pastor evangélico, não admitia um mas-mas. Errar a Gramática era o pior dos pecados. As provas que ele fazia eram sui generis. No quarto trimestre, depois de passarmos duas semanas suando a camisa no estudo dos verbos para fazermos a prova final, ele pegou o giz, foi ao quadro e escreveu: “Se você vê Ednilda, diga-lhe que enviei lembranças”. Em seguida falou: “Anotem essa oração, vão pra casa e amanhã vocês me dizem onde está o erro”.
Décadas depois, Dom Evaristo Arns soube desse caso e criou o movimento Tortura Nunca Mais. Escrever aqui que ninguém passou, é mera redundância. Todo mundo em recuperação. Ninguém, em tempo algum, ouviu alguém falar “se você vir”. E se falasse, seria chamado de burro, ignorante, metido a falar difícil sem saber. São as armadilhas da gramática normativa que nos põem em conflito com a sociedade falante que se acha dona dos saberes da linguagem, pois é ela quem gera e quem cria seus próprios caminhos de comunicação.
Passado esse dia fatídico, o professor nos deu uma semana para estudarmos todos os assuntos ministrados por ele no nosso quase um ano de convivência. Quem perdesse, iria fazer re-recuperação das quatro unidades. No dia aprazado, entramos na sala com o ânimo de quem se dá ao carrasco. O professor, que não passava de um metro e sessenta, nesse dia entrou na sala do tamanho de Golias. Nosso olhar era de terror e medo. Ele se acomodou na sua cadeira, nos mandou abrir o livro de leitura na página 131, e disse do jeito especial de quem tem o poder de mandar:
- Façam uma cópia desse texto! É a prova de hoje. Se errarem uma vírgula, um ponto, uma exclamação, uma cedilha, não esperem complacência de minha parte. Não há conserto para quem erra uma cópia.